segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Guiné 61/74 - P17916: Manuscrito(s) (Luís Graça) (126): O fogo que nos redime

O fogo que nos redime

por Luís Graça


O teu país ardeu

e tu não deste conta.

O pinhal d’El-Rey ardeu
e tu não deste conta.



O fogo devorou a tua casa e o teu quintal
e tu não deste conta de nada.

O pregador da tua igreja
já há muito que te ameaçara, do púlpito e do altar:
que era pelo fogo
que o mundo um dia iria acabar.

Havia o partido do fogo
e o dos que o combatiam,

mas tu nunca deste conta desta bipolaridade.
Como nunca ligaste às profecias antigas
do louco pregador da tua cidade.

Alguém vociferou, nas redes sociais,
que era preciso aplacar a ira de deus
e a do seu povo
e a dos seus demagogos,
mas tu nunca não te deste conta de nada.

O pinhal d’El-Rey,
cheio de bidões de gasolina,
estava pronto para arder
no verão quente de 1975,
e tu na altura até te deste conta.

Hoje sabes, como nas tragédias da Grécia antiga,
que é preciso que alguém morra,
física e simbolicamente falando,
para que tu possas por fim fazer o luto
e dormir tranquilo
sem a maçada de teres que chorar,
nem que sejam lágrimas de crocodilo.

Chorar pelos nossos mortos,
hoje, os de Pedrógão Grande,
ontem os da guerra colonial,
mais os de sempre, os do mar salgado,
todos os mortos de Portugal.

Chorar pelo teu país que ardeu,
pelo pinhal d'El-Rey,
pelo verde pinho, ai, ai,
pelo teu vizinho que ficou carbonizado.

Não vês televisão,
o teu país ardeu,
e tu não deste conta,
mas, apesar do teu autismo,
tu sabes que somos um povo de santos inquisidores,
de encenadores de autos de fé,
de ateadores de fogueiras,
de plantadores de eucaliptos,
somos, enfim,  um povo antigo e trágico e exangue
que periodicamente se redime pelo fogo e pelo sangue.

Alfragide, 22/10/2017

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1 comentário:

Antº Rosinha disse...

Arderam pinhos, eucaliptos e morreu muita gente.
Gente que morreu brutalmente como nos ataques de Londres, Paris e Madrid.
Os eucaliptos só servem para fazer papel higiénico para o mundo inteiro.
Nós no antes só precisavamos de papel selado e saquinhos para a mercearia.
Não era preciso tanto eucalipto, naqueles montes e vales só dava rosas pão e vinho.
Eramos muito pobres.