terça-feira, 3 de julho de 2018

Guiné 61/74 - P18807: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (30): O anjo excomungado

1. O nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), em mensagem do dia 21 de Junho de 2018 enviou-nos mais uma memória da sua guerra.


Outras memórias da minha guerra

30 - O anjo excomungado


Um equilibrista em perigosa actuação entre arranha-céus de Nova-Iorque 

- Silva, ó Silva, olha aqui o João Albino. Lembras-te dele? – perguntou o meu vizinho Fiães, ao ver-me passar junto do refeitório da CCS de Catió.

Olhei com alguma curiosidade, ao mesmo tempo que tentava ligar-me ao nome apontado. Então, ele insistiu:
- Aquele equilibrista que subia e descia um arame lá no largo da Feira dos Dez, em Lourosa?

Aí, reagi logo afirmativamente. Quem é que não se lembrava daquele espectáculo presenciado pela multidão, próximo da Capela de S. Miguel?

O João Albino sorriu, ao mesmo tempo que parecia querer manter o anonimato. Manifestei a minha surpresa em vê-lo ali no nosso BART 1913, felicitei-o pelos seus sucessos e aproveitei para saber mais alguma coisa dele. E, afinal, não foi difícil.

- Lembro-me bem de ter ido a Lourosa. Quem me pediu para lá ir, foi o meu tio Jorge Miguel que vive ali por perto. Tem um salão de barbearia e cabeleireiro.

Confirmei logo que o conhecia bem. Casou com uma vizinha minha.

- Pois foi ele é quem me inspirou. É o meu ídolo. Aos 16 anos, o meu avô teve que o mandar para a França, para junto de um irmão, porque ele não queria trabalhar na barbearia, lá na aldeia, perto de Portalegre.

E continuou:
- Em França, veio a integrar-se num grupo de equilibristas de circo. E como era um gajo de muita coragem, tornou-se famoso. Foi ele o artista que substituiu a vara do equilíbrio por duas asas, dando a sensação de que voava. Era conhecido por “Michelangelo”. Fazia um número espectacular, mas muito perigoso. Bastava um pouquito de vento e a segurança estava logo em causa.

Dizem que não lhe faltavam miúdas. Ele era mesmo uma vedeta. Mas o que ele mais desejava era aproveitar esses momentos e gozar a vida.

- Mas, ele era manco!
- Sim. Num dia com mais vento, ele teimou em actuar com as asas de anjo, mas desequilibrou-se e quase se matou ao cair do arame. Ficou afectado de uma perna e teve que largar a actividade. Regressou a Portugal e influenciou-me para o substituir naquela loucura.

Já habituado ao ambiente afrancesado, o regressado Albino passou a sentir ainda mais o sacrifício de viver no isolamento alentejano.
E, um dia, quando falava sobre a sua vida atribulada e se lamentava da sua sorte na presença de um industrial de cortiça, que ali se deslocava com alguma frequência, foi encorajado a mudar-se para norte, para o concelho da Feira.
Conheci-o por altura dos meus catorze anos (1957). Frequentei a sua pequena barbearia, onde apareciam outros tipos de clientes.
Chegava sempre tarde à barbearia. Parecia fazer questão em ter clientes à espera, junto à porta. Devido à deficiência na perna direita (não a podia dobrar), caminhava bastante esticado, por forma a poder rodar essa perna, para a colocar na sua frente. O Senhor Michel parecia explorar bem a sua deficiência, assumindo uma pose erecta e altiva, bastante beneficiada pelos seus bastos cabelos ondulados, pelo seu bigode e sorriso tipo Clark Gable e pelos óculos escuros Ray Ban.

Capela de S. Miguel 

A aldeia era pequena e não podia dar-lhe muitos clientes. Além disso, a sua pose altiva, a sua permanente argumentação sobre tudo e todos e a sua frontal posição crítica face à religião, afastavam parte da possível clientela.
Todavia, a sua experiência francesa, aliada a uma certa dose de rebeldia alentejana, davam-lhe um à-vontade, pouco comum naquele ambiente rural nortenho. Pela frente, quase toda a gente o respeitava, mas, por trás, havia uma onda de contestação, bastante crítica, especialmente orquestrada pela família Ramirinho, pelo Tono Coninhas e por algumas beatas de sacristia.

