sexta-feira, 22 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20998: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (3): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Abril de 2020:

Queridos amigos,
Dá-se sequência a um conjunto de esboços de um romance que não chegou a ver a luz do dia, houve um baralhar e dar de novo, a partir de 2006, quando voltei à fala com o Luís Graça, e me comprometi a pôr por escrito o meu diário, deixei no limbo todos os projetos anteriores, seja o que vivi na experiência açoriana, seja na ficção que me ocorreu, e ponho as mãos sobre os livros sagrados como magiquei estes amores que culminaram na Rua do Eclipse. E confesso que me dá prazer rememorar este projeto e as pessoas que o envolviam, reais ou ficcionadas, e que nem lhes passa pela cabeça como estão a ser movimentadas nestes tilintares de memória.
Continuemos, era suposto haver muitíssimo ainda mais para dizer.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (3): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Paulo Guilherme, agradeço-lhe os seus telefonemas, são sempre bem-vindos, são esclarecedores do que pretende para o arranjo do romance que está a organizar, espero não o dececionar com a minha colaboração. Estudei vários meses em Lisboa, para dominar com fluência o português, antes do 25 de Abril frequentei um curso de férias na Faculdade de Letras, nessa altura já trabalhava como intérprete, usando as minhas línguas nativas, o francês e o neerlandês, mais o alemão e o inglês, só mais tarde me decidi pelo espanhol e o português. Foi nos estudos em Lisboa que me apercebi da profundidade da vossa cultura, e pode imaginar a alegria que senti há alguns anos atrás, precisamente na Europália 1991, dedicada a Portugal, passei fins de semana nas vossas exposições em várias cidades da Bélgica. Consegui a custo entrada para a exposição do Triunfo do Barroco, no Museu Nacional das Belas-Artes, fiquei abismada com a sumptuosidade das obras apresentadas, já conhecia o Museu dos Coches, mas aquelas carruagens que D. João V mandou ao Papa, ainda por cima bem restauradas, foi um assombro. Estive também na exposição De Goa a Lisboa, visitei-a antes do Natal desse ano, também guardei o catálogo, estava perto do Museu Nacional das Belas-Artes, no Banque Bruxelles Lambert, dedicado à arte indo-portuguesa dos séculos XVI a XVIII, não sabia da importância de S. Francisco Xavier, de toda aquela arte religiosa em marfim, os cofres, os relicários, as imagens dos santos, as alfaias religiosas, os paramentos e até o mobiliário, foi outra completa surpresa, a vossa presença no Oriente deu aquela síntese com as tradições milenares indianas.

Não deixo de refletir como nós, os europeus, que caminhamos para uma maior aproximação do nosso destino comum, temos uma irradiação universal: os portugueses em África, no Brasil e em regiões do Índico, até na China e no Japão; os espanhóis no continente americano; sabemos por onde se fixaram os britânicos e os franceses; assimilámos a cultura greco-latina e as suas desvairadas proveniências; aos holandeses, não podemos subestimar a sua presença comercial em dois oceanos; e se virmos com atenção, os povos nórdicos também se espalharam, misturando-se com eslavos, procurando até conquistá-los. Somos um continente com algumas fronteiras bem precisas mas temos o privilégio de todos estes cruzamentos, em todos os continentes. Tomei nota da sua observação das imisções culturais do que é hoje a Bélgica, a nossa arquitetura é por um lado genuinamente flamenga e francesa. Mas há o passado, e gostei muito que me tivesse falado de Saint-Géry, temos vestígios da presença romana, o bairro era percorrido pelo rio Senne que, como bem sabe, foi todo abobadado do século XIX para o século XX, quando Bruxelas perdeu o ar medieval e passou a ter um traçado urbanístico de grandes boulevards. Ainda bem que gostou da requalificação do Mercado de Saint-Géry, terei muito gosto de na sua próxima viagem irmos lá tomar uma bebida.

