domingo, 1 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20114: Escritos do António Lúcio Vieira (4): À noite o silêncio pesa-me... [do livro "25 poemas de dores e amores", vencedor da primeira edição do Prémio Literário Médio Tejo Edições, 2017]


António Lúcio Vieira - 25 poemas de dores e amores. Abrantes: Médio Tejo Edições - Origami Livros, dezembro de 2017, 64 pp. ISBN 9789899990814.


À NOITE O SILÊNCIO PESA-ME 

por António Lúcio Vieira

[ex-fur mil, CCAV 788 / BCAV 790 (Bula e Ingoré, 1965/67); 

natural de Alcanena, vive em Torres Novas; jornalista, poeta, dramaturgo, encenador; membro da Tabanca Grande, nº 794] (*)



Nasci aqui
neste patamar do tédio
por entre ventos e mistérios.
Nasci aqui
porque aqui me trouxeram as marés
e os ventos alísios do sul e as tempestades
e os ecos do tempo. E o espanto.
Cavaram-me as trincheiras do futuro
cinco reis mouros mais D. Sebastião.
Eu não.

Ás vezes à noite o silêncio pesa-me. 

Não era bem assim que imaginava o desfazer dos dias. 
Partiram há muito os do meu sangue 
porque sou do barro o pó
e não do ouro
onde se haviam de afogar se o pó brilhasse.

Nasci aqui
coberto por dossel de espinhos
resgatado à mortalha de um calvário.
Nasci nas ruas da servidão
onde não passa a luxúria nem a suspeita
que o dia de amanhã por obra de justiça
sepulte os ferros do martírio do meu berço
onde as penas deste jugo começaram. 


Nasci aqui. 
Não vos digo quando nem porquê
que nem eu próprio aprendi
as datas e as razões de se nascer
sem se dar conta de ter aberto os olhos
nem sequer de ter gritado a raiva
por ter sido parido ao deus-dará
e deixado às hienas que me traçam o futuro

António Lúcio Vieira



[Cortesia do autor, in "25 Poemas de Dores e Amores",  
vencedor da primeira edição do Prémio Literário Médio Tejo Edições, 2017]
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3 comentários:

Fernando Ribeiro disse...

Este poema faz-me lembrar a "Fala do Homem Nascido", de António Gedeão, e "Eu Sou Português Aqui", de José Fanha. Mas gosto mais deste. Gosto mesmo. Tem mais lirismo. Isto é poesia de primeira água.

António J. P. Costa disse...

Olá Camarada

Bom poema. Bem sentido!
Converte-o em prosa e di-lo numa peça de teatro.
Para quê escrever "poemas" se a prosa é tão rica.
Se não rima e a métrica falha, então vamos para a expressão das ideias que não é fácil e é sempre (muito) amadurecida antes de chegar ao papel.

Um Ab.
António J. P. Costa

Lúio Vieira disse...

Caro J. P. Costa,

Só agora (meados de Dezembro) li o teu comentário ao meu poema "À Noite o Silêncio Pesa-me".
Sugeres-me que o passe a teatro. Mal sabes, meu Caro, que nos idos de 1980, publiquei aquela que considero a minha peça mais marcante - "ALDEIABRAVA" - na qual, pelas vozes das personagens que para ela criei, digo de mim, dos meus anseios, dom país que somos e do país que queríamos (que queremos!), e mais das coisas que aqui, neste poema,e agora neste alvor do século XXI, ainda nos atormentam.
Trata-se de uma peça que quase ganhou um concurso nacional (ficou em segundo lugar) e que só agora se prepara (espero bem) para surgir num palco de Lisboa (quem sabe se Cascais - e Cascais,no fenómeno do teatro em Portugal, é mais Lisboa do que Lisboa cidade).

Um abraço e Bom Natal

Lúcio Vieira