GUINÉ, IR E VOLTAR - VIII
Hotel Portugal
A comunidade cabo-verdiana estava muito presente na Guiné, não só em número como também na posição social que ocupavam. Evitavam misturar-se com a tropa e distinguiam-se do resto da população guineense, embora muitos estivessem envolvidos no processo de insurreição, uns mais activamente que outros naturalmente. Tinham os seus pontos de encontro, quase exclusivos, normalmente em casas de familiares ou amigos e gostavam de se manter assim.
A casa da Dora, chamemos-lhe assim, nas margens do bairro do Cupilom, a caminho de Santa Luzia, era um exemplo desses. Apareciam frequentemente recém-chegados de Santo Antão, de S. Vicente e das outras ilhas. Juntavam-se lá, qualquer coisa servia de pretexto para conversarem e enquanto bebiam umas cervejas abanavam-se ao ritmo das mornas e coladeras1 do gira-discos.
Conheceu a Dora por intermédio de um amigo comum cabo-verdiano e, de vez em quando, passava por casa dela, encarando os olhos desconfiados de alguns dos presentes.
Bissau não tem nada para fazer, só sarilho, mais nada, dizia o empregado de mesa do restaurante do Hotel Portugal. Com a sua idade quem não estava aqui, sei eu quem era!
Senhor Gabriel, acho que vou até ao cinema, à UDIB2, tenho que me despachar senão já não vejo o princípio do filme. Contas feitas, o cinema logo ali, bilhete na mão, escadas acima que gostava de ir para o balcão, ver o filme e lá de cima via-se melhor.
Documentários, as inaugurações no Império Português com o Pedro Moutinho, o Fernando Pessa, uma curta antiga para cumprir programa, e começa Zorba, o Grego, com o Anthony Quinn a estrelar.
O filme a decorrer, sempre a mesma música, uma seca, se calhar até é um bom filme, o movimento um bocado para o lento, a madeira da cadeira incómoda de mais para as costas, os joelhos todos encolhidos, nem podia estender as pernas, no intervalo se isto não acelera vou mas é embora. Não esperou pela segunda parte, recolheu a Brá arrependido de não ter ido até à casa da Dora.
Da metrópole chegara há poucos dias a Brá um batalhão, um dos primeiros de fardas verdes.
Nessa noite do Zorba ouviam-se explosões ao longe, para os lados de Jabadá, do outro lado do Geba, flagelações que se estavam tornar diárias e que não despertavam qualquer interesse, para além da curiosidade inicial, tipo que estrondos são estes, a quem estivesse em Bissau.
Quando estava a entrar no sono acordou com ruído de vidros a partirem, barulhos de vozes logo a seguir e minuto depois mais nada, o silêncio. Deixou-se estar, afinal não era nada com ele.
Na manhã seguinte, como era hábito os comandantes de grupo reuniram-se no gabinete do Capitão Rubim. Esta noite, em frente aos quartos dos sargentos, alguém lançou uma granada ofensiva para a frente de um jeep que passava, começou o capitão. Alguém sabe quem foi? E por que havia de ser alguém nosso, meu capitão?
Tempos depois veio a saber que um dos jovens comandos, talvez com insónias e farto da paz podre dentro do aquartelamento, mexia-se e remexia-se na cama, dormir é que não conseguia. Sabe-se que as insónias nem sempre são boas para as ideias. Às escuras tirou uma granada ofensiva que tinha debaixo da cama, pegou num fio da mesa de cabeceira e, sorrateiro, saiu para a rua. Olhos para um lado e outro, rastejou para a valeta, entre o passeio e a rua pouco iluminada. Deitado, colocou a granada com o fio atado na cavilha, por baixo de uma pedra solta na sarjeta. Ao atravessar a estrada para prender a outra ponta do fio, viu faróis de viatura a aproximarem-se. Escondido na valeta, esperou que passassem. Depois, completou o serviço. Regressou ao quarto, fechou os olhos e esperou que alguma coisa acontecesse.
Minutos depois, um jeep com oficiais do jovem batalhão foi sacudido por uma explosão. Vidros das janelas voaram em estilhaços, saltou pessoal de todos os lados, houve quem visse um capitão de cuecas com capacete na cabeça e Walter na mão a dizer que Brá estava a ser atacado. Mantinha-se assim tudo bem, o jovem batalhão desperto para as incertezas da guerra bem com o mau ambiente entre eles.
