1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Agosto de 2014:
Queridos amigos,
O romance de João de Melo centra-se em Calambata, junto de S. Salvador, norte de Angola. É muito mais do que um romance de guerra, analisa usos e costumes, vai cerzindo o português gentílico, analisa a compra do café pelos colonos a preços miseráveis, e assistimos às bebedeiras monumentais dos trabalhadores que tudo compram a esses colonos até ficarem sem um angolar. O escritor desenha um cenário em que a guerrilha vai em crescendo, o que obriga a multiplicar as operações e a procurar suspeitos nas sanzalas. É um livro que ficará nos anais da literatura, de uma amargura sem fim, entremeando a candura e a brutalidade sem restrições.
Leitura imperdível, portanto.
Um abraço do
Mário
Autópsia de Um Mar de Ruínas (2), por João de Melo
Beja Santos
Estamos em Calambata, não muito longe de S. Salvador, norte de Angola, em plena guerra, João de Melo descreve a sua vida como furriel enfermeiro, é implacável nas suas descrições anticoloniais, não esconde o seu asco à violência das polícias, tem sempre um olhar de aconchego, de delicadeza, com os mais frágeis, com os inocentes. Veja-se como descreve os meninos que vão buscar as sobras das refeições no quartel:
“Vindos numa corrida desde a porta de armas, com os cães ladrando-lhes à canela, no meio de um rumor de latas suspensas do arame, os miúdos enxameavam por ali. Tristes na sua sujidade e na sua nudez, vinham derriçar-se nos muros do refeitório, à espera dos restos que sobrassem dos pratos de alumínio. Por vezes um cozinheiro gordo agarrava na colher de pau e gritava: Putas daqui pra fora, não há nada para ninguém!
Alguém o enfrentava, de cinturão nas mãos, pronto a malhar naquele costado gorduroso:
- Deixa lá os putos em paz, texugo de panelas. Bota cá para fora as sobras, quando não ponho-te a derreter nesse maldito fogão de lenha.
De sorte que os miúdos, os pobres e infelizes meninos atacavam em bando os caixotes do lixo, raspavam com as mãos o arroz encaroçado no fundo daqueles tachos medievais, serviam-se de um espeto para remover as bolas de cimento do esparguete e as cabeças do peixe – e enchiam à pressa as suas latas enferrujadas com restos de sopa, pedaços de pão molhado, ossos moribundos que levavam para os irmãos mais velhos, para mama doente ou para vavó com fastio de morrer em breve”.
Há descrições da messe de sargentos que entrosam o lirismo, mas também o homem reduzido a uma ilha deserta, a sensualidade epidérmica:
“O furriel Borges sentava-se à tarde, olhando para muito longe e pensando na mulher e as filhas. Era dos tais que bebia sem jeito, por força daquela espécie de elixir que levava a ver os anjos nos sítios improváveis e um inferno com anjos. Bochechava o uísque, dava-lhe pequenas dentadas, e os seus grandes dedos de gafanhoto apalpavam o copo ao longo das arestas. O furriel Tavares escrevia três cartas por dia à mulher da sua vida, e eram tratados práticos acerca do futuro de ambos, com poemas espontâneos ou minúsculas zangas a propósito de uma frase ou de um facto sem importância. O furriel vaguemestre combinava repetidamente com o furriel Silvares um encontro em Lisboa no dia 18 de Julho do próximo ano, quando fossem de férias à Metrópole. Iriam fazer uma orgia ou uma bacanal com as gajas da Faculdade de Farmácia, grande e especial coxame aquele, rapaz, que havemos de vir de lá de gatas ou de ambulância".
Também a descrição da chegada das lavadeiras ou dos doentes é parágrafo antológico, como segue:
Por volta das cinco da tarde, chegava a população civil à porta de armas, para receber os tratamentos do furriel enfermeiro. Ou eram as lavadeiras trazendo as roupas aos mui respeitosos patrões de sábado, dia de pagamento desse trabalho de lavar os brancos até nas partes proibidas. Vinham velhas com rosto de pergaminho e crianças com a febre das abelhas, tão comidas pelos furúnculos e pequenas descargas da diarreia que já não eram abelhas nem sentiam a sua febre; vinham velhos coxos e sem sangue: tinham a tosse consente e o ar ensimesmado dos eternos incompreendidos deste mundo e apoiavam-se a um graveto com a vaga forma de uma bengala, chupando sem cessar os cachimbos de bambu. Vinham mulheres sem sorriso nem alvoroço, com filhos às costas ou grávidas de muito tempo. Tão velhas eram, algumas delas, que mais pareciam avós engravidadas à força, pois o seu olhar de terra atingira já a baciez das lulas, a água parada dos pântanos, a idade dos metais inutilizados. As restantes recebiam os soldados e devolviam-lhes a roupa lavada e cerzida; recebiam a furiosa arremetida das mãos de ferro que lhes procuravam os seios; eram homens de dentes cerrados, tontos do seu desejo de mulher, cujo olhar se turvava como o dos violadores enlouquecidos, enquanto a fúria delas crescia, tornava-se lívida e dava ao bronze da sua pele um brilho de punhais esquivos”.
