quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21718: O segredo de ... (33): conversas da treta entre dois milicianos da CCAÇ 12 (Luís Graça / João Candeias da Silva)


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > CCAÇ 12 (1969/71) > 1970, ao tempo do BART 2917 > O Alf Mil Op Esp Francisco Magalhães Moreira. Era o comandante do 1º Gr Comb da CCAÇ 12 e, na prática, o 2º comandante da companhia. Era o homem de confiança do Cap Inf Carlos Brito. O melhor preparado dos oficiais milicianos da companhia. Tinha o curso de operações especiais. Era disciplinado e disciplinador. Um homem afável, mas algo distante e reservado, muitas vezes escondido sob os então na moda óculos de sol Ray-Ban (um "ronco"  muito apreciado pelo milicianos, que tinham algum poder de compra no TO da Guiné...). 

Sempre o tratei por você... Fora da actividade operacional, convivíamos pouco, eu e ele. Não era homem de noitadas. E nunca ou raramente vinha beber um copo connosco no bar de sargentos, contrariamente ao alf mil Abílio Machado, da CCS / BART 2917. 

Era "compreensível":  os furrieís da CCAÇ 12, milicianos, mais os dois sargentos do QP (e, em particular, o impagável 2º sargento Piça), tinham um excelente espírito de corpo... Mas, numa sede de batalhão, o "espírito de casta" era cultivado e mantido, e o convívio, "fora do mato" (leia-se: da guerra) entre oficiais, sargentos e praças não eram bem vistos ... 

O bar de sargentos de Bambadinca era, em 1969/71, o único sítio, dentro do grande quartel que era o de Bambadinca, onde "os três estados, a nobreza, o clero e o povo", podiam confraternizar...  Vistas as coisas à distância de meio século,  Bambadinca era bem um retrato de um Portugal que estava em vias de desaparecer... 

Não creio que o Moreira conheça o nosso blogue... Nunca nos contactou. Respeito o seu silêncio, o dele e dos demais camaradas que estiveram connosco no TO da Guiné, e que têm, provavelmente,  reservas quanto ao risco de exposição da sua vida privada, decorrente da participação de um blogue como este...  

Vi-o,  pela última vez, em 1994, em Fão, Esposende, no 1º encontro do pessoal de Bambadinca (1968/71). Desejo-lhe muita saúde e longa vida e um ano de 2021 melhor do que o "annus horribilis" de 2020. E daqui vai, para ele,  um alfabravo do tamanho do nosso longo e sinuoso Rio Geba de cuja água bebemos os dois. 

Claro que ele não tem nada a ver com a "conversa da treta" travada entre mim e o Joâo Candeias, reproduzida a seguir.

Foto do  álbum do Benjamim Durães, tirada numa tabanca fula em autodefesa, que não consigo identificar.  

Foto: © Benjamim Durães (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].



Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 > CCAÇ 12  (1969/71) > Estrada Xime-Bambadinca > O 1º comandante da companhia, o Cap Inf Carlos Brito (hoje, coronel na reforma), uma homem afável e  educado, mas já à beira dos 40 anos, e que delegava grande parte das responsabilidades operacionais no alf mil op esp / ranger Francisco Moreira... 

O Carlos Brito também não tem a nada a ver com os "segredos" aqui partilhados a seguir. Esta foto pretende apenas ilustrar a "solidão" de muitos dos nossos comandantes operacionais, quer do QP, quer milicianos, que os impediam de conviver com os seus subordinados, milicianos e praças, fora das horas da guerra... Como se dizia na tropa, "serviço era serviço, conhaque era conhaque". Ou seja, nada de misturas. Acredito que noutros quarteis do mato, com instalações mais precárias e exíguas, o "distanciamento social" fosse mais curto...

Foto: Arquivo de Humberto Reis (ex-fur mil op esp / ranger,  CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

Foto: © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. O nosso blogue vai fazer 17 anos (dezassete anos !!!), em 23 de abril de 2021, se lá chegarmos,..  Desde 2008, ou seja,  há 12 anos,  temos vindo a contar "segredos", pequenos e grandes segredos, da nossa vida militar, ou até pessoal ou mais íntima,  "coisas" passadas há mais de meio século, mas que só agora, por uma  razão ou outra, queremos partilhar uns com os outros... 