Era no Hotel Portugal que se juntavam para jantar, desde há uns tempos. O esforço era muito e a comida na messe não abria o apetite. Tinham uma mesa reservada para os quatro, o Vilaça, o Toni Ramalho, o Gião, o narrador desta história, e por vezes um ou outro camarada.
Quando havia vaga naquela mesa do restaurante do hotel, Carlos3 sentava-se com eles, fazia grupo. Carlos nascera de um parto prematuro, um nascimento difícil, tinha ido lá cima e vindo outra vez, o obstetra a explicar, orgulhoso do serviço, com as notas numa mão e a outra a fazer festas na carita do recém-nascido.
Infância e adolescência protegidas, a mãe sempre ao lado dele, o pai a ganhar dinheiro para manter a mulher viçosa, bem tratada, limpezas de pele num instituto lisboeta com fama para massagens nas pernas, coxas, cintura, tudo a pagar ao mês, o filho delicado nas mãos para se entreter, quando o bebé abria as goelas passava-o para a ama.
Nunca foi um aluno famoso, mas andara para a frente, até ao 7.º ano. E o pai ganhara experiência, com o decorrer dos anos evoluíra de vendedor de tecidos na praça de Lisboa para um industrial respeitado, arranjara conhecimentos e, sabe-se como as coisas são, conseguiu incorporá-lo na Força Aérea, já que livrá-lo da tropa não tinha sido possível.
Apreciador do belo sexo, o respeitável papá conhecera numa tabacaria do Rossio uma jovenzinha a rondar os 18, magra, engraçadinha, a prometer melhorar com o tempo. Iniciada uma relação mais íntima, alugou-lhe um pequeno estúdio na Infante Santo e arranjou-lhe um emprego, melhor que o da tabacaria, ao balcão de um estabelecimento novo, muito conhecido no fabrico e comércio de todo o tipo de artigos para bebés.
Com o novo emprego, ganhou uma alimentação mais cuidada, outros cuidados também, as últimas novidades em cima e dava nas vistas, o corpo arredondara onde era preciso e, claro, parava os atentos e também muitos distraídos.
Carlos evoluiu normalmente, embora com algum atraso num ou noutro aspecto que o pai, atento ao seu único filho, achava estar na altura de corrigir. Dias depois do Carlos ter feito os 18 anos levou-o a jantar ao Estoril, ao casino, fizeram a digestão pela Rua Direita de Cascais, e depois meteram-se no Alfa Romeo, de regresso a Lisboa.
Pelo caminho foi-lhe contando como se iniciou. A mim aconteceu-me uma boa.
No Bairro Alto, tinha 16, não é coisa que se esqueça, num salão enorme, elas todas sentadas à volta, umas a ler revistas, outras a fazer malha, sentei-me, envergonhado, elas todas a olhar para mim, aquela é mais nova, mais jeitosa, não sabia como fazer, sem eu saber como, ela pôs-se a pé, pegou-me na mão, um corredor sombrio para um quarto, comecei a tirar a roupa, ela também, só ficou com o sutiã, deitou-se, eu ao lado dela, encosta-te a mim, estás à espera de quê, eu sem saber bem o que fazer, lá me cheguei, a renda a fazer-me cócegas na cara, o trabalho foi todo dela, puxou-me para cima, abriu as pernas, que pena eu não estar de fora a ver, lembro-me de pensar, a mão dela em mim, toda molhada, parecia que tinha posto manteiga, gargalhadas do pai e do filho. Não somos de pau não é Carlos?
Almirante Reis acima, estacionou na Gomes Freire, um prédio de vários andares, subiram no elevador, dedo na campainha, uma menina de gosto a abrir-lhes a porta, a jovem a preparar-lhes um uísque, o sapato de tacão alto, a racha da saia, um piscar de olho, desenrasca-te Carlinhos, agora é contigo, vai correr tudo bem, a menina à frente a abrir-lhe a porta, Carlos de pé também, até logo, paizinho!
O Carlos, acabado o curso na Força Aérea foi mobilizado para Guiné, para a Base Aérea de Bissalanca4, nos arredores de Bissau. O pai e a mãe despediram-se dele no aeroporto com as cenas do costume. Telefonavam-lhe uma vez por semana, queriam saber tudo, como era a guerra, se era tão mau como alguns diziam, se era bem tratado, se tinha muitos amigos, como se chamavam, o Carlinhos, cheio de saudades, estou morto por te ver, mamã! Mal o deixaram foi de licença à metrópole.