Ora, o Senhor Michel, teve que aproveitar tudo para ganhar algum dinheiro que o pudesse ajudar a viver. Cortava o cabelo curto, como era hábito naqueles tempos difíceis mas, salientava-se noutros tipos de corte, onde realçava seus conhecimentos mais modernos. Além disso, veio a ter algum sucesso com o corte “à la garçonette” nas crianças e adolescentes do sexo feminino.
Eu simpatizava com o Senhor Michel. Ele já me influenciava a cortar pouco o cabelo, dando-me uma imagem “mais de acordo” com a minha postura de “revoltado”. Também me falava muito dos seus conhecimentos afrancesados. Mas, o que mais admirava nele era o seu optimismo de alentejano e o seu sentido crítico de homem livre.

Foi nessa altura que presenciei o Senhor Michel a arrastar a asa pela sua Luisinha. Ela tinha ido à barbearia para acompanhar a filha da Tininha, enquanto ele lhe cortava o cabelo.
A miúda já estudava francês e cismou adquirir um corte “à la mode”. Aliás, tive a oportunidade de apreciar a sua exuberante actuação de conquistador. A miúda sentada na cadeira limitava-se a olhar fixamente o espelho na sua frente. Porém, o Senhor Michel mexia-se constantemente. Após vários movimentos em falso, batendo, repetidamente, o clik da tesoura, aproximava-se da miúda e mal tocava no cabelo. Afastava-se, olhava-a de novo, elevava os lábios fechados e abanava ligeiramente a cabeça no sentido vertical. Por vezes, esboçava um “très belle, très belle” ou uma exclamação tipo: “oh la, la, jolie, petite demoiselle”!

De cabeça esticada, braços abertos, com o pente numa mão e a tesoura na outra, o artista arrastava a perna deficiente, enquanto rodopiava paralelamente à cadeira, que até me parecia um garnisé a arrastar a asa, preparando a (futura) galadela.

Desde que começou a constar que o marido da Luisinha d’Azenha, Jorge Miguel, fora apanhado a molestar a sua mulher, não havia dia de lavadouro ou noite de taberna, em que o assunto não viesse à baila.

- Para mim, ele é um excomungado. – Acusava a Felismina do Canto, que continuava:
- Um homem que desonra a namorada, leva-a de casa sem casar pela Santa Madre Igreja e que, ainda por cima, a trata mal, devia ser castigado.
- Realmente, e logo aquela rapariga, tão bonita, filha de tão boa gente e tão temente a Deus. – Lembrou a Ti Matilde.

Logo a Maria Bolachona interveio em jeito de aparente despeito:
- Chamas bonita àquela magricela, um pau de virar tripas que não pesa 70 quilos, que tem os olhos grandes de ougada e cabelos ripados, sem ondas nem caracóis?
- Nós dizemos que gordura é formosura, mas não te esqueças do que diz o outro ditado: O que é demais, é moléstia.- Observou a Ti Matilde.

Um pouco mais ao lado, num tom mais suave, murmurava a Tina Beata:
- Pois é, mas eu continuo a pensar que a culpa é das mulheres porque se deixam levar e não se sabem portar bem. Por acaso, se fosse comigo, iam ver do que eu era capaz. Até o capava, se me faltasse ao respeito.
- Ei, mulheres do solheiro, estais a serrar de alguém? – Interrompeu a Irmã Julinha, que surgiu por ali, vinda do fundo da quinta da família Ramirinho, onde se encontrava de férias pascais.
- Ó Julinha, não queira saber que aquele excomungado, que desonrou a Luisinha e que a obriga a viver com ele em pecado, foi apanhado a molestar a rapariga.
- A molestar, como? A bater-lhe? A magoá-la? Digam-me, por favor, o que essa alma do diabo lhe anda a fazer.

A Felismina, agarrou nalgumas peças de roupa, para as pôr a corar e aproximou-se da Irmã Julinha e, em voz mais baixa, confessou:
- Na sexta-feira passada, quando ia para a primeira missa, ao passar junto à casa da Luísa, ouvi-a gritar baixinho e, por curiosidade, aproximei-me e olhei por uma frincha da portada da janela. Ó Julinha, sabe bem que eu não sou mulher de levar e trazer. Nem sou nada dessa gente que levanta boatos, maledicências ou falsos testemunhos. Apenas me lembrei de espreitar, antes de a acudir.
- Não me digas que estava a bater-lhe? – Interrompeu a Irmã Julinha
- Não sei. Só sei que eles estavam nuínhos, conforme Deus os botou ao mundo. Tal como Adão e Eva no Paraíso.
- Credo em Cruz, Santo nome de Jesus! Nem me digas? Que pecado!
- E o pior é que ele estava em cima dela como se ela fosse uma cadela, coitadinha!
- Deve-a ter magoado?
- Sim, sim, até porque vi o excomungado a querer sarar-lhe “as partes” com a saliva da língua.

