1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 16 de Dezembro de 2015:
Estamos perto do Solstício de Inverno quando o Sol começa a despertar a Terra da sonolência dos dias para um novo ciclo de vida e de renovação.
Os persas nesta quadra faziam grandes festas ao Deus Mitra; os Romanos festejavam as Saturnálias em honra de Saturno e nós filhos de cristãos festejamos desde há séculos um Deus-Menino que significa igualmente o renascer da vida.
Na realidade quase todos os povos antigos que viviam numa comunhão mais próxima com a Natureza e o Universo festejavam este renascer e este despertar. Nós crentes duma religião, de um Deus que se fez Homem, somos também herdeiros de muitos mitos e religiões criadas por muitos povos que nos antecederam. Somos filhos de passados longínquos que nos deixaram marcas que muitos cientistas, historiadores, antropólogos e outros especialistas procuram decifrar.
Com o Natal recomeçam as festas em que se celebra a vida e o despertar da natureza, depois virá o Carnaval a única grande festa pagã que a Igreja Católica não conseguiu substituir ou apagar da memória dos povos, depois virá a Páscoa essa grande festa Cristã em que a primavera começa a cobrir os campos e florestas de verde e a água escorre cristalina e com abundância por regatos, ribeiros e rios.
Sendo o Natal uma época de mudança é também uma época de reviver, de recordar os bons e maus momentos do passado, é um tempo de sentir as ausências dos familiares e amigos que já partiram e por contraste de fazer a festa da vida com os amigos e familiares que nos restam.
Quis o destino que fôssemos jovens num tempo em que Portugal governado por um velho ditador apelava a um passado de glórias de descobrimentos e conquistas passadas na defesa das nossas colónias, em resistência aos ventos da história que assolavam a África e iam desmantelando o mapa desse continente negro de colónias europeias, em países independentes à velocidade de um tufão.
Dispostos ou não a cumprir essa ordem de combate, instituída em dever pátrio, fomos embarcados quase à força, muitos em porões de grandes barcos em condições semelhantes às dos escravos da Guiné, que os barcos negreiros levaram para o Brasil, em séculos anteriores.
Muitos passamos por lá dois anos, não a ferro e fogo, mas numa guerra com meses de paz, alternados com dias de emboscadas, minas e bombardeamentos que nos mantinham sempre num estado de alerta e ansiedade.
Muitos vimos camaradas morrerem ou ficarem gravemente feridos e as marcas desses casos tristes ficaram para sempre gravadas nas nossas almas e ainda por vezes nos magoam como cicatrizes que teimam em não fechar totalmente.
Privados do amor dos pais, irmãos, noivas, mulheres, parentes e amigos da infância fomos criando laços de amizade com camaradas e com eles formamos essa grande família que só a camaradagem dos soldados consegue criar. Camaradagem que aprendemos a estender a todos os militares aquartelados nas tabancas próximos pois muitas vezes ouvíamos o rebentamento das bombas quando eram atacados e íamos também sabendo as desgraças que lhes iam acontecendo.
E porque a Guiné era um território pequeno com muitos combatentes, com a guerra disseminada por toda ela, acabamos por estender essa solidariedade e camaradagem a todos os que lá foram parar.
Fomos também fazendo amizade com os homens grandes, as mulheres, as bajudas, gente pobre e em sofrimento, mas sempre amável e gentil . E os meninos da Guiné mal trajados, mal nutridos mas sempre com aquele olhar doce e sorridente.
Sentimos o cheiro forte e quente dessa terra tropical. Ficamos encantados com a beleza dos seus rios, bolanhas, florestas, árvores centenárias, maravilhados com aqueles pores-do-sol magníficos em que o céu ganhava miríades de tonalidades vermelhas e cor-de-rosa que nos deixavam extasiados em contemplação, a pensar se o paraíso bíblico seria aquele.
Para além dos desgostos provocados pelas granadas e pelo matraquear das metralhadoras ficou-nos sempre uma saudade imensa desse cheiros tropicais, das secas, das chuvas imensas, da beleza das paisagens, da bondade das suas gentes e da amizade forjada entre camaradas em dias de tédio e de tristeza por outras ausências.
A Guiné marcou-nos a todos por todas estas razões. A Guiné foi para nós essa Xerazade islâmica, essa lendária rainha persa que nos continua a contar estórias de encantamento, beleza e de pesadelo também.
Os ex-combatentes da Guiné todos o sabem, todos o sentem, são diferentes de todos, pelas razões já apontadas. De Cacine no sul a Susana no norte, a Buruntuma no leste, o clima, as vivências, o calor, a chuva, o troar das bombas ou os trovões das tempestades tropicais, eram idênticos, debaixo do mesmo céu, a mesma vida, ora triste, ora alegre, resignada, atribulada, com bons e maus sonhos
Para compensar os dias de Natal da tristeza, pela ausência da família, passados na Guiné, onde a maior parte das vezes comíamos o rancho de todos os dias, pois não havia bacalhau, polvo, couves ou rabanadas, hoje festeja-se o Natal em casa com a família e fora de casa com essa família alargada que fizemos na Guiné, nas várias Tabancas espalhadas de norte a sul por todo o Portugal.
A todos os ex-combatentes da Guiné, quero desejar bons e alegres almoços ou ceias de Natal, com paz, amizade, fraternidade e camaradagem.
Perto ou longe nunca vos esquecerei, como não se esquecem os bons encontros que a vida nos proporciona.
Um Bom Natal Camaradas!
A todos um grande abraço.
Francisco Baptista
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Nota do editor
Poste anterior da série de 20 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15516: Feliz Natal / Filis Natal / Merry Christmas / Feliz Navidad / Bon Nadal / Joyeuz Noël / Buon Natale / Frohe Weihnachten / God Jul / Καλά Χριστούγεννα / חַג מוֹלָד שָׂמֵח / عيد ميلاد مجيد / 聖誕快樂 / С Рождеством (6): Com os gaiteiros da Freiria na Lourinhã...Teríamos ganho a batalha de Alcácer Quibir, em 1580, se em vez de guitarras tivéssemos levado gaitas-de-fole(s)... (Luís Graça)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
domingo, 20 de dezembro de 2015
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1 comentário:
Belo texto traduzindo o espírito de camaradagem que se criou entre combatentes da Guiné e que nos unirá até que não reste mais nenhum de nós. O Francisco vem recordar-nos as consoadas de Natal que passávamos no mato, onde normalmente faltava sempre alguma coisa ou mesmo tudo aquilo a que estávamos habituados, nas nossas aldeias.
Pois eu aproveito esta oportunidade para desejar a todos os ex-combatentes, um bom Natal e novo ano um bocadinho melhor que este.
Um abraço
Carvalho de Mampatá.
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