1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Outubro de 2015:
Queridos amigos,
Não é de mais realçar que ao longo de 1974, pós 25 de
Abril, o pensamento de Cabral foi alvo de antologias em catadupa, vê-se
claramente que era este o líder revolucionário que grupos oposicionistas e
anticoloniais melhor conheciam, Cabral era a referência. Escapara-me esta
edição das Publicações Nova Aurora que organizou um conjunto de textos onde
eram obrigatórios o discurso de Havana, os primeiros diagnósticos que ele
apresentou na arena internacional, incluindo a ONU, até se chegar à sua
alocução conhecida pelo seu testamento político. É curioso como ao
estudarmos hoje todos estes discursos, intervenções, conferências, textos
improvisados e mensagens, ressalta em permanência a coesão entre o pensador
e o homem de ação, com uma capacidade organizativa sem paralelo. Mas
estudando todo este pensamento também avulta o que nele era frágil, a pouca
convicção como ele impunha o conceito de unidade Guiné-Cabo Verde. E o que
era muitíssimo forte, a aliança entre os combatentes guineenses e os quadros
cabo-verdianos acabou no colapso, e quem perdeu foi a Guiné-Bissau, conforme
está à vista de todos.
Um abraço do
Mário
Guiné-Bissau: nação africana forjada na luta, por Amílcar Cabral
Beja Santos
Julgava ter compendiado todas as edições surgidas depois do 25 de Abril acerca do pensamento de Cabral, não deixa de impressionar tudo quanto se publicou e como o seu pensamento não teve concorrência com qualquer outro líder revolucionário de qualquer outro movimento de libertação, só dele se aproximou, no escopo teórico, o angolano Mário de Andrade. Mas acabo de descobrir uma nova edição de textos de Cabral, desta feita nas Publicações Nova Aurora, seguramente uma editora que estava ligada aos maoistas.
Encontramos, como nas outras antologias, estratos com significado sobre a luta anticolonial, a análise de Cabral sobre a estrutura social da Guiné Portuguesa, o famoso discurso proferido em Havana e conhecido por “A Arma da Teoria”, que tanta celeuma provocou. Julgarão alguns que todo este pensamento já perdeu sentido. Enganam-se. Quanto se pretende estudar onde o pensamento de Cabral se foi arredando da ação dos seus seguidores, é indispensável voltar aos seus textos para entender como aquela força revolucionária se veio a acomodar e a distanciar das formulações teóricas e da capacidade organizativa de Cabral.
Veja-se, a título exemplificativo, o que ele respondeu à Revista Tricontinental, em 1969, quando foi questionado sobre o exercício da direção político-militar da luta:
“A direção político-militar da luta é única: é a direção política da luta. Nós, na nossa luta, evitamos criar o que quer que seja de militar. Somos políticos e o nosso Partido, que é uma organização política, dirige a luta no plano civil, político, administrativo, técnico e portanto militar. Os nossos combatentes definem-se como militantes armados. É o Bureau Político do Partido que dirige a luta armada e a vida, tanto nas regiões libertadas como nas que o não são, e onde temos os nossos militantes. Ao nível de cada frente existe um comando de frente. Ao nível de cada setor, existe um comando de setor e cada unidade do nosso exército regular tem também o seu comando”.
A que se deve esta citação? Cabral tinha a perfeita noção de que o seu movimento revolucionário só podia progredir com a estrita dependência dos militares face ao poder político. O seu sucessor, Luís Cabral, ainda manteve as Forças Armadas na estrita dependência do poder político. Com o golpe de 1980, os militares entraram de roldão na arena política e conseguiram subverter a natureza do PAIGC.
Todas estas antologias deixam ressaltar como era frágil o conceito da unidade Guiné-Cabo Verde. Ao longo da luta, Cabral foi-se apercebendo de que havia tensões em aprofundamento entre os militares guineenses e os quadros cabo-verdianos, séculos de desconfiança, de ressentimento e mesmo de ódio pelo facto do cabo-verdiano administrar, ter o pulso forte, ser tão assimilado como o branco, entre outros fatores, engendrara um sentimento de tácita rejeição, estavam os dois povos no mesmo barco, mas havia que mostrar a distância.
O pretexto foi a Constituição de Cabo Verde, a elite guineense incitou os militares à separação. Conhecedor desta realidade, e a pretexto de que havia planos para ele ser liquidado, Cabral compôs uma peça que ele julgava suscetível de emparedar a sublevação do lado guineense. Sobre o alegado plano português, ele escreveu:
“O objetivo principal do inimigo é destruir o nosso partido. Ele está convencido de que a prisão ou a morte do principal dirigente significaria o fim do Partido e da nossa luta. O plano inimigo far-se-á em três fases:
Primeira fase:
Atualmente, muitos compatriotas abandonam Bissau e outros centros urbanos para se juntarem às nossas fileiras. Nesta ocasião, Spínola espera poder introduzir agentes (antigos ou novos membros do Partido) nas nossas fileiras. A sua tarefa: estudar as fraquezas do nosso Partido e tentar provocações apoiando-se no racismo, no tribalismo, opondo os muçulmanos aos não-muçulmanos, etc.
Segunda fase:
1. Criar uma rede clandestina;
2. Criar uma direção paralela;
3. Desacreditar o secretário-geral;
4. Preparar a nova “direção” para fazer dela o verdadeiro organismo dirigente do PAIGC;
5. Paralelamente, lançar uma grande ofensiva para aterrorizar as populações dos territórios libertados.
Terceira fase:
a. No caso de falhar a segunda fase, tentar um golpe contra a direção do Partido, fazendo assassinar o seu secretário-geral;
b. Formar uma nova direção baseada no racismo e opondo guineenses e cabo-verdianos;
c. Impedir a luta no interior do país, liquidar os que permanecem fiéis à linha do partido;
d. Entrar em contacto com o governo português. Falsa negociação, autonomia interna, criação de um governo-fantoche na Guiné-Bissau, que faria parte da comunidade portuguesa;
e. Postos importantes estão prometidos pelo General Spínola a todos os que executarem o plano.
Conclusão – devemos reforçar a nossa vigilância para desmascarar e eliminar os agentes do inimigo, para defender o Partido e encorajar a luta armada. Assim poderemos frustrar todos os planos criminosos dos colonialistas portugueses.
O inimigo tentou corromper os nossos homens, mas a esmagadora maioria dos responsáveis contactados não aceitou vender-se, comportaram-se como dignos militantes do nosso partido e contribuíram mesmo para castigar severamente os portugueses que tentavam comprá-los, como foi o caso dos quatro oficiais, próximos colaboradores de Spínola”.
Argumentação mais genérica nas acusações subtis e apelos à vigilância não era possível fazer. O plano não se passou assim, só por puro delírio se pode imaginar Momo Turé a arregimentar sublevados às centenas em Conacri e mesmo em território guineense, liquidado Cabral foram presos exclusivamente cabo-verdianos e ameaçados de morte.
A fórmula mágica da unidade Guiné-Cabo Verde foi indispensável para alcançar a vitória da libertação mas era a taça envenenada para o futuro, como aconteceu.
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Nota do editor
Último poste da série de 9 de Dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16816: Notas de leitura (909): “Conhecimento do Inferno", por António Lobo Antunes, Editorial Vega - O Chão da Palavra, 1980 (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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