Caros camaradas
Mesmo sabendo do atraso da Guiné, fiquei bastante chocado. Chegámos à barra do porto de Bissau, na noite de 17 de Janeiro de 1967. Estranhamente, apercebi-me ter chegado. Mais parecia um pesadelo. Negros de tanga e descalços pediam de mão estendida. Comecei a escutar, descarregavam a bagagem, transportando-a. Pediam. Foi um grande primeiro choque, embora conhecesse um pouco sobre aquela realidade.
Ouvíamos uma língua que desconhecíamos. Aqui e ali escutávamos os palavrões, esses em português, daqueles nativos. Como já imaginava, aquelas gentes viviam num mundo bem diferente do nosso paupérrimo mundo português. Imagem que os transportava muitos anos atrás, sem evolução. Não tinham avançado no tempo. Atrasados sempre, e não por culpa própria.
Depois do temporal a bonança, ouvia-se dizer, mas tinha sido um choque maior para mim, choque ainda maior do que seria possível imaginar. Aquelas gentes continuavam analfabetas, e nem falavam o idioma português. Via-os estendendo as mãos implorando tabaco e dinheiro.
Avistava-se a iluminação de Bissau e o pessoal da minha Companhia unida, quem sabe se para se proteger. Houve que juntar a bagagem, tendo-se procedido ao transbordo para uma LDM e Batelão BM-1.
Ficámos espantados, visto julgarmos desembarcar na capital… Deram-nos uma maçã, um quarto de pão, uma laranja, um ovo e um destino incerto.
Depois de encaixotados avançávamos por via fluvial estreita, o mato quase que nos tocava. O capitão desconhecendo a paragem final e o tempo… O calor queimava o nosso interior e porque não existia comida, começaram a abrir as malas e comemos então uns nacos de presunto e de salpicão. Os pitéus salgados? A sede? Problemas. O calor ia aumentando à medida que amanhecia. Dormia-se aos solavancos e, só no dia seguinte fomos informados do nosso destino.
A fome e a sede apoderaram-se de nós. O pessoal começava já a sentir a mudança do clima, e depois dos vómitos, depois da saída de Lisboa, quando se tinha fome a comida já não existia e, a água escasseava. Havia quem comesse as cascas das laranjas, rindo talvez para disfarçar.
Avistámos uma povoação, na margem direita do rio, tendo o comandante de companhia talvez, através dos fuzileiros que nos acompanhavam, dito tratar-se de Cacine. Uma “avenida” de palmeiras, e cá bem à frente, militares gritavam:
- Salta que é periquito!
Com um pequeno barco os fuzileiros chegaram a terra, trazendo sacas. Verificámos serem laranjas, bem sumarentas, mas mais pareciam vinagre. Segundo diziam, tínhamos que nos apressar devido à maré. A mata nas margens era densa e nós éramos não só uns intrusos, mas também periquitos, termo utilizado para designar todos os militares que estavam no início da comissão. Muito embora as azedas laranjas não matassem a fome, de algum modo ajudavam a enganar o estômago.
O capitão, falando com os oficiais e sargentos informou que se juntaria a um pelotão uma secção, ficando destacados num local de nome Ganturé. Os restantes ficariam instalados em Gadamael Porto.
Feito um sorteio, tocou ao meu pelotão ficar no destacamento. Desembarcámos em Gadamael Porto, e o termo “porto” não tinha significado, visto não existir porto algum. Nem sequer um simples cais.
- Salta, salta periquito! – Ouvíamos, enquanto um aglomerado de militares pulava de contente.
Entendia aquela alegria, mas a verdade é que se éramos os periquitos, e a CCAÇ 798 é que saltava. Juntava-se a população civil, esta olhava-nos, não expressando alegria.
De imediato tivemos que carregar as malas e saltarmos para cima de uma caixa de uma GMC, que substituía o cais que não existia. Houve quem escorregasse e caísse no lodo. Os gritos continuavam, e as viaturas militares preparadas para transportarem o pelotão e a secção para Ganturé, começaram a andar. Não houve tempo para analisar aquele local isolado no mato, e enquanto uns recebiam instruções e continuava a descarga, nós avançávamos, também para local incerto. Alguém avisou não ser necessário picar visto existir movimento de viaturas durante todo o dia.
Ganturé em 1967
A Companhia de Caçadores 798, começava a embarcar na LDM e no Batelão. Para eles era a alegria do fim da comissão.
