quarta-feira, 15 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14879: 3 anos nas Forças Armadas (Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726) (2): Passagem pelo BII 18 de Ponta Delgada, IAO no RI 11 de Setúbal e embarque em Lisboa no Ana Mafalda

1. Continuação da apresentação do trabalho do nosso camarada Tibério Borges (ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726, Cacine, Cameconde, Gadamael e Bedanda, 1970/72), intitulado "3 anos nas Forças Armadas", enviado ao nosso Blogue em 28 de Junho de 2015:


3 anos nas Forças Armadas (2)

Passagem pelo BII 18 de Ponta Delgada, IAO no RI 11 de Setúbal e embarque em Lisboa no Ana Mafalda

Tibério Borges

Lembro-me alguns pormenores da minha chegada a este quartel. Fizeram-me e a outros a recepção da praxe. Na altura não entendi este método e não fiquei bem disposto. Sei que nos sentaram à volta duma mesa de sala de estar, sem comer, enquanto eles, os organizadores desta cena, comiam lautamente. Depois perguntaram se o barman podia fornecer martini em nosso nome. Eu que não tinha dinheiro para mandar cantar um cego e mal disposto com esta recepção a resposta foi um não. Tive pena, passados tempos, de não ter ido na jogada. Teria sido mais engraçado.

Outro episódio foi o de um preso ter arrombado o tecto da prisão para fugir. O episódio foi comunicado ao comandante que com a sua experiência pediu calma e mandou uma viatura com alguns soldados mas sem armas a casa do fugitivo para o trazer de regresso. Ainda me lembro de lhe ter dito para não me criar problemas e regressar ao quartel mas ele foi peremptório na resposta que regressava só porque não vinham armados como de outras vezes. E veio nas calmas.

A disciplina era muito rigorosa mas havia quem se estava a marimbar para a vida. Morrer por morrer Marquês de Pombal.

Mas a companhia foi-se formando. Muitos treinos debaixo de chuva, frios, vento… fora deles eram outra vida fora do quartel. Os continentais alferes como eu dormiam fora do quartel. Já nem me lembro onde ficava se dentro ou fora. Esta minha memória está de rastos. Sei que andava a namorar e todo o tempo que tinha era para estar com a minha namorada. Não foi fácil este namoro. Mas aconteceu.

Finais de sessenta e nove, Ponta Delgada mais parecia uma aldeia e sem condições. O pouco que havia de restauração fechava depois das horas de expediente. Vida nocturna só em particulares. Quem tinha o privilégio de entrar num grupo estava safo. O contrário era uma situação difícil pois o micaelense era demasiado fechado. Apenas um pequeno grupo desta sociedade tinha regalias porque eles próprios as criavam. Havia muito sangue azul. Mas havia pequenos grupos já da futura classe média que se reuniam para patuscadas cujo convívio são era muito agradável. O sair de casa à noite era um prestígio. Tudo era diferente comparativamente com 2008 onde o inverso existe. Foi passar dum extremo ao outro depois do 25 de Abril de 1974.
Se lerem “Gente feliz com lágrimas” vão entender bem a sociedade que existia na altura.

O que é certo é que depois da companhia formada embarcamos rumo a Setúbal onde tirámos o IAO cujas iniciais já não me lembro o significado. Era o passo anterior à ida para a Guiné, local destinado à nossa companhia. Já nem me lembro porque não era batalhão.

Setúbal era na altura uma cidade simpática porque conseguimos entrar num pequeno grupo local com o qual passamos bons momentos. O mundo era diferente, muito diferente de Ponta Delgada. Havia muitos locais onde se podia comer. E lembro-me de uma vez termos ido comer a uma tasca onde começamos pelo pão enquanto se esperava pela refeição. Foram vinte e dois papos-secos que quatro ou cinco pessoas devoraram num pouco. O homem da tasca ficou estupefacto a olhar para nós pois não sabia que éramos açorianos.

Em Setúbal

O mundo aqui era mais largo. Disso já me tinha apercebido quando vim estudar para o continente. Em vésperas de embarcar de Lisboa para Bissau o nosso capitão Magalhães deu-nos a noite livre mas marcou uma hora para formar e ninguém podia faltar. Era ver toda a malta ir já não sei como para Lisboa. Fomos para a “night”. Percorremos uma série de pubs e sei lá que mais. Bebeu-se, comeu-se e depois cada um terminou-se. Também já não me lembro como regressamos a Setúbal. Só sei que no dia seguinte, 11 de Abril de 1970, estávamos em Lisboa a fazer a marcha de despedida às altas patentes.

 Desfile antes do embarque

Depois de estarmos no navio, o Ana Mafalda, tivemos oportunidade de ver um mar vasto de gente com lenços brancos, gritando de dor a despedida do seu ente querido que o mais certo era não o tornar a ver. Era arrepiante constatar esta dura realidade. Era deprimente. Era este cenário que Salazar evitava publicar. Largamos debaixo de gritos profundos de dor e rumamos a mar alto com destino a Bissau.

