Queridos amigos,
São bem pessimistas as informações sobre a vida económica e financeira da Guiné no início da década de 1960. O gerente de Bissau envia os dois panfletos enviados aos funcionários e oficiais do Exército, a autoria teria pertencido ao Movimento de Libertação da Guiné, o seu principal ativista era Rafael Barbosa, nacionalista convicto que estabelecerá um acordo com Amílcar Cabral para a fusão de partidos, existe historiografia que ajuda a compreender este contexto, leia-se, por exemplo, António Duarte Silva ou Leopoldo Amado.
Aproveito a circunstância para lembrar que até esta data não há sinais, pelo menos documentais, do PAI que se transfigurará em PAIGC. Talvez não haja estranheza nenhuma, ao contrário do que diz a mitologia o PAIGC arranca efetivamente em 1959 e torna-se público em 1960, a presença de Amílcar Cabral em Conacri e de Rafael Barbosa na agitação interna até março de 1962, é decisiva.
Um abraço do
Mário
Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (60)
Beja Santos
A partir de 1960, o gerente de Bissau não mais deixará de dar notícias sobre “acontecimentos anormais”, forma adocicada de indiciar que já se vive em agitação e há iniludíveis sinais ou pré-avisos da luta armada. Mas a vida continua. Dentro desta documentação avulsa encontra-se uma carta da Procuradoria das Missões Franciscanas endereçada à Administração do BNU solicitando um crédito para a construção de biblioteca e fornecimento de livraria, como se verá, o Secretário de Estado do Vaticano, o Cardeal Tardini é favorável a que se contraia tal empréstimo. De outro lado, e com data de agosto e setembro de 1961, a Associação Comercial, Industrial e Agrícola da Guiné solicita ao BNU a concessão de créditos aos pequenos “comerciantes do mato”.
Atenda-se aos argumentos da carta expedida pelo gerente de Bissau:
“O interesse destas operações, no actual momento, reside essencialmente na utilidade de fixarmos elementos brancos no interior por forma a não darmos ao indígena a ideia do ‘abandono’, não lhe criando dificuldades ou perturbações nas suas tradicionais relações de troca.
Acrescente-se que as chamadas casas grandes, ao que parece, não têm facilitado a estes comerciantes os adiantamentos que era uso conceder-lhes e, também ao que parece, estão seguindo uma política de retracção que, a ter as cores que certas fontes me têm descrito, suscitaria amargos comentários…
Mas porque se trata de pequenos comerciantes, isolados no interior, com uma estrutura económica extremamente frágil não se vê como seria possível ao Banco conceder-lhes crédito, tanto quanto ao aspecto técnico das operações como no que se refere à sua garantia.
Analogamente ao processo que, na Metrópole, temos usado com os Grémios da Lavoura, poderá aceitar-se aqui um crédito indirecto, por intermédio do organismo que legalmente representa esta actividade. Assim e se a Associação Comercial, Industrial e Agrícola da Guiné tiver personalidade jurídica e capacidade para se obrigar, fica a Dependência autorizada a abrir a favor da mesma associação uma conta-corrente, com garantia de livrança, até ao montante de 3 mil contos”.
A Inspeção do Ultramar pronunciou-se dias depois:
“Deve escrever-se à Dependência no sentido de a instruir para que no eventual arranjo a fazer com a Associação Comercial estude uma fórmula que permita ligar mais directamente os comerciantes do interior à acção do Banco. Isto é, pretende-se que os benefícios a conceder o sejam claramente pelo Banco, embora através da Associação Comercial”.
Dirigindo-se em setembro ao Governo do BNU, o gerente da Filial de Bissau acrescenta novos dados:
“O Sr. Governador da Província, conhecedor do assunto por intermédio do nosso Exm.º Administrador confessou-nos estar bastante interessado na operação, que considera, sob o ponto de vista económico, contributo valioso para a prosperidade dos pequenos comerciantes e agricultores. Voltaremos à presença de V. Exas. logo que a Associação Comercial conclua a elaboração do sistema de funcionamento de crédito a dispensar aos pequenos comerciantes e agricultores”.
Regressemos aos “acontecimentos anormais”.
