quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Guiné 61/74 – P21366: (Ex)citações (370): Rumo à guerra colonial na Guiné (José Saúde)




Dois "rangers", o Zé Saúde e o Pedro Neves

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

José Saúde

Rumo à guerra colonial na Guiné 

Histórias de vida 


Estávamos em finais do mês de julho do ano de 1973. Usufruíamos do facto de ter dado por terminado a instrução ao 1º grupo de cadetes, 2º turno, de futuros rangers em Penude. Seguiu-se, naturalmente, um período de descanso, sabendo, contudo, que o nosso destino passava por uma comissão militar na guerra colonial, sendo que a nossa mobilização tinha como destino o território da Guiné. 

Aconteceu, porém, que nos encontrámos, casualmente, em Lisboa, no Aeroporto de Figo Maduro. Um voo que, e não soubemos o porquê, foi adiado. Eu “desarmado”, pois estava longe de casa, fiquei, desde logo, algo conturbado, o que se justificava. E agora? Pensei! Mas de pronto o meu camarada ranger Pedro Neves, companheiro de muitas endiabradas aventuras por terras de Lamego, logo me confortou: “Levamos a bagagem e vais ficar em minha casa”. E foi assim que, solenemente, alçámos a âncora da salvação e lá partimos rumo ao seu doce lar. 

Uf! Que alívio, pensei. Pelo menos tinha um teto que me abrigasse por uns dias, ou horas. Antes essa disponibilidade do meu camarada Pedro do que regressar à minha terra natal – Aldeia Nova de São Bento – no interior do Baixo Alentejo, uma região que outrora se afirmava como o celeiro da Nação, tendo em linha de conta a quantidade de cereais que por ali se produziam anualmente.   

A casa do Pedro Neves era nos Olivais, um local não muito distante do Aeroporto de Lisboa, e ali me instalei. Claro que a hospitalidade foi “cinco estrelas”. Os pais do Pedro foram enormes. Acarinharam-me como mais um “filho”, comia, bebia, passeávamos pela capital do “império” e dormia na paz dos anjos, mesmo sabendo que a ida para o conflito era irreversível. 

Tanto eu como o Pedro Neves, pensámos que a alteração de horário do voo fosse breve, ou seja, de um ou dois dias, contudo, tal facto não aconteceu. O Pedro, ao que vim a saber, tinha por lá um amigo que orientava as idas dos camaradas mobilizados para a guerra de além-mar e foi-nos, propositadamente, colocando no final da lista de embarque. 

Mas, chegou o dia em que ele próprio, isto é, o nosso ocasional “padrinho”, terá dito ao Pedro que a partir dali já não havia razão alguma que justificasse o adiar do embarque destes jovens militares. “Preparem-se que a viagem está para breve”, avisou. E assim foi. 

A nossa hora chegou e lá partimos – 2 de agosto de 1973 - num avião rumo à guerra colonial da Guiné. Para trás ficava a construção de uma amizade, que ainda perdura, e a imagem dos seus saudosos pais que eternamente recordarei na minha alma pela forma digna, e sobretudo compreensível, como me hospedaram no seu lar.    

Quatro horas, sensivelmente, de voo e lá aterrámos no então Aeroporto de Bissalanca, seguindo-se uma viagem, creio que, e se a memória não me falha, numa carrinha militar, que nos conduziu às instalações do Quartel General (QG), o famigerado “Biafra”, como pomposamente a rapaziada alcunhava o local.  

Ali fomos recebidos como “piriquitos”, sendo que as “bocas da velhada” desde logo entoaram, com enfâse, o famoso desígnio “piu-piu-piu”. Tanto mais que os dourados das divisas não enganavam, seguindo-se uma visita à zona baixa de Bissau, mas só depois de acomodarmos os nossos haveres e procurarmos poisos para descansar, à noite, os nossos corpos. 

