domingo, 25 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22402: In Memoriam (399): Coronel Otelo Saraiva de Carvalho (1936 - 2021), autor do Plano de Operações do 25 de Abril de 1974 e que cumpriu uma comissão de serviço na Guiné entre 1970 e 1973

IN MEMORIAM

Coronel Otelo Nuno Romão Saraiva de Carvalho
Lourenço Marques, 31/08/1936 - Lisboa, 25/07/2021


BIOGRAFIA

Militar, político e estratega do 25 de Abril

Otelo Saraiva de Carvalho nasce em Lourenço Marques, a 31 de Agosto de 1936.
Cumpre comissões de serviço em Angola, entre 1961 e 1963, e na Guiné, entre 1970 e 1973.

Esteve presente na génese do Movimento dos Capitães, tendo desempenhado o papel de responsável pelas operações no golpe militar de 25 de Abril desde o posto de comando que se situava na Pontinha, em Lisboa. 

No período revolucionário foi comandante-adjunto do Comando Operacional do Continente (COPCON), passando a ser comandante efectivo em Março de 1975, mas assumindo a responsabilidade desde o início da presidência da República de Costa Gomes. 

Foi também nomeado comandante da Região Militar de Lisboa (RML) a 13 de Julho de 1974. Durante o Processo Revolucionário em Curso (PREC) integrou ainda o Conselho da Revolução, formando, juntamente com Francisco Costa Gomes e Vasco Gonçalves o triunvirato mais célebre de 1975 – o Directório – que mereceu uma capa da revista Time. Foi afastado de todos os cargos após os acontecimentos de 25 de Novembro de 1975, tendo inclusive sido preso.

Candidato às eleições presidenciais de 1976 e de 1980, acabou derrotado em ambas. Nesse mesmo ano criou o partido Força de Unidade Popular (FUP). Em 1985 é acusado de liderar as FP-25, o que lhe valeu cinco anos de prisão, tendo sido amnistiado em 1996. No decorrer do processo das FP-25, foi despromovido de brigadeiro a tenente-coronel.


Com a devida vénia a Memórias da Revolução

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Em 6 de Maio de 2011, na nossa série Notas de Leitura, Mário Beja Santos fazia esta recensão ao livro "Alvorada em Abril", de Otelo Saraiva de Carvalho:

Guiné 63/74 - P8230: Notas de leitura (236): Alvorada em Abril, de Otelo Saraiva de Carvalho (Mário Beja Santos)

Otelo Saraiva de Carvalho e a Guiné


Beja Santos

"Alvorada em Abril" é o título das memórias de uma figura lendária do 25 de Abril em torno da história portuguesa dos anos 50 aos anos 70, culminando com a concepção e execução do derrube do regime chefiado por Tomás e Caetano. Temos nestas memórias o que para ele foi determinante, no seu percurso pessoal e no seu modo de interpretar os acontecimentos contemporâneos, a génese e o triunfo do Movimento dos Capitães e como este desaguou no 25 de Abril ("Alvorada em Abril", Editorial Notícias, 4.ª Edição, 1998). A sua terceira e última comissão foi na Guiné, pelo que tem todo o sentido fazer o registo das suas lembranças e observações.

Ele parte para a Guiné em Setembro de 1970 e logo recorda que se encontrava em Nova Lamego, em 22 de Novembro, quando soube da invasão da Guiné-Conacri. A notícia deixou-o estupefacto, ele que trabalhava em Bissau de nada sabia e acrescenta que posteriormente veio a saber que o assunto já era discutido pelas mulheres dos oficiais nos cabeleireiros da Baixa de Bissau antes de se ter realizado. Nessa noite, enquanto decorria a operação, houvera vigília em Bissau, Spínola aguardava ansioso das notícias da missão rodeado dos seus leais colaboradores, tenente-coronel Robin de Andrade, major Firmino Miguel e major Jorge Pereira da Costa. E adianta: 

"Ainda hoje desconheço quais seriam, exactamente, os objectivos da missão, mas parece não restarem dúvidas de que, entre eles, estariam os assassínios de Amílcar Cabral e de Sékou Touré, o silenciamento da Rádio Conacri, a destruição de sede do PAIGC, a destruição de aviões na base aérea local e a libertação de prisioneiros de guerra portugueses retidos nas prisões da cidade".

