Caro Carlos,
De acordo com o que temos conversado junto envio um ficheiro com algumas histórias da minha passagem pela Guiné.
[...]
Dada a extensão do texto, e se achares nele mérito suficiente para uma eventual publicação no blogue, esta pode ser feita, naturalmente, de forma faseada e de acordo com a disponibilidade de espaço de que disponhas. Em geral, as histórias seguem a ordem cronológica mas podes ordená-las como te der mais jeito.
Um grande abraço
José João Domingos
Ex-Fur.Mil. da 2.ª CCAÇ do BCAÇ 4516
(Colibuia, Ilondé e Canquelifá)
********************
1 - BOLAMA
À vista do cais de Bissau, saí diretamente do “Niassa” para uma Lancha de Desembarque Grande (LDG) que me levou a Bolama para fazer a Instrução de Aperfeiçoamento Operacional (IAO), onde só cheguei no dia seguinte.
No cais de desembarque apareceram dezenas de crianças negras propondo-se transportar as bagagens dos militares até ao quartel, que era próximo, a troco de uns pesos. Era doloroso vê-los arfar debaixo de malas maiores do que eles, sendo frequente os donos das malas pagar-lhes e fazer eles o serviço. Entretanto, aqueles que não tinham arranjado cliente colocavam-se ao lado dum recém-chegado que transportasse um saco de plástico e, subrepticiamente, no meio da barafunda, com as unhas, iam produzindo rasgões no saco até que o seu conteúdo caísse no chão após o que, em bando, disputavam os despojos.
À porta do quartel contratava-se a lavagem de roupa sendo de notar que as lavadeiras levavam um preço mais alto a quem tinha maior rendimento. O preço era contratado à vista dos galões, divisas ou na sua ausência, não importando a quantidade ou a sujidade da roupa.
Num rápido reconhecimento à cidade, que já tinha sido capital da Guiné, e perante tal deceção, poderia perguntar-se que civilização, após 500 anos de domínio, apenas consegue produzir uma cidade daquelas, com edifícios degradados e ruas sem asfalto. Creio ter sido aí que me foi dada uma forte machadada no patriotismo que transportava na bagagem. Não muito mais tarde, tornou-se claro, para mim, que aquela guerra não tinha razão de ser e que nunca iria ter o nosso lado como vencedor. Era uma questão de tempo e, hoje, estou convicto que quem comandava as tropas no terreno tinha já consciência disso. Apenas aqueles que, no remanso dos gabinetes, planeavam as ações estavam míopes para a realidade.
Bolama: desfile perante o Governador
********************
2 - AS LAVADEIRAS
À chegada a Bolama estavam junto do aquartelamento várias lavadeiras negras na expectativa de encontrar novos clientes. Se bem me lembro, o preço para a lavagem de roupa era de 50 pesos para os soldados, 70 pesos para os sargentos e 100 ou 120 pesos para os oficiais. O preço para o comandante eram 150 pesos.
Os periquitos (eu era um deles), antecipadamente informados, procuravam discutir os preços fazendo-os baixar ou procurando incluir cláusulas para além da simples lavagem de roupa (pessoal lava tudo). De qualquer modo, o negócio fazia-se com alguma facilidade pois se a oferta era muita também a procura era bastante e rapidamente se chegava ao ponto de equilíbrio.
Ressalta, pelo acima exposto, a justiça relativa do pessoal guineense que, sem consultar manuais, pedia mais a quem mais recebia. Mas, esta forma de proceder viria a dar origem a um caso caricato e que levou algum tempo a resolver.
Na Companhia de Comando e Serviço (CCS) do Batalhão havia um sargento-ajudante (que foi evacuado após um ataque a Bolama a 3 de Agosto de 1973), já com bastantes anos acima dos cinquenta e muito cabelo branco, que ostentava um distintivo (escudo) desconhecido para a lavadeira. Esta entendeu que ele seria o comandante e, como tal, teria que pagar pela lavagem de roupa a quantia máxima, situação que apenas foi corrigida na presença do verdadeiro comandante.
Por outro lado, o metropolitano vivaço contratava a lavagem de roupa ao preço estabelecido mas, na trouxa de roupa suja para lavar, incluía a roupa de outro camarada com porte físico semelhante, baixando para metade a sua despesa. Na resposta, a lavadeira, sentindo que estava a ser intrujada, exigia uma barra de sabão adicional dado o anormal volume de roupa para lavar.
Ainda hoje me pergunto como é que se pensava conciliar mentalidades tão diferentes.
Bolama: roupa limpa, ruas sem asfalto e cais de Bolama ao fundo
********************
3 - ORAÇÕES
Embora não tivéssemos tocado em Bissau, a cidade, vista do mar, parecia ter alguma dimensão e vida. Ao contrário, Bolama foi uma deceção, com edifícios degradados e ruas sem asfalto.
Nos tempos livres, que eram poucos, alguns de nós frequentavam a piscina, junto ao mar, onde, perto da sua entrada, existia um quiosque com uma pequena esplanada, que servia um café manhoso, cerveja e digestivos, incluindo aguardente de cana.
Um domingo, ao fim da tarde, estava com outros camaradas na tal esplanada, bebendo cerveja, quando comecei a sentir movimento próximo das minhas costas. O camarada que estava na minha frente fez-me um sinal que não entendi e, entretanto, voltei-me e deparei com um quadro que só conhecia dos filmes: voltados para nordeste estavam três guineenses, ajoelhados no chão, cada um em cima dum tapete, a fazer as suas orações.
Não houve, nem tinha que haver, qualquer comentário da nossa parte que perturbasse o normal desenrolar daquela atividade. Mais tarde, noutros locais, este comportamento era tão comum que ninguém o estranhava. Porém, pensei que teria sido útil que os militares oriundos da Metrópole tivessem recebido alguma informação no sentido de aceitar e respeitar as crenças alheias, mas, francamente, não me recordo de a ter recebido.
Bolama: a piscina
********************
Textos e fotos: © José João Domingos____________
Nota do editor
(*) Vd. poste de 10 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14727: Tabanca Grande (467): José João Braga Domingos, ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (Colibuia, Ilondé e Canquelifá, 1973/74), 691.º Grã-Tabanqueiro
Sem comentários:
Enviar um comentário