Tem inequívoco interesse o que Bissau envia para Lisboa logo em 21 de fevereiro de 1960:
“Há cerca de 10 dias todos os Directores de Serviço e Oficiais de Exército receberam, pelo correio, lançados na central desta cidade, dois miseráveis panfletos de ataque à nossa soberania na Guiné. Todos os funcionários os foram entregar a Sua Ex.ª o Governador, o mesmo fazendo os oficiais ao seu comandante. Mas conseguimos que nos emprestassem um exemplar para tirar as cópias que enviamos. Nos meios responsáveis suspeita-se que os nojentos papéis tenham vindo da Metrópole, pois o seu aparecimento nos CTT coincidiu com o dia da chegada do avião. Atribui-se a sua redacção a um advogado, pela disposição do texto.
Entretanto, a estação emissora de Conacri desencadeou um covarde ataque a algumas personalidades desta terra, ataque que tem lugar nas emissões de domingo, pelas 18 horas. Com a montagem de um posto de interferência no mesmo comprimento de onda, conseguiu-se, ao que consta, anular a recepção.
Não falta na Guiné quem aplauda, com fins nitidamente antipatrióticos, a política do Governo local. Também existe quem discorde dela. Paralelamente, a situação económica não dá indícios de melhoria. A produção de mancarra e arroz estima-se inferior à do ano passado e as três grandes firmas aqui estabelecidas desencadearam uma forte alta nos preços de aquisição ao indígena, indo ao mato competir com os pequenos comerciantes, o que causou descontentamento neste sector. O arroz é insuficiente para alimentação da população. Está em curso uma importação de 3 mil toneladas para cumprir o défice da campanha.
A situação cambial agrava-se, mais por deficiência do sistema. Urge que se adoptem regras rígidas de disciplina nas importações e promover a entrada na Província das coberturas derivantes das taxas de concessão do petróleo.
Este conjunto de acontecimentos e circunstâncias traz a população, especialmente a população europeia, alarmada e inquieta”.
Vejamos agora o teor dos panfletos distribuídos na circunstância:
A 8 de março, o gerente de Bissau volta a informar o governo do BNU sobre essas ocorrências:
“Informamos V. Exas. que já foi preso pela PIDE um dos comparticipantes da miserável manobra do chamado Movimento de Libertação da Guiné.
A máquina de escrever onde foram dactilografados os papéis pertencem à Alfândega de Bissau e o dactilógrafo foi um mestiço, aspirante daquela repartição.
E fora de dúvida que o autor não foi ele, mas alguém de maior envergadura intelectual.
É possível que o malandrim já tenha confessado o nome de quem o incumbiu da tarefa, mas, ou por conveniência da polícia ou por outras razões, o certo é que não se sabe ter sido preso alguma das pessoas julgadas capazes de redigir o triste documento”.
(Continua)
Clicar nas imagens para as ampliar
Imagem esclarecedora do papel que desempenhava a Sociedade Comercial Ultramarina, a grande rival da Casa Gouveia (CUF), que, a partir dos anos 1950 passara a pertencer maioritariamente ao BNU.
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Notas do editor
Poste anterior de 9 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19178: Notas de leitura (1119): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (59) (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 12 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19187: Notas de leitura (1120): “Lineages of State Fragility, Rural Civil Society in Guinea-Bissau”, por Joshua B. Forrest; Ohio University Press, 2003 (1) (Mário Beja Santos)
10 comentários:
Notáveis documentos, Mário,que mereciam uma análise mais detalhada... Curioso o papel do gerente do BNU... que zelava tanto pelos interesses do banco como do território... Ele montou um verdadeiro serviço de "inteligência"!...
Já agora deixa-me dizer-te um 3 mil contos (, e, escudos da metrópole,) e, 1960 representariam hoje qualquer coisa como 1.316.274,67 euros..
Ab, Luís
Sobre o "nojento panfleto" que terá vndo da metrópole e que foi distribuído, pelo correio, a oficiais do exército em serviço na Guiné e ao funcionalismo em Bissau, inckuindo os funcionários do BNU... O gerente atribui a sua autoria a um "advogado", por causa da linguagem jurídica (referência ao famoso art 73 da Carta das Nações Unidas)... Mas era também alguém com ligações à província...
