Título de caixa alta do jornal Público, "O inferno de Guidje", 5 de Novembro de 1995. Texto de Francisco de Vasconcelos; fotos da Lusa. (Acima, à esquerda, o cor cav ref António Valadares Correia de Campos, um dos bravos de Guidaje).
O A. Marques Lopes, com um dos seus "jagudis", da CCAÇ 3. Foto de arquivo. |
A propósito de Guidaje (...), deixem-me aqui recordar um homem por quem fiquei com muita admiração desde a primeira vez que o conheci.
Eu conheci o tenente-coronel António Correia de Campos num dia de 1968, quando eu estava com a CCAÇ3, de Barro, durante uma operação realizada no corredor de Sambuiá e por ele comandada (foi nessa altura também o comandante do COP 3).
No meio do fogachal de uma emboscada, vi a sua figura insólita, para as circunstâncias, de pingalim de cavaleiro, pistola e coldre à cowboy, seguros com um fio à volta da coxa direita, sempre em pé e gritando:
No meio do fogachal de uma emboscada, vi a sua figura insólita, para as circunstâncias, de pingalim de cavaleiro, pistola e coldre à cowboy, seguros com um fio à volta da coxa direita, sempre em pé e gritando:
− O morteiro está à direita, uma bazucada para lá!... Fogo intenso para o lado esquerdo, é lá que está o RPG!...
Disseram-me, depois, que o Correia de Campos era mesmo assim, uma coragem e calma impressionantes. Numa outra operação na mesma zona [vd. carta de Bigene], já nos finais de 1968, também comandada por ele, o meu grupo, quando foi dada ordem de retirar, atrasou-se, porque levava um morto com o pescoço aberto por um estilhaço de rocket, e um guerrilheiro, ferido com uma rajada na barriga e deixado pelo IN, ia apoiado nos ombros de dois soldados meus (**)
Quando tivemos que atravessar uma bolanha com água muito alta (foi em plena época das chuvas) disse aos meus [soldados guineenses] para fazerem uma maca de ramos para o deitar e levá-la pela bolanha. Fizeram a maca, sim senhor, mas não quizeram pegar nela:
Disseram-me, depois, que o Correia de Campos era mesmo assim, uma coragem e calma impressionantes. Numa outra operação na mesma zona [vd. carta de Bigene], já nos finais de 1968, também comandada por ele, o meu grupo, quando foi dada ordem de retirar, atrasou-se, porque levava um morto com o pescoço aberto por um estilhaço de rocket, e um guerrilheiro, ferido com uma rajada na barriga e deixado pelo IN, ia apoiado nos ombros de dois soldados meus (**)
Quando tivemos que atravessar uma bolanha com água muito alta (foi em plena época das chuvas) disse aos meus [soldados guineenses] para fazerem uma maca de ramos para o deitar e levá-la pela bolanha. Fizeram a maca, sim senhor, mas não quizeram pegar nela:
− É turra, deixa ficar, vem jagudi e come ele...
Pegámos nela, eu e um furriel branco. O nosso morto foi às costas de um do grupo. Só quando íamos a meio da bolanha, com água pelo peito, é que apareceram dois, muito enfiados, a oferecerem-se para levar a maca. Chegámos depois à base de operações, onde estava já o tenente-coronel Correia de Campos, um helicóptero e uma enfermeira paraquedista. Mandei formar o grupo, mesmo em frente do tenente-coronel, e dei-lhes uma piçada, chamei-lhes todos os nomes... e que nem eram bons para os gajos da raça deles... e coisas que me vieram à cabeça por estar muito lixado. Diz-me o tenente-coronel Correia de Campos, que me ouvira serenamente: −EH, pá, não te chateies, as coisas são mesmo assim... manda-os pó caralho e paga-lhes umas cervejas... Mas, olha, a enfermeira diz que o homem já morreu, não aguentou.
Pegámos nela, eu e um furriel branco. O nosso morto foi às costas de um do grupo. Só quando íamos a meio da bolanha, com água pelo peito, é que apareceram dois, muito enfiados, a oferecerem-se para levar a maca. Chegámos depois à base de operações, onde estava já o tenente-coronel Correia de Campos, um helicóptero e uma enfermeira paraquedista. Mandei formar o grupo, mesmo em frente do tenente-coronel, e dei-lhes uma piçada, chamei-lhes todos os nomes... e que nem eram bons para os gajos da raça deles... e coisas que me vieram à cabeça por estar muito lixado. Diz-me o tenente-coronel Correia de Campos, que me ouvira serenamente: −EH, pá, não te chateies, as coisas são mesmo assim... manda-os pó caralho e paga-lhes umas cervejas... Mas, olha, a enfermeira diz que o homem já morreu, não aguentou.
