Vigésimo quinto episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.
Depois da guerra, por algum tempo, ainda fui bravo,
algumas vezes rude para as outras pessoas, ainda fumei
e bebi álcool, ainda tive as minhas lutas, ainda fui
selvagem, ainda tive experiências sexuais com raparigas
estranhas, ainda mantive aquela raiva surda contra não
sei quem, talvez contra a guerra, contra a morte de jovens
companheiros, contra a polícia que me interrogou e
perseguiu, coisas que não tinham explicações, mas que
alguma audiência censurava, mas na altura, tinha a força
da juventude, talvez “saúde a jorros”, nunca precisei,
(nem havia naquele tempo, disponível, ali à mão, era
preciso ir à cidade mais próxima), ir todas as semanas, ou
cada outra semana ver o psiquiatra, para uma ajuda extra,
do trauma que a maldita guerra em África me fez passar,
nunca fui para a televisão, rádio ou outros meios de
comunicação dizer que não tinha casa, emprego, comida
ou roupa para vestir e o governo tinha que me dar todas
essas coisas, continuei a ser eu, o aldeão, com
aspirações a criar uma família que andava vestido conforme
ganhava, como tal, andava sempre muito mal vestido.
Embora antes tivesse assinado um cheque em branco ao
governo de Portugal, no montante de..., incluindo a minha
própria vida, nunca esperei um subsídio do então
governo, ou ser assistido por um daqueles programas que
agora existem, procurei trabalho, qualquer trabalho, não
queria saber quanto pagavam ou quais os benefícios, ou
quantos dias de férias, o que queria era trabalhar, trazer
ao fim do dia, ou ao fim da semana, algum dinheiro, fruto
do meu trabalho e, para mim cinco tostões eram cinco
tostões, que davam para comprar um “papo seco”, não
como agora neste ano de 2015, pelo menos pelas notícias
que vou tendo conhecimento pela comunicação social e
por alguns companheiros combatentes, em que, este
novo Portugal, país acolhedor, onde a nova geração tem
muitos anos de escola, portanto tem formação superior,
abriu as suas fronteiras, pelo menos na União Europeia,
recebendo amavelmente qualquer estrangeiro, dos quais
muitos vêm para ficar definitivamente, claro, sempre
haverá excepções, mas eu entendo de que, se o tal
candidato a emigrante, um dia desembarcar em Lisboa,
ao encontrar a primeira pessoa na rua, que
provavelmente não será um verdadeiro português, será
uma pessoa oriunda da África, América, Oceania ou da
Europa do Leste, mas deve dizer, depois de ter beijado o
chão de Portugal:
- Obrigado senhor português, por me deixar entrar no seu
País, dar-me casa, comida, ajuda médica e educação
para os meus filhos.
Nós, antigos combatentes, fomos uma boa e trabalhadora
geração e, neste caso, depois da guerra, vieram os
outros.
Tony Borie, Julho de 2015
____________
Nota do editor
Último poste da série de 5 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14837: Libertando-me (Tony Borié) (24): Glória, a quem chamavam Lola e às vezes Ruça (5)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
Caríssimo amigo Tony
Estive uns dias afastado dos comentários, que não propriamente das leituras... mas isso fez com que não tivesse comentado as "últimas da Glória/Lola/Ruça".
Não sei exactamente como se passa hoje nos aglomerados populacionais menos cosmopolitas mas lembro-me que 'no meu/nosso tempo' era vulgar colocar alcunhas, 'nick names', que normalmente evidenciavam alguma característica a quem era colocada. Por exemplo, aquando da minha frequência da EICVFXira uma das moças era conhecida pela "Generosa", mas não era esse o seu verdadeiro nome....
Quando começaste este artigo lembrei-me de uma canção açoreana que começa assim. "Eu fui à terra do bravo / bravo meu bem / para ver se embravecia".... mas, pelos vistos, e pelo que escreves, não foi preciso lá ir!
Claro que nesses tempos sabia-se lá o que era isso do 'stress de guerra', sabia-se lá que iriam haver psicólogos para ajudar a superar traumas. Também, nesses aspectos, fomos pioneiros, tivemos que nos 'desenrascar, resolver (ou não) os nossos problemas.
Sabe-se, por experiência própria, por 'visionamentos de proximidade' ou também por 'ouvir dizer', que nem sempre foi fácil o retorno à 'vida civil', à reinserção social (sem subsídio...). Cada um safou-se como foi capaz e sabemos, também, que ainda hoje há quem não tenha conseguido.
Não foi fácil. Lá e cá!
Mas, tal como dizes, a nossa capacidade de adaptação, quando se sai do País, mas também quando se possibilita a integração a quem chega, ainda nos distingue, colectivamente e de modo individual, de muitos outros povos e dá-nos esperança de poder haver algum futuro.
Abraço, Tony
Hélder S.
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