Mais de um mês depois, quando regressou ao Hotel Portugal, os quatro da mesa pararam os garfos e facas, ficaram-se a olhar para aquela moça branca, de cabelo louro de fogo pelas costas abaixo, a fazer-lhes lembrar a Brigitte Bardot, amarrada ao braço do alferes Carlos Morais5.
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Notas:
1 - A coladera é uma morna mais rápida. Se se tocar uma morna e acelerar fica uma coladera. Melodicamente são a mesma coisa, embora falem de coisas diferentes. A letra da morna fala de amor perdido, a coladera fala de alegria. O funaná fala de mensagem. Conta-se que o termo vem do século IX e deve o nome a dois músicos, um chamava-se Funa e o outro Naná. Alguns relatam que não era muito bem vista pelas autoridades coloniais de então, que a chegaram a proibir.
2 - União Desportiva Internacional de Bissau
3 - Nome fictício
4 - Base Aérea 12
5 - Nome fictício
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Um guia
Tinha sido apanhado numa emboscada que a tropa fizera junto a Mantida.
Ouvira um tuga, branco de barba preta, dizer a outro, amarra o gajo, amarra-o já, eu vou-me àquele. Nem sentira as cordas que lhe prenderam nas mãos, que as pernas não precisavam. Deitaram-no numa maca, camisa e calças em sangue, atordoado, só se lembrara que caíra para trás, sem forças.
Deram-lhe uma injecção no braço, nem sentira, só vira a seringa na mão do soldado de cigarro na boca, a cinza a cair por ele abaixo. Adormecera logo, mal o transporte arrancou. Em Mansoa, os olhos fitos no tuga, não dava respostas às perguntas, um capitão a dizer, que venha outro, e agora?
As barracas de Uália foram reconstruídas a nordeste da antiga, estão lá 50 guerrilheiros mais ou menos assim: Maonde tem 12, José Camala 13, Imbunhe 13 também e Bacar Seidi tem 12 homens.
Exausto de febres e dores no corpo todo, fugia com os olhos de vergonha dos dois brancos da polícia e do balanta traidor que falava a língua dele. Ele percebia o que falavam, sabia português, andava na escola de Morés, fazia ditado e até já escrevera redacção. Armas, cada guerrilheiro tem uma. No acampamento tem mais 2 metralhadoras ligeiras, escreve Picão6, deixa o cigarro para depois, temos mais que fazer, escreve lá, têm mais 2 bazucas, não, escreve antes, 2 lança granadas-foguete e 1 morteiro, é de 60, de 80 ou quê pergunta ao tipo anda! De 82, de 82 escreve Picão.
Vergonha na cara, tens que ter, não mereces estar agora com os camaradas, deixaste para trás o Baldé, o Camará, o Injai, todos os do acampamento. Que vais fazer agora que falaste? Tinhas aprendido com os outros a contar coisas verdadeiras, as que menos importavam, com muitas outras falsas, de assuntos mais importantes do Partido.
Mas não aguentara, nunca pensara que pudesse ser deste modo, se os camaradas soubessem haviam de lhe perdoar. Mesmo assim, não estava certo, o melhor agora é contar tudo direito, fazeres-te amigo deles, talvez até mais tarde ficar milícia ou tropa, quem sabe?
Dispõem, escreve Picão, de alguns abrigos individuais, a toda a volta, mas para homem deitado, no cruzamento de caminhos uma sentinela, uma armadilha no trilho Bambaia-Gussará, que o prisioneiro sabe evitar, escreve, já está, Picão?
Continua, a população está afastada das casas de mato, para Oeste, está desarmada.
Com menos dores, um dia pusera-se a pé na enfermaria. Mal o viram a andar, pegaram nele, outra vez, muitas viaturas a caminho. Falara antes de partir com um tuga, com outro balanta a fazer de intérprete, repetira tudo direito.
O comandante tuga disse que se os leva direito ao acampamento tudo vai correr bem, se não leva não vai ser bom.