O propósito deste série, "O segredo de...", é esse mesmo: ser uma espécie de confessionário (ou de livro aberto) onde se vem, em primeira mão, revelar "coisas" do nosso tempo da tropa e da guerra (1961/74),  que estavam guardadas só para nós ou só eram do conhecimento do nosso círculo de relações restrito (alguns camaradas de armas) ou mais íntimo (cônjuge, filhos, amigos do peito).

É esperado que os nossos leitores não façam nenhum comentário crítico, e nomeadamente condenatório, em relação às "revelações" aqui feitas, mesmo que esses factos pudessem eventualmente, à luz da época, constituir matéria do foro do direito penal, militar ou civil, infringir a disciplina ou ética militares, os usos e costumes, a moral da época, o "politicamente correto",  etc.

Aprendemos, neste blogue, a "saber ouvir os nossos camaradas de armas e a não julgá-los"!...  Nomeadamemnte, os vivos... Nos dois casos a seguir referidos, há omissões que são compreensíveis (*). Trata-se de uma "conversa" que não é da treta, entre o nosso editor Luís Graça e o João Candeias da Silva, por coincidências dois camaradas que integraram a mesma companhia, a CCAÇ 12 (formadas por praças do recruramento local) mas em épocas diferentes, e que por isso nunca se cruzaram, "nem lá nem cá"... A CCAÇ 12, formada no CIM de Contuboel (1969), esteve em Bambadinca (1969/73) e no Xime (1973/74), tendo estado "ao serviço de" quatro batalhões diferentes. Foi extinta em meados de 1974.

O João Candeias Silva foi fur mil at inf, de rendição individual, CCAV 3404 (Cabuca, 1972), CCAÇ 12 (Bambadinca, 1973) e CIM Bolama (1973/74). O Luís Graça é um dos "pais-fundadores" da CCAÇ 12 e é o autor da única história da unidade que existe no Arquivo Histórico-Militar.

(i) João Candeias Silva:

Não sei se estou a pôr a pata na poça, mas em 73 um alferes, que não recordo o nome, foi colocado numa companhia que estava a fazer a protecção aos trabalhos nessa estrada [Farim-Mansabá]

Estivemos juntos em Cabuca na CCAC 3404 em finais de 1972. Em 73 Janeiro fui para a CCAÇ 12 e ele para a companhia que estava a fazer a segurança à estrada de Farim.

Passados meses, talvez uns seis encontramo-nos em Bissau, placa giratória, para ir e para vir de férias ou ir para o mato ou consulta externa, etc. E qual não é o meu espanto, em vez de ter o galão de alferes, era 2° sargento. Tinha levado uma porrada.

Da conversa que tivemos o assunto tinha chegado ao Spínola. Ele, um ótimo rapaz, precisava de desabafar e ficávamos muito tempo à conversa. O assunto tinha-o abalado muito. Não era caso para menos.

Não sei como terminou.

Julgo ter sido um caso inédito.

Sobre este assunto tem de haver registo no arquivo do exército e sobre a nega da CCAÇ 12 em ir para o Xime também é pouco plausível que não haja. (*)

(ii) Luís Graça:

João, há muitas histórias da nosssa guerra que nunca chegarão à luz do dia... Algumas já chegaram ao nosso conhecimento através do blogue...

Isto é como a história dos impedimentos do casamento em que o oficiante, antes de se dar o nó, pergunta, na presença dos noivos, dos padrinhos, dos pais, da família e dos demais convidados, se alguém tem alguma objeção aquela união, então que "fale ou cale-se para sempre"...

Alguns de nós perdemos a oportunidade de falar na altura devida, e agora resta-nos falar aqui ou calarmo-nos para sempre... Sempre assim foi em todas as guerras...e nos pós-guerras.

Mesmo assim, entre dois uísques, num alamoçarada, num convívio, às vezes lá sai um "segredo de confessionário"...

Quando fui a Angola (e fui lá meia dúzia de vezes a partir de 2003), houve antigos miliatres das FAPLA, do topo da hierarquia (oficiais generais), que me contaram "segredos de Estado", à mesa... Coisas "sinistras" que só agora há coragem para se falar delas em público (como o que aconteceu na sequência dos trágicos dias de 27 de maio de 1977 e seguintes)..

Mas voltando à Guiné, soube há uns anos de uma história dessas que não podem aqui ser contadas, com datas, locais, topónimos, nomes de camaradas, etc.

Num destacamento (que não vamos identificar porque os protaggonistas estão vivos), guarnecido por a nível grupo de combate, e na ausência do comandante (alferes miliciano), dois militares desatam à porrada, por razões de lana caprina...