Alfredo António Pequito era então o Reitor do Liceu Honório Barreto, em Bissau. Tinha sido professor no Camões, e estava já à beira da reforma. Era da União Nacional...
O Ministro da Educação Nacional em 12 de dezembro de 1961 fez uma proposta para o condecorar com o grau de Oficial da Ordem da Instrução Pública.
Encontrei uma referência ao prof Pequito neste sítio Memória Recente e Antiga, da autoria de João de Castelo Branco
http://memoriarecenteeantiga.blogspot.com/2018/11/eles-foram-professores-do-liceu.html
05 NOVEMBRO 2018
Eles foram professores do Liceu...
Alfredo António Pequito
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Foi professor efectivo do 3º Grupo (Inglês e Alemão), no ano lectivo de 1947/48, tendo tomado posse no dia 25 de Novembro.
Durante a sua curta estadia desempenhou os cargos de Director das Instalações da Biblioteca do Liceu e de Director de Ciclo ainda no antigo edifício do Liceu.
Mais tarde foi Reitor do Liceu António Barreto, em Bissau, na Guiné.
Nota – Em Janeiro de 1962, quando entrei no Estágio pedagógico, realizado no Liceu de Pedro Nunes, encontrei ali como professor de Inglês, o Dr. Alfredo Pequito, quando já se encontrava muito próximo da reforma. Nesse mesmo ano, tive como colega de estágio o professor José Martins Gomes Pequito, filho de Alfredo Pequito, que frequentava também aquele Liceu, como estagiário do 3º Grupo (Inglês), sob a orientação do metodólogo Aníbal Garcia Pereira.
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Por proposta do Ministro da Educação Nacional de 12 de Dezembro de 1961 foi-lhe atribuído o grau de Oficial da Ordem de Instrução Pública. Publicado no DG n.º 256, 2ª Série, de 31 de Outubro de 1962.
Publicada por João de Castelo Branco à(s) 11/05/2018 12:30:00 da manhã
O nome de Benjamim Correia aparece aqui citado neste excerto de um artigo do historiador guneense Leopoldo Amado, membro da nossa Tabanca Grande, de longa data:
(...) Paralelamente, nas eleições para membros do Conselho do Governo da Província da Guiné faziam parte dos elementos favoráveis aos candidatos da “oposição”, os seguintes guineenses: Benjamim Correia, Armando António Pereira (advogado de 54 anos e candidato a membro do Conselho do Governo da Província, proposto pelo grupo de Benjamim constituído pelo branco Luís Mata-Mouros Resende Costa, 36 anos de idade, natural de Bissau, que nesse processo encarregou-se de expedir circulares, em colaboração Gastão Seguy Júnior (9), 36 anos, oficial de diligências do Juízo de Direito da Comarca, natural de Bolama (10).
É igualmente digna de registo a existência, mais ou menos paralela, de outro grupo de nacionalistas que actuava sob a coordenação de Mário Lima Wanon e do qual faziam parte o Dr. Artur Augusto Silva (11), o Dr. Severino de Pina, Godofredo Vermão de Sousa, Víctor Robalo, Armando António Pereira, Manuel Spencer e Crates Nunes. Embora as acções desenvolvidas nesta fase da luta fossem poucas, devido à feroz repressão e apertada vigilância da PIDE, o certo é que contribuíram para a mobilização em Bissau, particularmente nas camadas ligadas à pequena burguesia local. (...)
22 DE FEVEREIRO DE 2006
Guiné 63/74 - P558: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - I Parte
https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2006/02/guine-6374-dlxxv-simbologia-de.html
Há um Armando António Pereira, diretor de "O Comércio da Guiné" (1930-31)... Deve ser mesmo: tinha 54 anos em 1954, terá nascido portanto no início do séc. XX, em 1900
(...) O Comércio da Guiné com vinte números, foi publicado, entre 1930-1931, depois de quase uma década sem imprensa e já durante a ditadura. Foi dirigido por Armando António Pereira, advogado nativo, militante da Liga Africana e representante da Guiné na organização nas décadas de 1910-20. O último exemplar do jornal saiu em 18 de Abril e coincide com a eclosão de um movimento insurrecto na Guiné ligado ao Reviralho na Madeira.