Tinham partido nos carros de Mansabá quase até Demba Só, meteram para dentro a pé, sempre a andar até à bolanha, passaram o sítio mais estreito e pouca água também, andaram outra vez muito até se sentir fraco e pedir para parar. O comandante tuga veio ver. A olhar, mexeu nas cordas, a perguntar ao soldado, tão baixo que mal se ouviu, parar?
Desconfiado, sempre a olhar, os olhos dentro dos óculos amarrados com uma fita à cabeça, coisa boa não deve ser. Mas ele foi lá para trás, o que foi fazer não vi. Chegou outra vez, falou no crioulo dele, se estava melhor, sim, já pode andar outra vez, começámos a caminhar até chegar lá, ao acampamento. Deixaram-me cá fora, amarrado ao soldado, abrigado numa palmeira. Depois, a tropa entrou a fazer fogo nas casas.
Na volta, a corta mato, rebentamentos muito grandes em Uália, disseram que era da artilharia dos tugas, quase no mesmo trilho da caminhada para o acampamento. Quando pararam, sol alto, os aviões a brilharem ao sol, a abanarem as asas, a irem embora, o outro avião pequenino, quase branco não saía de cima, o tuga com quico grande, com um rádio, como uma banana grande, a falar.
Depois retomámos o caminho até Demba Só onde estavam muitas viaturas, sempre a andar até Mansabá.
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Nota
6 - Nome fictício
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Artigo 4.º do RDM
Os acontecimentos na Associação Comercial alteraram o ambiente na cidade. A desconfiança entre a população negra, cabo-verdiana e a tropa, os nervos crispados, a porcaria mais ou menos submersa, subiu tudo. Levava-se uma vida normal, mas por toda a cidade irrompiam pequenos incidentes e à noite viam-se poucos civis. A PM aumentara os patrulhamentos. O PAIGC, como lhe competia, aproveitava e tirava dividendos.
Nos dias a seguir ao sucedido choveram exposições no Palácio, sete, dissera, todo cheio de importância o Ajudante de Campo do Governador. O General Schulz recebera individualidades civis, apresentara desculpas formais à Associação Comercial, e aos finalistas prometera pagar os prejuízos e tomar providências enérgicas, o habitual nestes casos.
Dias antes, a PM fez o relato dos acontecimentos e endereçou ao Comando Militar a participação contra o Alferes Godinho e um grupo de militares que não conseguiu identificar. Inquirido o Godinho por um capitão, responsável pelo levantamento do “competente auto de averiguações”, sobre quem foram os militares que o acompanharam na perturbação da ordem pública, o mesmo terá respondido que tinha bebido várias cervejas, que mal se lembrava do que tinha ocorrido e que mesmo que se lembrasse não denunciaria ninguém.
Quando tiveram conhecimento desta participação, os camaradas do Godinho decidiram responsabilizar-se e, individualmente, em dias diferentes, dirigiram-se ao QG, procuraram o capitão e declinaram as respectivas identificações.
O Capitão Rubim interrompeu os desenhos que estava a fazer. Começou por lhe dizer que as saídas para a cidade estavam proibidas. Depois, pediu-lhe explicações.
Que se tudo tinha acontecido como se contava, não tivesse dúvidas que haveria consequências. O Governo da Província estava a ver o programa de pacificação a andar para trás, que aguardasse o auto de averiguações, que era tudo, chutara o capitão, cada vez mais longe dele e dos outros.
Naquela mesma tarde deu-lhe ordem para preparar o grupo para ir para o Xitole. Para quê? Bater a zona, procurar o IN, dar-lhe caça, para que é que havia de ser? Mantém-se lá e aguarda instruções. Mais alguma questão?
Embarcaram num Dakota até Bafatá, uma coluna auto levou-os para Fá Mandinga, onde passaram a noite e no dia seguinte apanharam uma coluna de reabastecimentos para o Xitole.
Até Bambadinca o percurso foi-se fazendo. Depois, até ao Xitole foram sempre debaixo de chuva, os quilómetros nunca mais acabavam, as viaturas civis que integravam a coluna metiam-se na lama até à carroçaria e as viaturas militares GMCs, Mercedes e Unimogs atolavam-se constantemente.
Chegaram ao rio era noite cerrada. O Corubal7 parecia o Atlântico quando o atravessaram. Quando entraram no Xitole deitaram-se. No dia seguinte começou o inventário dos reabastecimentos. Estavam reduzidos a metade, alguns destruídos pelas águas, outros desapareceram ninguém sabia ou queria dizer como.