Dá-nos em água-forte um retrato de Spínola que culmina com uma apreciação corrosiva:

  "Medularmente vaidoso e autoritário, sempre o reconheci totalmente incapaz de se atribuir o mínimo erro ou de debitar a mais suave autocrítica. Sendo detentor da razão e da verdade absolutas, era com displicência e sem remorso que liquidava o bode expiatório escolhido para arcar com as responsabilidades de qualquer falhanço pessoal... demagogo em extremo nunca entendi com clareza se as qualidades que nele admirava era autênticas e humanas ou se cultivadas com esforço a fim de construir artificialmente uma personagem".

Descreve o seu trabalho no QG e alude mesmo o nome de oficiais milicianos, da extrema-direita, que mais tarde acompanharão Spínola na aventura do MDLP.  Colocado na Subsecção de Operações Psicológicas, assistiu ao exibicionismo propagandístico é à construção de imagem que Spínola quis criar em Portugal e internacionalmente, o que ele procurava era sugerir um extraordinário surto de progresso na Guiné com a sua governação e minimizar os êxitos no combate do PAIGC. 

Narra peripécias com jornalistas internacionais, certames de propaganda, a realização de Congressos do Povo. Refere os efectivos militares, do lado português e os do PAIGC, as argumentações de aliciamento, de um lado e do outro. 

A narrativa não é cronológica, dá saltos, vai até ao futuro repentinamente, conta histórias passadas, de supetão. Está-se a falar da propaganda do PAIGC, seguem-se referência ao seu programa político, destaca-se a figura de Rafael Barbosa como agitador, que foi preso em Março de 1962, tendo permanecido encerrado num cubículo durante quase 8 anos, onde foi espancado e torturado. Em Agosto de 1969, Spínola ordenou que fosse libertado. Tempos mais tarde, Rafael Barbosa manifestará publicamente o seu arrependimento por ter aderido à luta armada. Em 1977, será julgado em Bissau pelo PAIGC pelo crime de traição ao partido e ao povo e ser-lhe-á comutada para 15 anos de prisão a pena de prisão perpétua a que fora inicialmente condenado.

Já em 1973, o autor descreve a chegada dos mísseis terra-ar Strela e depois depõe sobre o controverso "I Congresso dos Combatentes do Ultramar". Para Otelo, os organizadores eram antigos oficiais milicianos com ideologia de extrema-direita que garantiam publicamente ao regime a entrega devotada dos oficiais das Forças Armadas à nobre missão de, através da continuidade da guerra colonial, assegurar a perenidade da Pátria. 

Os oficiais do quadro ter-se-ão apercebido da essência da manobra e reagiram. Almeida Bruno terá sido quem mais actividade desenvolveu, promovendo uma resposta concertada. Para os oficiais na Guiné já não subsistiam dúvidas que o Governo procurava tirar dividendos da "entusiástica adesão dos patrióticos combatentes do Ultramar"

E escreve: 

"Enquanto em Lisboa Ramalho Eanes, Hugo dos Santos, Vasco Lourenço e outros encabeçavam um vasto movimento de protesto, eram recolhidas na Guiné 400 assinaturas de oficiais do QP com a mesma intenção, subscrito em primeiro lugar por oficiais possuidores das mais elevadas condecorações”

O autor inscreve estes acontecimentos num processo mais vasto de descontentamento das Forças Armadas que veio a ser ateado pelo Decreto-Lei n.º 353/73, nova peça da bola de neve que irá conduzir à queda do regime.

Passando para outro campo de considerações, Otelo de Saraiva de Carvalho fala dos acontecimentos de Guileje, em Maio de 1973, quando o major Coutinho e Lima mandou evacuar o aquartelamento, para tal escrevendo: 

"Para o major Coutinho e Lima o motivo era suficientemente forte: incontável número de flagelações da artilharia inimiga tinha destruído quase por completo as instalações aquartelamento e o moral do pessoal. Apesar dos pedidos insistentes e aflitivos, o apoio aéreo não fora concedido, no receio de que a acção fosse um chamariz para o abate de mais alguns aviões. Ao ter notícia da evacuação, Spínola não viu outra alternativa senão ordenar a prisão de Coutinho e Lima e mandar instaurar-lhe um auto de corpo de delito por crime essencialmente militar de cobardia: abandono de praça militar ao inimigo"

É neste contexto que surge Manuel Monge, graduado em major, foi sobre os seus ombros que caiu a responsabilidade de aguentar a tragédia de Gadamael.