Percebo o seu fascínio pela cidade. Não é por acaso que eu vivo aqui, neste ponto central, permita-me que lhe fale um pouco da minha história. Sou de origem judia, o meu pai chegou a ser dirigente do Partido Comunista da Bélgica, foi preso quando as tropas alemãs aqui chegaram. Nasci em 1944, em Marolles. Maman, de nome Juliette, deu-me à luz na comuna de Ixelles, no exato momento em que os alemães procuravam os últimos judeus para os recambiar para Leste, não havia ilusões de que era para os exterminar. O meu pai falou com um casal católico de Marolles, eu fui para lá e registada com o nome deles. Maman e a minha meia-irmã de seis anos, Ester, conseguiram, através de uma viagem audaciosa, chegar à Suécia, regressaram em julho de 1945. O meu pai ficou muito combalido pelo que passou na prisão, voltou ao ensino e foi com muita dor que assistiu ao definhamento do Partido Comunista, morreu amargurado. Tive bolsas de estudo, muito cedo descobri esta inclinação para as línguas, parece ser uma propensão natural dos judeus. Como o Paulo Guilherme, gosto muito de Arte e percorrer os mercados de velharias. Ciente de que nos encontraremos mais vezes, pelas razões do seu livro, vou preparar um roteiro com alguns passeios, por exemplo, há visitas guiadas a Marolles e a Saint-Gilles, há os passeios Arte-Nova, temos quase cem museus para visitar, é tudo uma questão de tempo e disponibilidade. Durante aquele nosso almoço referi-lhe que sou obrigada a constantes deslocações, embora uma boa parte da minha vida se passe nos bairros Léopold e Europeu, reuniões da Comissão e do Parlamento, vou ao Luxemburgo, há as conferências internacionais de todos os Estados-membros, dão-me jeito por causa das ajudas de custo, tenho muitas vezes os fins de semana tomados. Mas tudo se há de conciliar para conversarmos, ainda bem que gosta de passear, a minha mãe vive na comuna de Saint-Josse, depois de Madou, numa pequena moradia na Avenida Georges Pêtre, vamos buscá-la, podemos ir até Waterloo, que me disse que não conhece, será o nosso primeiro passeio.

Falemos agora do seu trabalho, vamos deixar essa paixão ficcionada para mais tarde. Há aqui uma mistura entre a realidade e a ficção, como aliás me tem observado nas conversas telefónicas, e não lhe quero esconder o assombro que me provoca aquelas descrições da sua guerra colonial. Como me pede sugestões, gostava muito que o Paulo Guilherme me descrevesse as razões que o levaram a decidir ir à guerra, já que era contra ela. Não entendi bem o que me disse que rapidamente se aclimatou a viver muito bem com a população e com os seus soldados, não percebi se havia um quartel de um lado e um aglomerado de habitações nativas ali perto, pelo que me descreve parece que tudo se mistura. Parecendo que não, esse seu esclarecimento pode tornar, permita-me a apreciação, o seu relato mais interessante e aproximativo entre o tal português que vem trabalhar a Bruxelas e que se rende incondicionalmente de amores por uma mulher que tem o seu coração livre mas quer saber tudo sobre o passado dele, quer entender como aquela guerra tão violenta lhe mudou a vida, como ele tão insistentemente proclama.

Não se esqueça de me confirmar os seus planos de viagem. Os seus telefonemas são recebidos com o maior agrado, acredite, mas se possível telefone-me sempre antes das dez horas, não se esqueça que há vezes em que saio de casa às cinco e meia da manhã, quando vou trabalhar no Luxemburgo. Bem para si, muito bem para si, Annette.



Les Halles de Saint-Géry

Interior de Les Halles de Saint-Géry

Annette foi trabalhar para Antuérpia e manda uma imagem da Grand-Place


Imagens da Feira da Ladra de Bruxelas, Place du Jeu de Balle

Num bairro típico de Bruxelas, Marolles

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20975: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (2): A funda que arremessa para o fundo da memória

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