As descrições dos ambientes nativos têm uma força invulgar, são telas vivas, parece que atravessamos os caminhos entre as cubatas, ouvimos falar um português gentílico, João de Melo entremeia os registos duros com o olhar antropológico, prepara na lentidão deste morno olhar grandes angulares como a chegada das tropas a S. Salvador, sentimos a euforia dos militares, o olhar duro dos colonos que parecem dizer:
“Vão-se embora e deixem a guerra por nossa conta: uma simples batida pelo Norte serve-se ao domicílio um cadáver por cada terrorista, e Angola é nossa”.
É a primeira vez que lá vai o furriel enfermeiro, anda por ali embasbacado a ver a estação de rádio, o aeroporto de terra atida, a própria sanzala. Espera o amigo Gonçalves que lhe traz notícias da família.
A alquimia da escrita toma também conta de nós quando se vão pincelar cenas de batalha, o autor introduz a África mágica:
“Eram apenas as nove da manhã em ponto, e as nervuras vermelhas das acácias destilavam sobre as lavras de mandioca o óxido do seu cobre solar; os imbondeiros e as palmeiras, assim à distância, devolviam-nos o mar sem água, e era o deserto; a areia fumegava, húmida, no salgema da pista de aviação, e entrara pelo quartel dentro a paz sem cor dos dias em que se espera a morte e ainda nada aconteceu (…).
E foi então que a voz do Santiago telegrafista, saindo disparado do posto da rádio, chegou ao meio da parada e gritou: O pelotão está debaixo de fogo! O pelotão está debaixo de fogo!
De modo que, sabendo nós que trinta desgraçados rapazes da nossa idade começavam a morrer, pusemo-nos todos de pé, em grande e alvoroçada agonia. Corremos à procura dos camuflados e das armas (…).
O furriel Borges reapareceu da névoa, como se emergisse do fundo do mar de ruínas. Era um homem ainda maior do que o deus da morte. Pairava nele uma espécie de paisagem naufragada no mar, porque apenas abriu os braços e disse: Tudo morto. Tudo morto. O alferes Abílio morreu. Está tudo cheio de mortos”.
Segue-se a dimensão do desastre, os feridos agitam-se, o furriel enfermeiro acorda, grita por um helicóptero com serviço de sangue a bordo. E há os sinais grotescos desses objetos que sobravam da destruição:
“Eram gorros fitas vazias de munições, estúpidas bocas de cartuchos de balas, um cantil sem água; uma bota desgarrada sorria de lado à morte acontecida há umas horas apenas, tendo dentro de si alguns dedos destruídos, com enegrecidas unhas podadas à navalhada; um papel com manchas de gordura fora espetado numa árvore muito sofrida, com grossos nós onde alguns elefantes teriam já coçado os seus parasitas. O alferes ficou um instante a decifrar aquela letra torcida e incerta. Seguiu com o olhar todos os riscos e gatafunhos, fascinado mas enchendo-se aos poucos de cobre. Acabou por dizer em voz alta: Filhos de uma grande puta!”.
Há gente perdida, vai reaparecendo marcada pela alucinação, e dá-se ao regresso lento e doloroso, têm oitenta quilómetros a percorrer, é grande a fome e muita a sede, Calambata está longe, o furriel enfermeiro marcha transfigurado, quando recupera o ânimo vai cuidado dos seus feridos.
(Continua
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Nota do editor
Poste anterior da série de 27 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14934: Notas de leitura (741): “Autópsia de um Mar de Ruínas”, de João de Melo (1) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
Os sacrifícios dos enfermeiros na nossa guerra do Ultramar, devem ser olhados com tanto respeito ou se é possível dizer com mais respeito do que o esforço de um bom Comando ou de um condecoradíssimo Paraquedista.
Pois em geral as tropas especiais vinham de pessoal voluntário e voluntarioso e nem seria tão politizado como um enfermeiro.
Ainda bem que continua a haver enfermeiros para aparar crianças africanas em Calais, Lampedusa, e nas vedações de Ceuta.
Na cidade de Luanda presume-se que haverá mais de 5000000(5milhões)de jovens sem qualquer prespectiva de vida, alguns terão vindo de São Salvador do Congo, filhos daqueles que iam pedir os restos ao quarteis que eu conheci, de João Melo.
Vai demorar muitos anos para se poder escrever a verdadeira história, e ainda bem que aqui neste blog, cada um escreve a sua própria vivência colonial.
Vem no Correio da Manhã de hoje, que um herói português da ex-Guiné Portuguesa tem a casa hipotecada.
Mas há guineenses, tambem portugueses, mas da Guiné independente, e heróis guineenses, que também têm casas em Lisboa e Porto, mas sem hipoteca.
Obrigado BS
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