Depois de passado o casarão à esquerda, onde funcionava o comando, ultrapassámos o abrigo, que funcionava como porta-de-armas e, mais ou menos percorridos três quilómetros, cortámos à esquerda e eis à nossa vista a “colónia de férias”. Saíam já outras viaturas com os militares da companhia rendida, que gritavam sorridentes em altíssimos berros:
- Salta periquito, salta periquito...
Árvores de alguma altura abundavam. A população civil aproximava-se, querendo conhecer os novos vizinhos, enquanto um Alferes se apresentava. Tinha ido em rendição individual e ficaria ainda com a nossa companhia, segundo afirmado pelo próprio. Um militar, praticamente sem farda, disse ficar também connosco, aproximou-se de mim:
- Quer comer uns borrachos fritos?
Olhei-o admirado. Afinal aquilo não era assim tão mau. Até existiam uns pombinhos para comer!
- Onde estão eles?
- Oh Furriel, venha comigo!
Olhei para cima dos ombros e vi as divisas camufladas e retirei-as colocando-as no bolso.
Enquanto reparava que aquele 1.º Cabo, não vestia nenhuma roupa do exército: uns calções de banho e uns chinelos de enfiar nos dedos.
Fritados os borrachos e umas batatas, iniciei a minha primeira refeição em terras de África. E que pitéu! Não sabia a razão da escolha ter recaído sobre mim, o prémio daquela refeição acompanhada por cervejas de seis decilitros. O nosso 1.º Cabo que nunca me vira, confortava-me dizendo para eu não me preocupar, porque aquelas aves que comêramos não chegavam para todos, e estava-se a fazer o jantar, bacalhau com grão.
Fora um milagre, uma bênção. E depois da primeira fome, a primeira fartura, porque estava disponível para trincar a bacalhoada, logo que estivesse pronta.
Começámos a instalar-nos e o Alferes que ficara esclarecia-nos, acompanhando-nos.
Fiquei numa barraca encostada ao abrigo onde ficou a minha secção, coberta com chapa zincada. Era decerto um forno. Havia uma cama e um caixote de munições que funcionaria como mesa-de-cabeceira, sobre a qual via uma garrafa de cerveja cheia de gasolina com um pavio enfiado no buraco da carica. Era a iluminação da minha nova moradia.
Comecei por conhecer a população. Lindas bajudas. Converti-me.
Não entendendo patavina do que diziam. Prometi a mim próprio não contribuir para um palavreado que não entendia, mas repleta da asneira, em bom português. Todos senhores e senhoras, o nosso Soldado de igual modo tratado. Fui avisado, mas segui a caminhada. Escutava das Praças “U”, e nos Caçadores Nativos, frases em português. Não respondia a ninguém que me falasse que dialecto fosse.
Ensinei em dias o português. Eles sabiam-no. Foi o meu percurso. “Portuga”, nunca me chamaram, se o fizeram, não sei… Fui professor, ensinei. Fiz o meu papel e cumpri o meu papel. Tive imensos contactos com a população, comi a “bianda” nas mãos enrolada, só para fazer a vontade.
Em relação aos filhos que lá deixámos. Tenho conhecimento que sim. Casos que eles próprios o desconhecem. Alguém me ajude nesta descrição. Uma negra, bem negra e bonita, de Guileje (ou Mejo?), julgo ter sido em Guileje, tinha um filho branco. Era vestido pelos Oficiais e Sargentos. Se nasceu em 65, tem hoje 50. Diziam ser filho de um Capitão que o quis levar e a mãe não permitiu. “Mas «portuga», não”! Nem o autorizava. Visto tratar todos por você e senhor, tal não admitia. Tanto cá como na Guiné, sempre o trato foi você. Éramos iguais… é o único modo que conheço de tratamento.
Na Tabanca Grande, é Camarada. Também é verdade que existem Camaradas e camaradas.
Cumpri, mas não romperam esse cumprimento. Sou combatente e não ex-combatente. Devem-me os meses riscados com uma esferográfica “bic” no cinto, não nos pagaram. Alguns receberam.
Ninguém me venha dizer que foi pela Pátria, mas que pátria-mátria que não reconhece os seus filhos?
Paletes de amigos, é verdade, mas analfabetos ou não, mesmo não fazendo política me disseram, era o seu padre e confessor, mas perguntavam:
- Meu Furriel, o que fazemos aqui?
Palavras sábias…
Cumprimentos
Mário Vitorino Gaspar
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Nota do editor
Último poste da série de 24 de abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14515: (In)citações (75): Perspectivas sobre o 25 de Abril (José Manuel Matos Dinis)
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