Com o bolso “carregado” de notas, visto que previamente havíamos recebido o pré da “embarcação” para comprar todo o fardamento de guerra, sendo que os escudos foram, entretanto, cambiados por “pesos”, eis-nos a devorar uma bela mariscada ao “toque” de umas frescas cervejolas.  

O tempo de estadia no QG foi breve. Ficou, contudo, a certeza da nossa passagem por aquele lugar “solene” e um relativo conhecimento da capital guineense. Pelo menos tivemos a oportunidade em ver os seus usos e costumes, bem como os odores de uma África quiçá inigualável. Aliás, a nossa passagem por Bissau, cidade que nos havia recebido, deu para fazermos um pouco de “ronco”, visto que nos deparámos, de imediato, que num ambiente de guerra, onde o calor imperava, a sôfrega ânsia de ingerir líquidos era algo determinante para todos os camaradas. 

Sim, aquele clima era, para nós, inovador. Neste contexto, seguimos as peugadas de camaradas já feitos ao sistema.  

Chegou a hora de partirmos rumo às nossas unidades. O Pedro foi para Binta e eu para Gabu.  

Um abraço, camaradas,

José Saúde

Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

___________

Nota de M.R.:

Vd. também o poste anterior desta série:

 27 DE AGOSTO DE 2020 > Guiné 61/74 - P21297: (Ex)citações (369): A política de misceginação e o major de artilharia Dimas Lopes de Aguiar, autor do opúsculo "Guiné Portuguesa - Terra de Lenda, de martírio, de estranhas gentes, de bravos feitos e de futuro" (1946) (António Rosinha)

 

3 comentários:

José Pedro Neves disse...

Pois é verdade Grande Amigo José Saude e já lá vão uns aninhos (...e a nossa mocidade, desaparecida), que este episódio se passou, mas esqueceste, que em Bissau estava lá um Amigo meu, civil, que morava na minha zona (Olivais-Norte)e era um técnico das Berliet-Tramagal, que estava a dar formação aos mecânicos, que iam para a Guiné. Estivemos uns dias com ele, dormimos no Grande Hotel, onde ele estava instalado e mostrou aos dois "piras", alguns locais mais interessantes de Bissau, ou seja, onde se comiam as melhores ostras, o melhor camarão e se bebiam as melhores "fresquinhas" e vinho verde, para não falar das outras "coisas". Passados uns dias, recebemos Guia de Marcha, tu para Nova Lamego e eu para Binta. Depois, só nos encontrámos, casualmente, á "civil", na antiga Feira Popular, no Campo Grande, em Lisboa, depois do regresso e do fim da Guerra Colonial. (Chegámos lá e "acabámos" com a guerra…). Um Abraço Amigo, extensivo a todos os Camaradas ex-Combatentes.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Um belo exemplo de amizade e camaradagem...Sei que ficou para a vida Parabéns a ambos!... LG

José Saúde disse...

Pedro Neves, meu velho amigo e camarada ranger/sempre,

Diz o Luís Graça que a nossa "amizade e camaradagem" constitui "um belo exemplo". E é verdade. A tropa, e a nossa especialidade, os rangers, designadamente, fez-nos crescer. O texto que trabalhei vinca, sobretudo, como nós, embora jovens, recebemos excelentes ensinamentos em pleno sopé da Serra das Meadas, Penude, que ficaram para a vida pois quando o momento era para "desenrascar" lá vinha a suprema solução: ninguém ficava para trás porque o fim era seguir em frente articulando as diversas alternativas que existiam, e existem, na verdade no interior da nossa mente.

Sim, Pedro, a nossa chegada à Guiné, depois de quatro horas de voo sentados lado a lado no mesmo banco, onde nos foi servida uma refeição e os respetivos condimentos, e onde também visualizámos pequenas aldeias situadas no deserto do Saará.

Enfim, recordações que ficarão connosco para a eternidade. Grato pelo teu recordar da nossa chegada a um Bissau onde alguém, teu amigo, nos conduziu a sítios tão bélicos, na altura, pois claro.

Abraço, meu amigo.

Zé Saúde