Muitas veses estes conflitos entre dois camaradas e amigos eram provocados pelo stress, a tensão, o isolamento, a exaustão, o cansaço, a promiscuidade, a subnutrição, mas tabém o álcool, etc.

Soco atrás de soco, um deles cai de costas, bate com a cabeça no chão, takvez nalguma pedra,  e morre, de traumatismo craniano (presume-se)... E agora ? Como justificar um "trágico acidente" destes, na ausência de um ataque ou flagelação do destacamento por parte do IN ou de embocada nas imediações ?...

Fez-se um "pacto de silêncio" entre todos os presentes (soldados, cabos e um furriel...). O corpo foi transportado num Unimog e entregue na sede da companhia ou do batalhão, já cadáver...

Deve ter havido um auto de averiguações, mas toda a gente (os graduados e as praças) mantiveram a mesma versão, a de uma queda acidental, infelizmente mortal...

O "pacto de silêncio" também faz(ia) parte das regras de camaradagem... Ontem como hoje... em toda parte do mundo, em todas as guerras (*)


(iii) João Candeias da Silva:


Caro Luís: As conversas são como as cerejas. Ao ler o que descreveste sobre a pancadaria que teve tão trágico desfecho (*), veio à minha memória uma ocorrência na CCAÇ 12 que vou descrever.

Estávamos ainda aquartelados em Bambadinca, no topo do edifício onde era a messe da CCAÇ 12, virado para a escola, havia 4 ou 5 cadeiras de baloiço feitas de pipas de vinho.

E nós, os furrieis, costumavamos depois do pequeno almoço ficar por ali na cavaqueira. Naquele dia, algures entre feveiro e março de 1973, devia ser domingo, pois estávamos à civil. Bem instalados, e na conversa da treta, éramos uns de 4 ou 5 furrieis.

Os cadeirões todos ocupados. Chegou um alferes da 12, começou a conversar connosco.
A conversa foi-se prolongando durante um bocado e, completamente fora do contexto, o alferes disse para um furriel: "Levanta-te, que eu quero sentar-me."

A nossa primeira reacção foi que o alferes estava a brincar, mas como o furriel não se levantou para lhe ceder o lugar, o tom de voz subiu e disse ostensimante: "Levanta-te, é uma ordem!.

Como o furriel não lhe obedeceu, deu-lhe uma chapada na cara. Após a agressão, o furriel levantou-se e, felizmente, não reagiu à agressão. Nós estávamos incrédulos e sem palavras. Era surreal o que estava a acontecer na nossa frente.

O furriel acabou por fazer queixa, pois como sabes o inferior hierárquico não pode participar, e tem logo à partida garantida uma porrada que tem como consequência imediata a perda do mês de férias.

O fim da ocorrência não sei como terminou.

Para situação ainda hoje não encontro justificação. Foi presenciada por mim e pelo António Duarte, entre outros, que não recordo.

Durante muito tempo fiquei a matutar: "E se fosse comigo?!!... (*)
________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 15 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21170: O segredo de... (32A): Alcídio Marinho, ex-fur mil inf, CCAÇ 412 (Bafatá, 1963/65)... "Também tenho um víquingue na minha árvore genealógica"

6 comentários:

Anónimo disse...


eduardo francisco
quinta, 31/12/2020, 22:46

Conversa da treta-Conversa de merda

Companheiro camarada e amigo Luís Graça!

São realmente como as cerejas, as conversas!

Estive a ler os desabafos e os comentários relativos ao relacionamento entre militares no TO da Guiné.

Também tenho para contar. Um Alferes Miliciano da minha Companhia [, CCAÇ 14,] que chegou a estar contigo em Contuboel, teve comigo o seguinte episódio: após o meu regresso de Bissau onde me tinha deslocado para extrair um dente e, quando á noite bebiamos um copo junto aos aposentos dos sargentos do quadro em Cuntima, contei que me tinham "caçado" para fazer um piquete a Bissau e as peripécias que resultaram dessa nomeação.

Esse Sr Alf Mil achou por bem comentar que eu tinha tido sorte pois se fosse sargento de dia ás cagadeiras era muito pior.

Olhei-o de frente e disse-lhe que a minha sorte havia de ser o seu azar já que na escala de serviço que eu consultara em Bissau, caber-lhe-ia a ele fazer oficial de dia ás cujas ditas quando lá fosse.

O Cap da minha Comp, presente na ocasião, distinto operacional de secretaria, achou por bem intervir e perguntar-me se eu achava correcta a forma como respondi ao meu superior, tendo eu chamado a atenção para o facto de também o Sr Alf Mil não ter sido educado comigo.