Despolitizado, como éramos todos, não tinha a noção da verdadeira realidade. Lembro-me que quando tinha aulas nos Jesuítas, ali para os lados de Sete Rios, pois apanhava o comboio em Sta Iria, falava-se a boca fechada ou dava-se a entender muito sobre o regime de Salazar. O Cardeal Cerejeira era muito badalado. Havia uma revista que era muito lida pelo clero e que era muito discutida. Soube mais tarde que a PIDE expulsou de Portugal padres que pertenciam à Congregação onde estudei, Sagrados Corações de Jesus e Maria. Os meus professores eram holandeses.

A bordo do Ana Mafalda

Uma semana em alto mar deu muito para pensar e escrever. Na altura estava a namorar e eu escrevia longas cartas. Tinha tido quase dois anos de filosofia e isso dava-me campo para de uma frase expandir as minhas ideias. Lembro-me de ter tido um diário de 4 anos sem falhar um dia mas como apanhei meu pai a lê-lo e achei que aquilo era só meu decidi queimá-lo. Mais tarde arrependi-me mas já era tarde. Muitos pormenores da minha vida desapareceram, simplesmente. Mas eu estava em alto-mar. E neste percurso lembro-me de um soldado se querer atirar borda fora. Foi uma situação crítica e foi dado conhecimento ao capitão.

Foi um tempo de antevéspera à crueza duma guerra sem sentido como todas as guerras. Já o Padre António Vieira dizia: “É a guerra aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e quanto mais come e consome, tanto menos se farta. É a guerra aquela tempestade terrestre, que leva os campos, as casas, as vilas, os castelos, as cidades, e talvez em um momento sorve os reinos e monarquias inteiras. É a guerra aquela calamidade composta de todas as calamidades, em que não há mal algum que, ou se não padeça, ou se não tema, nem bem que seja próprio e seguro. O pai não tem seguro o filho, o rico não tem segura a fazenda, o pobre não tem seguro o seu suor, o nobre não tem segura a honra, o eclesiástico não tem segura a imunidade, o religioso não tem segura a sua cela; e até Deus nos templos e nos sacrários não está seguro”.
A nossa literatura está cheia de escritos sobre a corrupção de quem lidera a nação. O mesmo Vieira escrevia: “O maior jugo de um reino, a mais pesada carga de uma república são os seus imoderados tributos. Se queremos que sejam leves, se queremos que sejam suaves, repartam-se por todos". Está muita coisa inventada e dita. É uma questão de interpretação. E tudo isto dito no século dezassete.

E mais. O Vieira era o imperador da língua Portuguesa segundo Fernando Pessoa. Sobre as conquistas pelos holandeses de terras portuguesas no Brasil: “Se esta havia de ser a paga e o fruto de nossos trabalhos, para que foi o trabalhar, para que foi o servir, para que foi o derramar tanto e tão ilustre sangue nestas conquistas? Para que abrimos os mares nunca dantes navegados? Para que descobrimos as regiões e os climas não conhecidos? Para que contrastámos os ventos e as tempestades com tanto arrojo, que apenas há baixio no oceano, que não esteja infamado com miserabilíssimos naufrágios de portugueses? E depois de tantos perigos, depois de tantas desgraças, depois de tantas e tão lastimosas mortes, ou nas praias desertas sem sepultura, ou sepultados nas entranhas dos Alarves, das feras, dos peixes, que as terras que assim ganhámos, as hajamos de perder assim! Oh!, quanto melhor nos fora nunca conseguir, nem intentar tais empresas!”.
Para quê mais comentários? E no Séc XIX ainda teimávamos em ficar com terras africanas.

E lá íamos a caminho de África teimar em combater por ficar com aquilo que não era nosso. Uma semana num barco a caminho de Bissau. Soldados mal acomodados como gado de exportação. E para tudo se inventava uma desculpa esfarrapada para não se dar melhores condições a quem ia defender a Pátria. Mas seria realmente a Pátria que ia defender? Não. Ainda hoje vivo revoltado com toda esta situação. A Pátria grita por justiça! Abram os olhos! Ex-combatentes! Agora é altura de defender a Pátria. Mas somos nós que tomámos as rédeas do rumo da Pátria.

Estava um calor húmido terrível. Antes de desembarcarmos ficamos horas esperando ordem para o desembarque. Tudo era estranho. Outro mundo. Tudo diferente.

(Continua)
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Nota do editor

Primeiro parte inserta no poste de 8 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14850: Tabanca Grande (469): Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726 (Cacine, Cameconde, Gadamael e Bedanda, 1970/72)

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