********** 

Quando regressei da Guiné, andei uns meses a trabalhar como Comercial numa empresa de produtos químicos. Corria quase o País todo e logo que passei por Portalegre, encontrei o Sr. Jorge Miguel. Levou-me à sua aldeia, almocei com toda a família (mulher e três filhos – um rapaz e duas meninas). Pareceram-me bastante felizes. Falámos agradavelmente de muita coisa, inclusive do seu sobrinho João da CCS de Catió, agora a viver na Bélgica.

Antes da despedida, teve um desabafo:
- Amigo Zeca, gosto muito do norte e da maior parte das pessoas de lá. Gostava de ter continuado naquela terra, mas tivemos que vir para cá antes que aquelas ratas de sacristia matassem a Luísa à pedrada, como se fazia na Grécia Antiga. Aquelas putas, faziam-lhe a vida negra!

Ficou sentado num extremo da mesa, com uma lindíssima criança sentada sobre a sua perna esquerda. Fitou-me, saudando-me com alguma comoção, elevando a mão direita com o copo do vinho que restava do nosso último brinde:
- Obrigado Zeca. Que sejas sempre tão feliz como eu! Tu mereces.

A mulher veio abrir-me o cancelo de acesso à rua. Ao abraçar-me na despedida, confessou-me:
- Zeca, às vezes sinto muitas saudades da família e dos bons vizinhos, como vós. Mas, diz àquela gente que sou muito feliz. Tenho quatro anjos; três filhos e um marido, a quem devo a maior sorte do mundo.

Afastei-me, comovido com o que tinha visto e ouvido. Ainda acenei um adeus, já de longe. E pensei:
- Não deve ser só por ele ter sarado as feridas com a saliva da língua…
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de dezembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18036: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (29): “Amor à Pátria”

9 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...


Zé: funambulismo, chama-se essa arte circense... E em sentido figurado, é a vida de muita gente, viver é isso mesmo, um difícil equilíbrio dinãmico na corda bamba, esticada entre o nascer e o morrer... Parabéns, mais uma bela "short story", mais uma "curta", com a tua assinatura...Já ouvi chamar muitos nomes à cunilíngua, mas a descrição da Felismina do Canto, lá da aldeia da Luisinha, essa, sim, é de antologia: "sarar as partes com a saliva da língua"... Temos que mandar essa ao prof Machado Vaz, o sexólogo-mor de Portugal, e à sua ajudante, Inês Meneses... Porque o amor é...de todas as formas e feitios, desde o Adão e a Eva comeram a maçã da árvore do paraíso... Imagina só se ela e ela não a têm comido!...Tínhamos perdido as tuas histórias deiciosas... Um xicoração, LG

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funambulismo | s. m.

fu·nam·bu·lis·mo
(funâmbulo + -ismo)
substantivo masculino
1. Arte circense que consiste em equilibrar-se, caminhando, saltando ou fazendo acrobacias, sobre uma corda bamba ou um cabo metálico, esticados entre dois pontos de apoio.

2. Profissão de funâmbulo.

"funambulismo", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://www.priberam.pt/dlpo/funambulismo [consultado em 03-07-2018].

Valdemar Silva disse...

Parece que o equilibrista também aprendeu outras artes em França.
Mais uma pérola do José Ferreira da Silva.
Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

O funambulista...o Michel... Faltava este "cromo" no álbum das memórias boas da guerra, do nosso Zé oOu Zeca) Ferreira...

Acho que ele, o Michel, também deverá ter aprendido em França a gostar de ostras. Nunca percebi porque é que os portugueses não gostam de ostras... E têm as melhores do mundo, ou já tiveram...

No pós-guerra, em Paris, as melhores ostras eram "les portugaises"... Eram importadas de Portugal... Acho que havia mesmo uma espécie de ostras chamada "la português"... Como há a amêijoa "japónica", hoje uma praga no Tejo, a amêijoa dos pobres...

Estupidamente os portugueses deixaram-nas estragar... E também nunca gostaram de comer ostras... Não sei porquê, parece que mexe com o seu orgulho de machos latinos...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Minto, alguns como os da minha geração, aprenderam a gostar de ostras na Guiné... Mas não era a mesma coisa, não eram portuguesas... Observaçºão sem qualquer conotação racista...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

É evidente que as amêijoas à Bulhão Pato, um dos ex-libris da nossa gastronomia, não podem ser feitas com as japónicas ou com as vietnamitas... Mas quem não tem cão, caça com gato... O mesmo é dizer: quando a carteira não chega para as "algarvias", vamos para as "outras"... Enfim, andamos a descer de nível desde o tempo do senhor Dom Manuel I de Portugal, o "Venturoso"...