Daí resultou que eu e o Alferes nunca mais nos falássemos, situação que resolvemos quando viajámos juntos no Manuel Alfredo que saiu de Bissau 7 ou 8 dias depois da malta do nosso tempo ter regressado, já que os nossos substitutos chegaram mais tarde.

Abraço fraterno

Eduardo Estrela

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Eduardo, "conversas da treta, conversas da merda", dizes bem!... Havia picardas dessas, entre nós... Infelizmente...

Nem todos éramos bem formados, como pessoas, copmo seres humanos, cpmo militares... Como em todos os grupos humanos, havia gente que tinha um ou mais dos 4 defeitos que eu abomino e associo aos cavaleiros do apocalipse: (i) a estupidez; (ii) a arrogância; (iii) a ganância; e (iv) a intolerância.

Que Deus, Alá e os bons irãs nos protejam dessa "gentinha"...

Olha, é o primeiro comentário de 2021...

Um abraço fraterno. Luis

Valdemar Silva disse...

Estrada Xime-Bambadinca, passei por ela em Fev/1969, saído de Bissau a caminho de Contuboel, e mesmo com segurança da milícia e com a capinagem feita, com exceção do condutor toda a gente seguia a pé ao lado das viaturas.
Mais tarde, por duas vezes, voltei a fazer o mesmo percurso com o meu Pelotão/CART.11 a fazer a segurança de colunas de reabastecimento (Nova Lamego-Xime-Nova Lamego), e também estava feita a capinagem da estrada.

Valdemar Queiroz

Abilio Duarte disse...

Olá Valdemar,
Verdade pura, a minha primeira vez que fui ao mato, e jamais me esquecerei, foi nossa chegada ao Xime, vindos de Bissau em LDG.

Quando pus os pés em terra, fiquei logo acagaçado.

Só via gente (militares) desfardados, alguns alcoolizados, com bajudas ao colo, etc. etc. e pensei para mim...a minha mãe, vai ter que rezar muito para me voltar a ver.

De seguida o caminho para Bambadinca, como dizes tudo a pé, que aquilo era zona de guerra, e eu de camuflado novo, sapato novo, arma nova, e aquela malta que nos ia ajudar na coluna, tudo desirmanado, e sujos. Porra onde eu me vi meter.

Mas lá chegamos a Bambadinca, depois Bafatá, e finalmente Contuboel, um dia em cheio que como disse ainda hoje recordo quase todos os paços.

Em relação á Messe de Sargentos de Bambadinca, fiquei lá algumas vezez, pois devo ter sido um dos Furrieis, que mais por ali passou, quando fui ao Xitole duas vezes e inúmeras ao Xime.

Tive sempre a gentileza daquela, malta, onde aprendi o que era o Bioxene, e comi e dormi lá algumas vezes, pois tinha lá o meu Colega do BNU o Carlos Lopes da Administração, que me arranjou sempre asilo.

Gosto imenso de recordar esses tempos de boa camaradagem e amizade.

Um bom ano de 2021 para todos, vamo-nos aguentando.

Abílio Duarte

Valdemar Silva disse...

Duarte
Pois, naquele dia foi tudo a estrear e deu logo para abrir a pestana
Não me lembro bem, mas julgo que não tínhamos munições distribuídas.
Recordo-mo de ver árvores com roquetadas, invólucros pelo chão, milícia com lenços vermelhos e as bermas da estrada estavam todas capinadas. Nesta foto até parece que podiam apanhar o capitão à mão.

Abraço e Bom Ano 2021
Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Valdemar e Abílio, olhem-me só para a altura daquele capinzal... Também experimentei as mesmas emoções que vocês quando desembarquei de LDG, no Xime, ainda não existe cais acostável de jeito...Fiz a viagem num "Matador", um rebocador de obus... Vim no 1º andar... Viagem fantástica, com visão panorámica, e de cu apertado...

Os gajos que estavam no Xime, os da CART 1746 (Bissorã e Xime, 1967/69), do saudoso cap mil António Vaz (falecido em 2015, nosso tabanqueiro) estavam completamente apanhados, à beira de irem para a peluda... Vocês passaram lá 3 meses antes...

Quem diria que voltaríamos, a CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, àquele setor (triângulo Xime- Bambadinca . Xitole) para fazer a puta da guerra, com os vossos putos recrutas ?!...Reguilas e valentes, os putos...

Aquele abraço!... LG