Era também comandante do COP 3 [, com sede em Bigene, ] durante o cerco de Guidaje, para onde foi assim que o cerco começou (esteve lá desde 10 de Maio). No Público Magazine, de 5 de Novembro de 1995, escreveu o jornalista Francisco de Vasconcelos:
(...) “Sobre a acção de Correia de Campos no cerco (que é também destacada por Ayala Boto), um dos oficiais das forças especiais ali enviadas foi peremptório: Guidage, no fundo, não há dúvida, aguentou-se devido a ele. Foi um esforço brutal pedido a um homem de 50 anos. Uma vez terminado o cerco, Correia de Campos − hoje reformado em coronel − esteve alguns dias preso em Bissau, devido a uma infracção cometida em época anterior por um oficial sob o seu comando...
“No meio do inferno de Guidage, o governador Spínola foi ali de helicóptero para visitar a guarnição, dirigir um apelo à coragem e patriotismo dos oficiais e anunciar-lhes que iria enviar para a região o Batalhão de Comandos Africanos. Recorda Ayala Boto, que acompanhava Spínola como ajudante de campo: À chegada, a primeira imagem que surgiu foi a de uma povoação abandonada e com um único habitante que se dirigia para o heli como se estivesse a passear na Baixa de Lisboa. Era Correia de Campos.
"Após a partida do governador, gerou-se um movimento de abandono do quartel por parte de muitos militares, que queriam ir-se embora, tendo sido impedidos de o fazer por Correia de Campos, que, lembra o próprio, se postou de sentinela, à saída do aquartelamento" (...).
Lembro que ele foi um homem do 25 de Abril: às 10 horas do dia 25 foi ele que foi enviado pelo Comando da Pontinha para ali coordenar as operações. Foi ele, mais o Jaime Neves, que entrou, a seguir, no Ministério do Exército e aí prendeu diversos oficiais superiores, incluindo o coronel Álvaro Fontoura, chefe do gabinete do ministro do Exército (este já tinha fugido).
Após o 25 de Abril foi comandante do Regimento de Lanceiros 2 até ao 25 de Novembro de 1975.
Foi um bravo e nobre militar, injustiçado depois como muitos militares de Abril. (**)
A. Marques Lopes
"Após a partida do governador, gerou-se um movimento de abandono do quartel por parte de muitos militares, que queriam ir-se embora, tendo sido impedidos de o fazer por Correia de Campos, que, lembra o próprio, se postou de sentinela, à saída do aquartelamento" (...).
Lembro que ele foi um homem do 25 de Abril: às 10 horas do dia 25 foi ele que foi enviado pelo Comando da Pontinha para ali coordenar as operações. Foi ele, mais o Jaime Neves, que entrou, a seguir, no Ministério do Exército e aí prendeu diversos oficiais superiores, incluindo o coronel Álvaro Fontoura, chefe do gabinete do ministro do Exército (este já tinha fugido).
Após o 25 de Abril foi comandante do Regimento de Lanceiros 2 até ao 25 de Novembro de 1975.
Foi um bravo e nobre militar, injustiçado depois como muitos militares de Abril. (**)
A. Marques Lopes
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Notas do editor:
8 comentários:
Guidage ou Guidaje ? Não importa... Uma das nossas estações do calvário... Maio/junho de 1973... Quem esteve lá ? Quem tem fotos ? Quem conheceu o ten cor cav Correia de Campos ?... Pecisamos de uma foto dele para documentário sobre a sua ação no 25 de Abril...URGENTE!
PS - Também passou por Bafatá. Bigene... Hoje, como outros bravos de Guidaje e demais batalhas da guerra da Guiné, está na "vala comum do esquecimento",,,
... Portugal sempre teve uma dívida de gratidão para com os seus heróis (e não apenas militares, incluem aqui outra "nobre gente", das letras às ciências, da saúde à política...). Mas falando de combatentes, essa dívida está por saldar.. Em todas as guerras,em todas as épocas... Somos um país de fraca memória e ingrato para com os seus filhos que deram o melhor à Pátria... Não somos únicos, mas isso não serve de dewculpa nem de consolo...