Estamos praticamente no final na sua narrativa referente à Guiné. Marcelo Caetano decidira, em 1972, apoiar a nomeação de Américo Tomás para novo mandato. Spínola considerava que gozava de alguns apoios muito influentes do panorama político e financeiro português (Azeredo Perdigão, Jorge de Melo, Manuel Vinhas, António Champalimaud). Em Agosto de 1973, Spínola regressa a Portugal, é promovido a general de 4 estrelas e nomeado vice-chefe do EMGFA. Spínola mudara, observa o autor. Fizera um longo, longo percurso, fora administrador e colaborador do boletim da Legião Portuguesa, no início da carreira; baseado na sua experiência guineense, sentia-se agora apto a defender o federalismo para contornar uma guerra não susceptível de ter solução militar.

Em Setembro de 1973, Otelo Saraiva de Carvalho participa pela última vez numa reunião do Movimento de Capitães, em Bissau. E escreve: 

"Exactamente três meses depois da minha chegada a Bissau seguirei para a metrópole em fim comissão. Recebo a incumbência de, em Lisboa, de me integrar no Movimento e ser o porta-voz das preocupações que assaltam os camaradas no TO da Guiné"

Preocupações que ele desenha num quadro de tintas carregadas: é previsível que o PAIGC irá proclamar a independência do território. Nas reuniões do Movimento dos Capitães em embrião já se debate o que irá mudar com essa independência reconhecida pela ONU. E escreve: 

”O Governo Central não proporcionará às Forças Armadas no TO da Guiné qualquer apoio, provocando a sua derrota calculada para as transformar em bode expiatório da perda da colónia como acontecera antes com o Estado da Índia, e canalizar todo o esforço militar para a defesa de Angola.”

E tece o seu comentário sobre o que se estaria a passar na mente de Marcelo Caetano: 

”Em entrevista concedida por Marcelo Caetano no Brasil, em 1977, a um jornalista português, o antigo Presidente do Conselho confirma que tencionava na verdade provocar a queda da Guiné através de uma derrota militar para, salvando a face do regime, reforçar a todo o custo a defesa de Angola por tempo ilimitado. Não posso acreditar que Spínola não estivesse perfeitamente consciente de todo este drama. Considero, pelo contrário, que essa seria a razão fundamental que o teria levado a não regressar para concluir o sexto ano do seu mandato. Ele não poderia nunca, após mais de cinco anos de intensa actividade desenvolvida na Guiné e que era para si motivo de orgulho e honraria, transformar-se no comandante-chefe de umas Forças Armadas enxovalhadas e derrotadas em consequência da ineficácia do regime.”

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Nota dos editores:

À família, camaradas de armas e amigos do Coronel Otelo Saraiva de Carvalho (que tem cerca de duia e meia de referências no nosso blogue), os editores e a tertúlia deste Blogue, apresentam as suas mais sentidas condolências.
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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22375: In Memoriam (398): José Martins Rosado Piça (1933-2021), 1º srgt inf ref (CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71), nosso grã-tabanqueiro nº 660... Mais do que "o nosso primeiro", um grande amigo e melhor camarada

4 comentários:

Antº Rosinha disse...

Escrito já nos anos 90, já as ideias do movimento dos ano 70 estavam muito diluídas e mesmo difusas, já a adrenalina tinha esmorecido, não nos pode dizer exactamente o que seria o pensamento e até a personalidade de Otelo com este livro.

A melhor definição da personagem de Otelo ouvi na rádio da boca de Ana Gomes.
Textualmente não guardo de memória, mas o sentido era que Otelo, sem ideologia política, tanto podia dirigir para um lado como para outro.
Era uma revolução, depois se via o que fazer.
Penso que era isto que Ana Gomes queria dizer.

Aliás, também Salgueiro Maia teve uma frase em cima do momento que dizia bem o que era a «ideologia» do movimento: «acabar com o Estado, a que isto chegou».

Ponto final.

Mas, na causa primeira do movimento, as colónias, como Otelo, oriundo e criado no Ultramar, tinha a sua cultura ultramarina como todos os jovens das colónias, no meu ponto de vista, coisa que nunca se menciona, e não só ele, mesmo outros militares que com bilhete de identidade de Lisboa, por acaso, mas que as suas raizes ou parte delas eram ultramarinas, todos eles tinham aquele jogo de cintura para ter "um pé cá e outro lá".

