quarta-feira, 15 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14882: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (4): Os amigos e amigas que nos ligaram ao nosso mundo (José Teixeira)

1. Mensagem do nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enf, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), com data de 12 de Julho de 2015, onde nos fala dos amigos que,  de alguma maneira, foram o suporte moral de muitos de nós, combatentes, enquanto em campanha.

Caríssimos
Não foram apenas a família e as namoradas que nos ligaram ao mundo do lado de cá da guerra, como podem ver nos anexos.

Abraços
Zé Teixeira


OS AMIGOS E AMIGAS QUE NOS LIGARAM AO NOSSO MUNDO

Alguma coisa se tem escrito sobre as noivas e namoradas que viram os seus “amores” partirem para Guerra Colonial. Seguiam-se normalmente cerca de dois anos de separação em que o amor e os afectos eram alimentados pelas cartas e “bate-estradas”,  vulgo aerogramas. Tempo de sofrimento. Tempo que nunca mais passava.

Um camarada meu recebia um montão de cartas sempre que a avioneta chegava com notícias frescas. A sua namorada assumiu o compromisso de lhe escrever todos os dias e ...ele correspondia de igual modo. Teve azar o Miguel. Uma mina traiçoeira roubou-lhe uma perna. Os seus gritos de dor eram entremeados com gritos de desespero porque pensava que ela, a sua querida, não ia querer um manco como marido. Felizmente o drama acabou bem. Hoje são um casal feliz.

E, quantas vezes, o tempo que teimava em não passar, fazia arrefecer o calor desse amor jurado e selado com beijos de saudade. Namoradas que, cansadas de esperar, por quem nunca mais chegava, mandaram o parceiro dar uma volta ao bilhar grande, para desgosto e sofrimento deste. O contrário, creio bem, que também aconteceu.

Os que conseguiram vencer esta difícil etapa tiveram com certeza uma recompensa proveitosa.
As madrinhas de guerra e o seu excelente papel no apoio aos seus afilhados. Algumas, deixaram-se apanhar pelo “cupido” e transformaram-se com o andar dos tempos em namoradas e até esposas. Outras, assumiam o papel de madrinhas de guerra como uma missão humana quando não patriótica. Elas eram raparigas novas cheias de vida, quantas vezes com compromissos de namoro assumidos com outro, eram mulheres casadas e até velhinhas.

Recordo o caso da madrinha de guerra de proveta idade, já avó e viúva que decidiu entrar nesta roda. Deu o seu nome a uma revista fofoqueira da época e lá lhe apareceu um candidato. Ao fim de algum tempo o “atrevidote” pediu-lhe uma fotografia, que teimava em não chegar. Depois foi mais longe e pediu em namoro. Claro que recebeu uma carta da senhora a dizer que aceitava o seu pedido de namoro.

Aproveitou para lhe enviar uma fotografia pessoal e informou-o do seu estado civil. Calculem o estado de espírito com que ficou o nosso camarada.

Havia ainda os amigos e amigas, sem qualquer rótulo, que nos acompanharam com a sua palavra escrita, naquele tempo de sangue, suor e lágrimas.

Há dias em conversa com uma amiga e esposa de um camarada combatente na Guiné, ao tempo, estudante na ESBAP – Escola Superior de Belas Artes do Porto, hoje uma conceituada pintora da nossa praça, disse-me ela que, em determinado ano escolar, os rapazes da sua turma desapareceram. Apenas ficou um porque era deficiente motor. Os outros “voaram” todos para a Guerra Colonial. A turma ficou vazia. A colega e amiga, tomou a iniciativa de manter uma ligação de carinho e amizade com os desventurados estudantes que desde há vários anos eram os seus amigos do dia-a-dia, assumindo o compromisso de lhes escrever a contar as novidades da escola e da terra. A linguagem que utilizou foi a que eles como estudantes de Belas artes melhor entendiam. O desenho com arte e imaginação, como se pode ver nas imagens.

Um dos colegas com quem ela se correspondeu, muitos anos depois, recordou esta forma de estar e devolveu-lhe com carinho alguns dos belos desenhos que recebera na selva africana, que aqui se reproduzem.

Eu fui dos que tive a sorte de ter alguém que de vez em quando me presenteavam com notícias frescas do meu País. Muito lhes devo pela sua presença fraterna e amiga que de vez em quando, dava sinais de vida, a lembrar-me que eu não estava só. A sua forma de escrita era diferente. Liberta de sentimentos amorosos e preocupações, enviavam notícias, comentários, contos e ditos, enfim!
Transportavam-me de novo ao meu mundo.