Bissau, A. 1, n.º 1 (8 Dez. 1930)-a. 1, n.º 27 (4 Ag. 1931)
Semanal/Irregular
Director: Armando António Pereira (...)
Congresso Internacional Política e Cultura na Imprensa Periódica Colonial > Guiné-Bissau: Lista de títulos
http://expocomum.org/gb
Carta das Nações Unidas:
Capítulo XI
DECLARAÇÃO RELATIVA A TERRITÓRIOS NÃO AUTÓNOMOS
Artº. 73
Os membros das Nações Unidas que assumiram ou assumam responsabilidades pela
administração de territórios cujos povos ainda não se governem completamente a si mesmos
reconhecem o princípio do primado dos interesses dos habitantes desses territórios e aceitam, como missão sagrada, a obrigação de promover no mais alto grau, dentro do sistema de paz e segurança internacionais estabelecido na presente Carta, o bem-estar dos habitantes desses territórios, e, para tal fim:
a. Assegurar, com o devido respeito pela cultura dos povos interessados, o seu progresso
político, económico, social e educacional, o seu tratamento equitativo e a sua protecção
contra qualquer abuso;
b. Promover o seu governo próprio, ter na devida conta as aspirações políticas dos povos
e auxiliá-los no desenvolvimento progressivo das suas instituições políticas livres, de
acordo com as circunstâncias peculiares a cada território e seus habitantes, e os
diferentes graus do seu adiantamento;
c. Consolidar a paz e a segurança internacionais;
d. Favorecer medidas construtivas de desenvolvimento, estimular pesquisas, cooperar
entre si e, quando e onde for o caso, com organizações internacionais especializadas,
tendo em vista a realização prática dos objectivos de ordem social, económica e
científica enumerados neste artigo;
e. Transmitir regularmente ao Secretário-Geral, para fins de informação, sujeitas às
reservas impostas por considerações de segurança e de ordem constitucional,
informações estatísticas ou de outro carácter técnico relativas às condições
económicas, sociais e educacionais dos territórios pelos quais são respectivamente
responsáveis e que não estejam compreendidos entre aqueles a que se referem os
capítulos XII e XIII.
https://www.cm-vfxira.pt/uploads/writer_file/document/14320/Carta_das_Na__es_Unidas.pdf
Sobre a ideia de 'Províncias Ultramarinas' vale a pena recordar que os argumentos de Salazar a inviabilizar a descolonização, apresentados nos seus 'Discursos e Notas
Políticas (1943 e 1957).
'.....
Tem-se apresentado contra o conceito português das províncias Ultramarinas a objecção da separação geográfica, da falta de continuidade territorial. O argumento não pode ser decisivo já que, no Atlântico, os Açores são ilhas adjacentes, Cabo Verde aspira ao mesmo regime e também porque há numerosos Estados constituídos por parcelas distanciadas mais do que Lisboa está de algumas Províncias Ultramarinas. Trata-se de factos ou criações históricas para as quais se procuram, debalde, ajustamentos e teorias lineares.
.....'
Evidentemente que as Nações Unidas e outras potências coloniais estavam longe destes argumentos anti-descolonização.
Valdemar Queiroz
Obrigado Beja Santos por estas novidades (velhinhas).
É uma delícia eu ler hoje (2018)os escritos dactilografados por gente do Movimento de Libertação da Guiné (MLG), no mesmo tom autoconfiante, em que os angolanos falavam abertamente sem medo de qualquer PIDE, (1957)que lhes dessemos (nós os metropolitanos), a independência, que eles sabiam muito bem governar-se.
Hoje podemos chegar a algumas conclusões, é que os "indígenas" nem sempre permitiram que esses "autoconfiantes" se «governassem» após a libertação.
O mundo deu cada reviravolta!
Olá Camaradas
Este género de trabalhos já os comentei várias vezes. J+a se sabe o que penso dele.
Mas falta-me dizer que os "Estudantes do império" é que têm a culpa disto tudo.
Se não fossem eles na disto teria sucedido.
E ainda me falta falar dos fuzilados pós 25ABR que são consequência directa destes papéis.
Um Ab.
António José Pereira da Costa
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