E, embora a maioria deles estivessem do lado do Estado Novo, tinham o espírito mais liberto para compreenderem o espírito dos amigos deles, alguns que até andariam na mesma escola e agora estariam do outro lado, os «estudantes do império».

No fundo, teriam sido apenas as colónias que motivaram Otelo, e tudo o que se seguiu com ele, desde falar em liberdade, em democracia, e noutras coisas como candidatar-se a Presidente...melhor ficar no seu canto como Salgueiro Maia.

Manuel Bernardo - Oficial reformado disse...

A vida profissional de Otelo, além da que é exaltada e com razão - planeamento e execução das operações do 25 de Abril, decorreu em mais duas fases. O PREC (1974-75) onde aceitou e apoiou as diatribes revolucionárias, com atrocidades e prisões indiscriminadas, etc. Depois, depois do 25 de Novembro enveredou pelo projecto terrorista das FP 25ABR. Sobre esta fase e a p´re-25ABR, descrevo a resposta dada a uma pessoa:
Respondendo a Luísa Moreira: Quem o diz (que sou Capitão de Abril) é o próprio Otelo, quando éramos amigos e estávamos colocados na Ac. Militar, no seu livro "Alvorada em Abril", com o meu nome completo, para não haver enganos com os outros dois Bernardos (Cav.ª e Art.ª) Depois, estando na GNR tive que enfrentar as FP25 que (além muitos outros) mataram por engano dois militares da GNR de Mafra, tendo eu ido assistir, num sábado de manhã, ao levantamento dos corpos das vítimas. O homem da PJ que lá apareceu deu-me a informação de que tinham sido encontrados cheques assinados por Otelo na posse duma vítima (FP25) no ano anterior, no assalto ao banco da Malveira. E depois foi condenado a 17 anos de prisão pelo STJ e amnistiados pelos seus amigos políticos...

Anónimo disse...

Enfim Portugal no seu melhor e os seus amigos políticos (bem como ele), nunca quiseram democracia nenhuma mas cavalgaram-na para melhor servir os interesses próprios.Caso do Mário Soares que sob a capa de grande democrático era mais "imperador do que os imperadores.Mas quando um homem morre só lhe atribuem qualidades.E o costume.
Carlos Gaspar

Valdemar Silva disse...

Caro Manuel Bernardo
'O homem da PJ que lá apareceu deu-me a informação de que tinham sido encontrados cheques assinados por Otelo na posse duma vítima (FP25) no ano anterior, no assalto ao banco da Malveira', como é que é esta?
Então o Otelo assinava cheques e dava-os às vítimas? Mas que raio de conta e Banco seriam os cheques para oferecer às vítimas. Alguém já falou disto com imagens dos cheques e tudo? Eu não me lembro.
O homem da PJ devia ser um grande brincalhão, daqueles do 'palavra d'honra qu'é verdade', vá que não disse, para achincalhar, 'ontem estive com o Otelo a caçar veados na coutada do Cunhal'.
Caro Carlos Gaspar não sei se tens conhecimentos jurídicos, mas, mesmo não tendo, consulta o Processo/Julgamento que deu aso à prisão do Otelo, é público, e vais ficar muito confuso com o totó que ele foi. Não sabemos, nem nunca saberemos, quem foram os encapuzados nos assaltos e que depois fugiram com o dinheirinho para o Brasil e regressaram uns anos depois para se atirarem às privatizações. Como é que se sabe quem eram se estavam de cara tapada? Pois, mas as notas estavam "estiveram" bem à vista. Segredos que Moreira talvez saiba, assim como do atentado ao padre e outras bombas secretas.
Digo mais uma vez, o Otelo vai ficar conhecido pelo Otelo Saraiva de Carvalho o homem estratega da revolta do 25 de Abril, que pôs fim a ditadura do estado novo (eu chamaria estado geriátrico) que mandava milhares de jovens para a guerra em vez de os utilizar no desenvolvimento do país.
De certeza o Otelo não vai ficar conhecido por ser nome de rua de Lisboa.
Até a Praça do Areeiro continua a ser o Areeiro.

Abraços
Valdemar Queiroz