Escreveu, nessa altura, no seu diário, um dos participantes:
Naquela mesma tarde deu-lhe ordem para preparar o grupo para ir para o Xitole. Para quê? Bater a zona, procurar o IN, dar-lhe caça, para que é que havia de ser? Mantém-se lá e aguarda instruções. Mais alguma questão?
Grupo antes de embarcar no Dakota, rumo a Bafatá
Embarcaram num Dakota até Bafatá, uma coluna auto levou-os para Fá Mandinga, onde passaram a noite e no dia seguinte apanharam uma coluna de reabastecimentos para o Xitole.
Até Bambadinca o percurso foi-se fazendo. Depois, até ao Xitole foram sempre debaixo de chuva, os quilómetros nunca mais acabavam, as viaturas civis que integravam a coluna metiam-se na lama até à carroçaria e as viaturas militares GMCs, Mercedes e Unimogs atolavam-se constantemente.
De Bambadinca para o Xitole, atascamentos sucessivos.
Fotos de Torcato Mendonça, com a devida vénia.
Chegaram ao rio era noite cerrada. O Corubal7 parecia o Atlântico quando o atravessaram. Quando entraram no Xitole deitaram-se. No dia seguinte começou o inventário dos reabastecimentos. Estavam reduzidos a metade, alguns destruídos pelas águas, outros desapareceram ninguém sabia ou queria dizer como.
Escreveu, nessa altura, no seu diário, um dos participantes:
"Em 11 de Outubro, o nosso grupo deslocou-se de Bissau para Bafatá num Dakota. Depois, em coluna auto, para Fá, onde dormimos. No dia seguinte para Bambadinca onde apanhámos uma coluna de reabastecimentos para o Xitole.
Interminável a viagem, nem me lembro de quantas horas. Era época das chuvas, água por todo o lado, as viaturas atascavam-se, nunca mais lá chegávamos. A operação ao Galo Corubal era no dia seguinte. Estava tudo marcado, apoio aéreo, PCA8, companhia de apoio. Passámos o dia a desatascar viaturas, militares e civis. Chegámos ao Xitole com o dia fechado há horas. Ainda nos estávamos a sentar por ali, soubemos que havia uma mensagem radio a informar-nos que a operação tinha sido adiada 24 horas.
Dormimos, descansámos o dia e ao cair do sol pusemo-nos a caminho do Galo Corubal. Noite fechada, chuva sempre a cair, o rio a deitar por fora, noite sem luar, um caminho de desafios a ver quem caía mais, até esbarrarmos, já de madrugada, com uma sentinela que estranhou tanto movimento perto dela.
Resposta pronta do primeiro homem do grupo, o Marcelino, o ataque entusiasmado, a queda da equipa da frente nas águas de um ribeiro que ninguém tinha visto, a G3 de um que lhe escapou das mãos, a luta para a recuperar, o fogo sobre nós, o dia que surgiu quando não devia, um milícia com uma crise de nervos que parecia um ataque epiléptico, uma retirada muito difícil.
Quando a parelha de T6 nos sobrevoou, estávamos atolados na bolanha a servir de alvo a pontarias altas, só sentíamos as chicotadas. Depois foi a retirada para o Xitole com o pelotão de apoio a proteger-nos com fogo de morteiro.
O alferes tomou a decisão de reincidir na noite seguinte, contra a vontade do comandante da companhia que lhe respondeu na minha frente que não podia dar-nos apoio, que se quiséssemos ir que fôssemos. E fomos outra vez.
Noite igual às anteriores, água e mais água, parecia que a água estava do lado deles, andar difícil, chegámos outra vez à mesma zona da noite anterior.
O guia conhecia a área do Galo Corubal, só isso. Em cima daquele ourique descobrimos a cambança e entrámos num trilho que nos levou a um acampamento sem ninguém. Não conseguimos pegar fogo às casas de mato porque as duas granadas incendiárias que lançamos nem chegaram a pegar, só fumo é que saía delas. No regresso, quando passávamos em cima do ourique voltámos a servir de alvo à pontaria.