Acabada a guerra. Regressado ao ninho de afectos. Abraços distribuídos. Algumas cenas do outro mundo, contada. E a vida recomeçou. Cada um de nós seguiu o seu caminho. A amizade e a gratidão, essas ficaram cá dentro de nós, estejam eles ou elas onde estiverem.

Nunca mais pensei nesses amigos e amigas como os tais que se preocuparam com o meu bem-estar durante a guerra. Apenas a amizade ficou mais solidificada.

José Teixeira





(Cortesia de uma amiga que, ao tempo da guerra colonial, era estudante de belas artes. JT)
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Nota do editor

Primeiros postes da série:

26 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14799: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (1): Carta aberta aos camaradas da Tabanca Grande: o que fiz (e não fiz) como cofundador e dirigente da associação APOIAR (Mário Gaspar, ex-fur mil at art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)

2 comentários:

Anónimo disse...



Ouve lá ó José Teixeira, as miúdas dos desenhos são loiras ou morenas. A minha imaginação e o meus gostos multicolores permitiam que as pintasses duma cor ou doutra pois pelos contornos dos desenhos iria surgir sempre um mulher bela.
É como esta tua capacidade que a mim já não me surpreende de escreveres um texto em prosa que parece um poema, tal como o verso e reverso da loira ou morena.
Tu que passaste por Aldeia Formosa e Buba antes de mim e que tiveste uma especialidade não guerreira mas de curar os males da guerra e das gentes da Guiné, retratas muito bem em prosa ou em verso os dramas provocados pelo isolamento, pela distância, pela saudade, porquê negá-lo, das mulheres da nossa etnia. Confesso que nunca tive madrinha de guerra, nem namorada ou correspondente alguma, enquanto estive na Guiné. As razões para esse afastamento pouco natural nessa idade não terão a ver muito com o meu relacionamento com as mulheres, terão mais a ver com uma crise geral das minhas relações com a vida e o seu significado e com o rumo da política nacional que eu começava a comparar com a politica de outros países, através da leitura duma revista chamada "A Vida Mundial"
Confesso que pouco tempo antes de embarcar para a Guiné, houve uma amiga, que me escreveu uma carta a vermelho em que dizia que eu me ia relacionar com aquelas pretas selvagens e que iria morrer por lá, como ela desejava. A praga não me impressionou, eu nunca lhe tinha feito algum mal e pensando bem, também não teria sido o amigo que ela pretendia. Nunca deixei de ser amigo dela, hoje pelas circunstâncias da vida, continuamos amigos, embora um pouco distantes. Sem ser muito importante este episódio é daqueles que sem ser muito dramático ou anedótico, a propósito do tema em discussão. deixamos escapar como quem se liberta de tralha antiga que nos ocupa o sotão à demasiado tempo.
O Teixeira vejo-o muitas vezes, vi-o hoje ainda, na Tabanca de Matosinhos, invejo-o não só pela forma sensível, humana e delicada que usa ao escrever, em verso ou em prosa, mas também pela elegância física, com que se apresenta perante mim e a maior parte dos barriganas dos outros camaradas.
Meu amigo, hoje pensando nesses dois anos de Guiné, vieste-me trazer saudades dessas madrinhas de guerra que não tive, por burrice ou casmurrice e que me teriam ajudado tanto a amenizar a dureza desses dias. Hoje já é tarde para remediar esse erro,tudo tem o seu tempo, já não sou jovem nem soldado. Mas de qualquer forma muito obrigado às madrinhas de guerra e a ti que com tanto carinho te lembraste delas e obrigado pelas saudades e recordações que despertaste nos teus camaradas.
Um grande abraço

Francisco Bptista

Zé Teixeira disse...

Se as míudas são loiras ou morenas, creio que depende do gosto de cada um. Creio que quem escreveu sabia quem tinha pela frente e desenhou-as a contento, mas já foi há muitos anos. Eu, à data do acontecimento nem conhecia a autora, mas que ela fez um belo trabalho, lá isso fez, ao manter uma ligação por escrito com os colegas que forma para a guerra. Depois casou com um camarada que só conheceu anos mais tarde e por sinal estivera na Guiné.
Abraço amigo.
Zé Teixeira