Eu sei que o tema, em todo o caso, está "minado e armadilhado", e que é também é fácil fazer demagogia... à esquerda e à direita do espetro político-ideológico.
Em Maio e Junho de 1973, a CCAÇ 3414, a que eu pertencia, fez colunas a Guidage para o reabastecimento.
Joaquim Peixoto
Camaradas combatentes da Guiné. Conheci e de muito perto na época de 68, o major Correia de Campos. Oficial Valoroso que, incutia coragem aos seus homens quando era necessário.Como refere o coronel Marques Lopes numa operação a Sambuiá, o morto com o pescoço cortado por estilhaço era o cabo enf. João Baptista da Silva da Cart 2412 e com certeza o furriel branco a que se refere poderia ter sido eu: que fui à frente falar com o capitão Dias Lopes Para mandar homens para ajudar no transporte do nosso camarada.Eu na ausência do alferes comandava o 2º grupo de combate nessa altura. PS. Tenho muitas fotos da Guiné mas infelizmente não tenho nenhuma do herói de Guidage. A única lembrança que tenho, são as memórias e um louvor dado por ele enquanto comandante do C.O.P.3. Saudações a todos os ex combatentes. Manuel Barbeitos ex furriel miliciano minas e armadilhas Bigene/Binta/Guidage/Barro 68/70
Camarada Manuel Barbeitos:
Obrigado pelas tuas preciosas informações... Mas vejo que: (i) não és membro da Tabanca Grande; (ii) és um bravo da Guiné; e (iii) tens uma precioso álbum fotográfico para partilhar com os teus camaradas... Por que é que não te sentas, à sombra do nosso poilão ? Temos um lugar para ti, o nº 739... Manda duas fotografias, uma atual e outra do tempo da guerra... E duas ou três linhas, com a tua apresentação... Serás recebido de braços abertos!... Luís Graça
Gente do cinema, o que querem mais para fazer um filme.
Ainda há gente desse tempo e até os mesmos lugares, aproveitem.
Foi na Guiné. Foi a batalha de Guidadje.
Gente do cinema venha à Tabanca Grande. Levamos pouco dinheiro, ou quase nada,
por toda a informação e, já agora, com essa informação a co-autoria, com os nossos
testemunhos/combatentes, ainda bem vivos.
Valdemar Queiroz
Agradecia que o Prof. Luís Graça fizesse chegar ao cineasta Pedro Vasconcelos a correcção em relação ao que é afirmado pelo Cor. Marques Lopes, pois quem tramou o Cor. Correia de Campos foram os revolucionários esquerdistas, também conhecidos pelos três "cucos" (Campos de Andrada, Mário Tomé e Cuco Rosa). Ele apenas comandou o Reg Lanceiros (em ABR1975 mudou a designação para Reg PM), pois não terá tido paciência para os aturar. Basta consultar a lista de antiguidades de 01JAN1978, para se poder verificar que o Cor Correia de Campos passou à reserva em 23ABR1975, quando ainda era coronel havia menos de cinco meses (promovido em 01DEZ1974). Eu estive com ele na Academia Militar, onde ele era professor (tal como o Otelo e o Garcia dos Santos) entre JAN1974 e o 25ABR desse ano, quando regressei da 4.ª comissão por imposição (Moçambique). Na sequência do 16MAR chegou a ter guia de marcha em 04ABR1974 para seguir para o MEx. Tal apenas não se concretizou por não haver substituto para dar as aulas.
Eu estava lá, na tal Operação a Sambuiá, 21 de Setembro de 68, que juntamente com o Barbeitos (aqui mencionado) era o outro Furriel do 2ºGComb da CART 2412, comandado pelo Alferes Pires, (desculpa Barbeitos, mas estás enganado, o Pires também foi), o José Barreto Pires que tal como eu fazemos parte da Tabanca Grande e que também ele carregou com o falecido "Louro", (como era conhecido o 1º Cabo Enfº João Baptista da Silva), ás costas, até ter sido feita, muito mais tarde, uma maca improvisada.
Eu tenho uma foto do então Major Correia de Campos, sacada algures por aqui, homem sem dúvida valoroso . Recordo uma outra operação, em 1 de Outubro de 68, em Farejanto, em que ele estava próximo de nós, o 2º GComb, quando caiu um morteirada e feriu quatro soldados nossos, em que ele se manteve sempre em pé, impávido e sereno a dar indicações, completamente alheio ao fogo.
Um abraço
cumprim/jteix
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