Distinguia-se bem das PPSHs e das Kalashs e barulho ritmado de uma metralhadora-pesada. Atirámo-nos para a bolanha, água quase pelo peito. Apoio aéreo fora no dia anterior, o capitão comandante da companhia que, afinal e ainda bem, resolveu apoiar com um pelotão, começou a bater as margens com fogo de morteiro e, pelo AN-PR C10, dizia para retirarmos, o que acabámos por fazer equipa por equipa.
Depois foi o regresso à estrada Bambadinca-Xitole. O pelotão reforçado de apoio e recolha esperou por nós, retirou para o Xitole, despedimo-nos, e nós continuámos até Bambadinca. A pé, como se fosse a penitência por uma operação mal concebida. Íamos parando de vez em quando, como se fosse um exercício. Uns bons quilómetros andados, ouviu-se um deles perguntar ao chefe de equipa, o Furriel Azevedo, se íamos a pé até Bissau.
Derreados por tanta chuva, por tantos quilómetros em tão poucos dias, uma coluna encontrou-nos e recolheu-nos em Bambadinca no dia a seguir, sentados e em boa ordem, apesar de tudo".
Dias depois em Brá, um capitão procurou o alferes, queria ouvi-lo para o tal processo que estava a decorrer, já tinha ouvido os outros, só faltava ele. O que tinha acontecido, como, quando, porque é que, quem fora o cabecilha, leia, assine aí em baixo, se estiver de acordo, claro.
À noite fora até Bissau, encontrar-se com os companheiros do costume.
Passaram-lhe para as mãos a "Plateia", uma revista de cinema que saía em Lisboa. Folheou-a, parou numa página. Crónica da Guiné na Plateia!
Um bando de energúmenos influenciados pelos tedies de Birmingham e Liverpool? Olharam uns para os outros, calados. Quem é o tipo que escreveu isto, perguntou.
Num daqueles dias, seguiram as indicações que o Capitão Rubim lhes tinha dado, os 5 sujeitos ao auto apresentaram-se no QG, ao Comandante Militar da Guiné. Vamos receber uma medalha cada um, disse o Godinho.
Entraram no gabinete, fizeram-lhe a continência e puseram-se em linha, aprumados. O Brigadeiro Gaspar Sá Carneiro mexia nuns papéis em cima da secretária, não encontrava, abriu gavetas, ah, estão aqui, satisfeito. Quando levantou os olhos para eles, mudou de cara.
Ora bem, antes de mais, devo manifestar-lhes o profundo desagrado que sinto em tê-los aqui nestas circunstâncias. Já tive convosco manifestações de apreço, quando o mereceram, o que não é o caso desta vez, bem antes pelo contrário. Relatar aquilo que ficou apurado, é desnecessário.
Depois, foi um por um. Tirando o caso do Alferes Godinho que teve uma redacção e uma pena diferentes, aos outros foram aplicadas as mesmas penas com a mesma redacção.
“Puno com 3 dias de prisão simples o Sr. Alferes Milº/Furriel Milº fulano de tal, porque fez parte dum grupo de militares que, trajando de modo não correspondente ao estipulado para as circunstâncias, penetrou no baile dos finalistas da Escola Técnica de Bissau, vencendo a oposição da autoridade policial de serviço no local. Infringiu os n.ºs 22.º, 41.º e 51.º do art.º 4.º do RDM.
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Notas
7 - Rio da Guiné. Nasce no maciço do Futa-Jalon, Guiné-Conacri e encontra-se com o estuário do rio Geba, a cerca de 50 km a montante de Bissau.
8 - Posto de comando aéreo (PCA) normalmente montado numa Dornier.
(Continua)
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Nota do editor
Poste anterior de 23 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14922: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (VII Parte): Clara; Apanhado à mão e Entre eles
1 comentário:
Vb, como o mundo é pequeno e a nossa tabanca é... grande, tenho-te a dizer que o teu furriel Marques de Matos é um homem da Lourinhã, que vou encontrando por aqui, aos fins de semana, e que já me tem falado dos tempos dos "Diabólicos"... O retrato que fizeste dele, num dos postes anteriores, parece-me muito bem, pelo pouco que conheço dele: "O furriel Marques, ruivo, sardento, pele clara, olhos azulados, ar um pouco místico, era um sonhador"... Já o desafiei a "entrar" para o blogue, mas não vou ter sorte, a Internet não é das coisas que o entusiasme... Vou desafiá-lo a dar uma vista de olhos à tua série...
Um abraço grande. Luís (Se passares por estas bandas, apita!)...
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