quarta-feira, 29 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14944: Os nossos seres, saberes e lazeres (108): Tomar à la minuta (10) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 7 de Julho de 2015:

Queridos amigos,
Naquele dia sentia-me arrastado pela corrente, era um passeio pelo passado, sempre intrigado pela estranhíssima articulação da Tomar da Reconquista, dos delírios de D. Manuel I, daquela corrente mística que nos atravessa o sentimento quer nas ruas quer nas igrejas, nos Estaus, até mesmo nos Lagares d'El Rei, e remexi nos bilhetes postais que fazem parte do legado da minha avó Ângela, desde a monarquia até à ditadura, a minha avó lá no Cuanza Norte guardava esta relíquias extremosamente. Inválida e acamada, os olhos incendiavam-se quando falava na Festa dos Tabuleiros, como ela dizia, pode haver festas mais vistosas mas a tocar os nossos corações, a juntar-nos à volta do Espírito Santo, só aquela, experimenta e verás . É o que eu vou fazer.

Um abraço do
Mário


Tomar à la minuta (10)

Beja Santos

Vagueando pela cidade, recordando ancestrais


É tarde de pescaria e a canícula aperta, daí esta correnteza de tanto chapéu-de-sol. Ando à solta, deliberei esta tarde de vagabundagem, hesitei se devia descer e meter conversa sobre as potencialidades que o Nabão oferece, mas decidi seguir viagem, há mais marés que marinheiros.


Meti-me ao caminho, quero conhecer os vestígios do que foi a fábrica da fiação, deparei-me com este edifício um tanto insólito na paisagem. Desta vez meti conversa e a surpresa foi enorme. Aqui funcionou uma moagem que depois se reciclou em prédio de habitação, as linhas Arte Deco não enganam, oxalá o classifiquem pelo que tem de incomum, as linhas redondas, as janelas com a cruz de Cristo, a harmonia das marquises.




Estou aqui de cabeça erguida a vaticinar melhores dias para a arqueologia industrial de Tomar. Um portão fechado, como marca para a eternidade, dói que se farta, aqui se fez muita roupa, se deu muito trabalho, bem perto da várzea, o que ainda empolga mais o viandante, tal a complementaridade entre a cidade e o campo. Cirandei, deu para imaginar a atividade daquelas turbinas, com a levada próxima, e depois este casario, que contrasta, pela sua decrepitude com o complexo habitacional em frente, há quem diga que estas coisas não têm importância, são vicissitudes do progresso, uns avançam, outros atrasam-se, neste caso esta linha de casas parece um património merecedor de cuidados, já basta o estado em que se encontra o velho regimento de infantaria. Há limites para hotéis de charme e ainda não perdemos a imaginação para dar nova vida a estes testemunhos de um passado que nos merece todo o respeito.


Dei uma guinada, quero contemplar algo de muito antigo, uma relíquia tomarense, passo por aqui com frequência, é cruzamento obrigatório para quem vem visitar as exposições sediadas no belo edifício do turismo, para quem vai para a Mata dos Sete Montes, ou desce uma rua com reminiscências medievais e procura um tasco para se amesendar, ou, em última instância, subir para a mística do Convento. Aqui contemplo o passado remoto e especulo sobre a natureza desta habitação, fico indiferente à verdade histórica, há uma enorme graciosidade nesta varanda, é o que me basta.




Está declarado o meu estado de espírito, mergulhei nas brumas da memória desta cidade apegada a um ciclo áureo que veio dos guerreiros monges, de ter sido um farol da Reconquista, por estas ruas terem andado o Infante de Sagres e gente da sua comitiva, há por aqui sinais de um luxo esquecido, lembra aquelas damas que ainda se adornam de chapéus de plumas e põem mitenes, esta a Tomar brasonada pela certeza certa de ter os costados, em plenitude, na História de Portugal.




Alto lá, encontrei um oásis e sabe-se lá porquê lembrei-me de Sevilha e Córdova, atenção que passou por aqui gente das invasões bárbaras e depois a mourama, um dos génios da arquitetura é moldar a existência explorando as sombras e o fresco, plantando flores à porta, o contraste com as paredes caiadas gera encanto, é sinal de que mais de que habitação a cidade está viva e prazenteira, vejam se estas imagens.



A minha avó Ângela tinha 14 anos quando partiu de Tomar para casar com o Sr. Costa, com negócios em Lucala, no Cuanza Norte, Angola. Deixou raízes, cedo levou os 2 irmãos, Lucília e José. Guardo uma resma de postais desde a monarquia até aos anos de 1930 da prima Isilda, do afilhado Gabriel, dos primos Carlota e António, do primo Mário José dos Santos, do primo Silvério Coelho, da prima Maria da Conceição Gomes, do tio António Neves Ferreira a mandar postais à minha mãe dizendo nossa querida Gigi. E a minha bisavó escreve na primeira década do século XX: minha querida e lembrada filha, muito estimo que estejas de saúde, igualmente o teu marido, eu voo indo melhorzinha graças a Deus, cumprimento desta tua mãe muito amiga, Carlota da Conceição Oliveira. São postais primorosos, alguns deles pintados, avultam imagens do Convento, do Nabão, da Serenata Tomarense, dos jardins da Avenida Marquês de Tomar. Este é o meu passado remoto. A minha avó Ângela, já acamada, nunca se cansava de me falar da Festa dos Tabuleiros, aliás em cima de uma cómoda havia uma fotografia muito antiga com umas meninas com uns cestos à cabeça, eu olhava para aquilo com imensa estranheza, a avó Ângela dizia, tens que ter muito respeitinho por esta festa, é o que há de mais lindo no nosso país. Pois bem, chegou a hora de a conhecer, e estou ansioso.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de Julho de 2015> Guiné 63/74 - P14915: Os nossos seres, saberes e lazeres (107): Tomar à la minuta (9) (Mário Beja Santos)

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