Se não fosse ele, eu nºao estaria com insómnias a esta hora, e a blogar para exorcizar os fantasmas da minha guerra e da minha terra...

ze manel cancela disse...

Nao conhecia esta,amigo Zé Ferreira
mas está muito bem apanhada.Na verdade
se me pusessem esta historia para eu ler,com autor desconhecido,
identificava-te á primeira…...Um abraço amigo…..

jteix disse...

O contador de estórias ficou tão entusiasmado com aquela da... "cura com a saliva da língua", que há dois dias que anda com soluços.
Um abraço Zé e as melhoras.
cumprim/jteix

JD disse...

Com uns arremedos da vida aldeã, o Zé Ferreira brinda-nos com um excelente relato de várias abordagens, e de um compensador espírito de humor, face às dificuldades que muitos de nós sentimos e a idade já não permite recompensá-las, nem com asas. Fiquei muito bem disposto, parabéns!
JD

Anónimo disse...

Caro José Ferreira da Silva,
Isto sim são histórias para matar a nossa raiva da idade, da PDI, da nossa revolta por termos nascido numa época fora do tempo certo, pois esse é agora em que vale tudo, e que Deus me perdoe. Tenho filhos e filhas, netos e netas, e não se deve cuspir para o ar, pois o vento pode trazer o cuspe para cima de nós.
Diverti-me imenso, vale a pena ler algumas coisas do nosso blogue, ajuda-nos a viver melhor. Mas essa de 'curar as partes com a saliva da língua' não tinha ainda
ouvido.
Li este texto, não costumo ler todos, mas chamou-me a atenção para alguns pormenores que nos ligam, mesmo não nos conhecendo um ao outro.
- O Alentejo, que seria aí que gostaria de morrer tranquilamente, mas estou longe;
- Em 1957 tinhas 14 anos, e eu também, somos portanto da geração de 43, nascidos no auge da 2ª guerra mundial;
- Depois o BART1913, muito junto ao BCAV1915 que o meu BCAÇ1933 foi render em Nova Lamego em 4 de Outubro de 67.
- Também passamos pelos mesmos sítios, para ires a Canquelifá tiveste de passar por Nova Lamego, uma terra pela qual sinto ainda uma grande nostalgia, até lhe podem chamar saudosismo, que eu não levo a mal;
- Depois um militar da 'Guiné 67/69', como eu orgulhosamente aplico em tudo o que escrevo, são os anos marcantes da nossa vida (pelo menos da minha), e não há outros.
- Lourosa (Vila da Feira) terra que conheço tão bem, quando na minha actividade de consultor de investimentos, passei também pela tal empresa do tal industrial da cortiça (já falecido apesar de ser o mais rico de Portugal). Fiz alguns trabalhos para ele, nos seus inícios de ascensão, mas era um tipo difícil e arrogante.
- O Norte sim, é uma boa terra também, mas com esta idade, já seria capaz de mudar se isso fosse humanamente possível, para algures no Alentejo, não há uma ida ao Algarve, que não deixe uns dias para também estar no Alentejo, sou eu, e os meus 3 filhos, fazem sempre o mesmo, porque os habituei desde pequenos, hoje, está lá a minha filhota mais nova (de 44 anos) em Reguengos de Monsaraz, vinda do Algarve e vai passar uns dias.
Tenho tantas histórias para contar do Alentejo, antes da tropa fazia muitas viagens à boleia, para o Algarve e depois regresso, cada uma parece uma aventura, mas são águas passadas. Até o meu pai esteve no Quartel de Évora, onde dormi lá algumas vezes, regressando cheio de fome e sono, dos Carnavais de Loulé.
O Alentejo faz-me lembrar, não sei porquê, todo o Leste da Guiné, o Sector L3, talvez pela sua aridez, sem grandes elevações, vê-se tudo a dezenas de quilómetros de distância!
Ainda dá para perguntar, o meu amigo chama-se Azevedo, era o Alferes Morteiros, em 1967/68 em Nova Lamego, (comandante do Pelotão de Morteiros 1200),com quem fiz uma boa amizade, depois nunca mais soube dele, já foi editado um Poste 'A Tabanca do Morteiros' neste Blogue, ele era de Évora, mas não sei mais nada.

E não havendo mais a tratar, e antes que me venham a chamar de 'lamechices de velho' é melhor terminar.
Gostei disto, venham mais histórias destas.

Um abraço, Virgilio Teixeira,