quarta-feira, 17 de maio de 2017

Guiné 61/74 - P17366: Os nossos seres, saberes e lazeres (212): São Miguel: vai para cinquenta anos, deu-se-me o achamento (2) (Mário Beja Santos)




1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 16 de Fevereiro de 2017:
Queridos amigos,
Prossegue a viagem, andou-se por alguns dos lugares emblemáticos da costa Sul, pena foi ter chegado às Capelas já com o véu da noite, o viajante guarda no olhar aquele porto em declive de onde foram içadas tantas baleias, num passado não muito remoto.
E há Porto Formoso, paradisíaco com os seus campos de chá. Mas o primeiro destino não é só para pernoitar é para estadia, e por mais dois dias, o maravilhoso Vale das Furnas, que desde as primeiras viagens suscitou a atenção dos escritores: as águas sulfúreas, uma grande montanha cheia de fogo, as lagoas de água que fervem, as furnas de enxofre, as nascentes apropriadas para banhos, o cheiro e o sabor a enxofre expelido do solo, estando os terrenos em volta completamente crestados e queimados. Só que o vale tem outros atrativos que convergem para a sua designação de lugar mágico.

Um abraço do
Mário


São Miguel: vai para cinquenta anos, deu-se-me o achamento (2)

Beja Santos

Cinquenta anos é tempo suficiente para comparar o tem sido a evolução desta ilha, acresce que o viajante aqui vem frequentemente, não se limita a recordar as crianças cheias de fome que conheceu em 1967, de lata na mão, na Porta de Armas do quartel dos Arrifes, por múltiplas e variadas razões aqui aterrou e descolou nas cinco décadas inúmeras vezes e o juízo que faz do desenvolvimento socioeconómico, o embelezamento do património, a construção de redes diárias, os progressos assombrosos na saúde, na educação, no agroalimentar é mais do que positivo, a região ultraperiférica tem bons indicadores de desenvolvimento humano, não perdeu a identidade e os turistas chegam em todas as estações. Os Açores estão no mapa e a minha ilha de São Miguel não perdeu enverdecimento. Em Outubro de 1967, os meus soldados micaelenses estavam entusiasmados com a vida de quartel, o admirável mundo da recruta: comiam carne todos os dias, havia água quente para o banho, por ali passava a porta da civilização e do estômago aconchegado. O destino encarregou-se de trazer profundo bem-estar às gentes das ilhas.




A primeira etapa é o Vale das Furnas. Mas o cicerone tem as suas exigências e surpresas, primeiro percorre-se a costa Sul envolvendo Mosteiros, João Bom, Ajuda da Bretanha, Remédios, edifícios antigos primorosamente restaurados e mantidos, a despeito das inclemências dos ventos e humidades, mostram-se caldeiras que servem para apurar deliciosos cozidos e outras refeições, chama-se a atenção para um revés miguelista, os liberais não foram meigos, atiraram os absolutistas para o abismo e há depois a graciosidade da costa até aquele ponto que nos indica que passámos da costa Sul para a costa Norte.


É um dos locais mais procurados do Vale das Furnas, a Poça de Dona Beija, banho em permanência a 39 graus. Olha-se para este escorrimento fumegante, chamemos-lhe água férrea, e sabe-se lá porquê vem à lembrança Alexandre Herculano que em 1832 passou meses em São Miguel e escreveu “por esses anos assentei-me rodeado de tristes saudades sobre os outeiros vulcânicos dos Açores”. E dirá na sua poesia Tristezas do Desterro: “Eu já vi numa ilha arremessada / Às solidões do mar, entre os dois mundos, / Vestígios de vulcões, que hão sido extintos…”. Uma das figuras proeminentes da cultura do século XIX, o historiador luso-brasileiro Sena de Freitas viajou até ao Vale das Furnas, e maravilhou-se: “Que variadas e ricas cenas se oferecem no Vale das Furnas ao homem contemplativo! Perspetiva encantadora e maravilhosa, onde em admirável contraste se exibe o assombro ao lado do aprazível!”. Vejam as duas imagens abaixo, azáleas que parecem pintadas à mão e um campo de inhames. Logo o viajante pensou num prato saboroso de inhame com linguiça frita e ovo a cavalo.



Depois de um bom banho na Poça da Dona Beija, toca a vadiar pelo jardim Terra Nostra, aqui se conservam exemplares das principais plantas endémicas da ilha, são impressionantes a sua coleção de fetos, o jardim de Vireyas (rododendros da Malásia), canteiros de azáleas, coleção de cycadales, camélias, e muito mais. Como quem sabe é como quem não vê, o turista perguntou inofensivamente a um funcionário do parque que palmeira era esta, ao que ele respondeu com bonomia: é estrelícia, senhor, é uma estrelícia gigante, venha aqui ver as flores que caíram lá do cimo. E o viajante confirmou, embasbacado.


Há espécies arbóreas que ajudam a teatralizar aquilo que se chamam os lugares mágicos, é o caso do metrosídero e a sua farta cabeleira, a fazer coar os raios de luz até ao solo. É verdade que a ilha tem muito mais do que estes jardins encantados, o próprio Vale das Furnas abre-se em amplos cenários. Ferreira de Castro que por aqui andou nos anos 1930, não resistiu ao uso das expressões mais luxuriantes para descrever todo este espetáculo de um vale gracioso com caldeiras, lagoa e uma cercadura monumental de vegetação a perder de vista: “São as ribas escuras, rendilhadas, caprichosas, onde vem morrer, em branca espuma, o azul do Atlântico, e são as encostas cheias de acidentes, de relevos imprevistos, heranças de vulcões que, um dia, abriram as fauces e jorraram fogo e lava perante a imensidade do mar, subitamente emudecido. Há, nas vertentes das serrilharias, famílias de árvores, tão frescas e sussurrantes, de tanto enlevo e melodia que junto delas os parques célebres que sentiram humilhados. E flores. Flores nos imensos jardins, flores em redores das casas, que sarapintam o verde ondeante da paisagem, flores nos velhos muros que correm à beira da estrada”.


Amanhã o viandante está indeciso entre o banho de água férrea, calcorrear pela lagoa ou pelas caldeiras. O importante é o aprazimento, poder aproveitar esta dádiva de Fevereiro, beber em longos haustos a saborosa viagem e lembrar uma frase de José Tolentino Mendonça: “A verdadeira viagem é aquela que dura tanto que já não se sabe porque se veio ou porque se está”.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de maio de 2017 > Guiné 61/74 - P17339: Os nossos seres, saberes e lazeres (211): São Miguel: vai para cinquenta anos, deu-se-me o achamento (1) (Mário Beja Santos)

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