quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22899: Historiografia da presença portuguesa em África (298): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Março de 2021:

Queridos amigos,
Para quem está a acompanhar o laborioso levantamento de factos e feitos, da memória que Senna Barcelos prometeu à Academia das Ciências,não podem subsistir dúvidas que após o desgraçado período vivido na União Ibérica, as parcelas coloniais sofreram e muito os impactos na guerra da Restauração e, em concomitância, a crescente cobiça de franceses e britânicos. Faltava tudo no que restava da Senegâmbia Portuguesa, e as citações que aqui se deixam são concludentes dessa atmosfera degradada e degradante. Senna Barcelos teve o enorme mérito de proceder a uma organização escritural que permite hoje aos historiadores ir do século XV até aos princípios do século XX. É evidente que hoje há fontes muito mais ricas, para além de arquivos ainda inexplorados. Mas exalte-se este levantamento como um dos pontos de partida que contribuíram para lançar as bases da historiografia guineense e de tudo quanto se pode e deve estudar em Lisboa, em Bissau e em todos os outros espaços de investigação. Isto para enfatizar que Senna Barcelos é incontornável.

Um abraço do
Mário



Um oficial da Armada que muito contribuiu para fazer a primeira História da Guiné (3)

Mário Beja Santos

São três volumes, sempre intitulados "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, a parte III, de que agora nos ocupamos, em 1905; o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada, oficial distinto, condecorado com a Torre e Espada pelos seus feitos brilhantes no período de sufocação de sublevações em 1907-1908, no leste da Guiné. O levantamento exaustivo a que procede Senna Barcelos é de relevante importância e não há nenhum excesso em dizer que em muito contribuiu para abrir portas à historiografia guineense. Esclareça-se que o autor não se apresenta como historiador, aliás não faz conexões nem análises, esta memória apresentada à Academia Real das Ciências de Lisboa tem a forma de um levantamento de factos e feitos, trabalhou estrenuamente, não poupou esforços nos arquivos e a sua narrativa tem um caráter personalizado, desanca nos políticos corruptos, nos governadores ineptos, na selvajaria dos negócios, nunca ilude as desgraças e inclemências da natureza em Cabo Verde, a falta de presença portuguesa na Guiné e a permanente hostilidade dos autóctones com os portugueses.

Foi profundamente crítico do reinado de D. João V, procurou que o reinado de D. José fosse mais auspicioso. Diz mesmo que muitas súplicas se dirigiram a D. João V para fortificar Bissau e que D. José, com melhores olhos, compreendeu a necessidade de dar vida a esse riquíssimo domínio, onde só tinha uma praça fortificada, Cacheu, na foz do rio Farim.

Nos primeiros dias de 1753, partiu de Lisboa uma expedição com destino a Cacheu tendo à frente a nau Nossa Senhora da Estrela, a missão era levantar a fortaleza de Bissau. E veja-se o tom crítico do autor: “A praça de Bissau estava sem capitão-mor de nomeação régia, era governada por um preto boçal que desconhecia a língua portuguesa. Houve regozijo com a chegada dos barcos portugueses a Bissau, pois quem ali estava não podia comerciar pela belicosidade dos povos da vizinhança”. Começou um jogo de artimanhas entre portugueses e o régulo Palanca. Umas vezes celebrava-se a paz, outras vezes havia recontos sangrentos, voltava-se a pedir a paz, seguia-se nova arremetida do gentio, rechaçada. Então, Palanca mostrava-se amistoso, subia a bordo da nau e pedia para trocar um casal de negros por aguardente. Assim começou a construção da fortaleza de Bissau, obra que havia de durar quase dez anos (1766-1775). A Companhia de Cacheu falhara e em 1755 fora criada a Companhia do Grão-Pará e Maranhão, tinha o exclusivo do comércio de todas as ilhas e da costa da Guiné desde o Cabo Branco até ao de Palmas. E o autor comenta: “Nada adiantaram as ilhas no reinado de D. José, que aturou as loucuras e espoliação da celebérrima Companhia do Olho Vivo, conhecida com o nome oficial de Grão-Pará e Maranhão”. Vamos de seguida fazer um apanhado de notas envolvendo o reinado de D. José até ao reinado de D. Maria I, ocasião em que o administrador da Companhia da Guiné informou que a Praça de S. José de Bissau estava completamente acabada e aportou elementos úteis para se ficar com uma ideia nítida do que era a presença portuguesa na Guiné no último quartel do século XVIII. E muito mais adiante iremos falar de outro período tormentoso, de 1816 a 1835.

Envia-se um relato, pois, falando da Praça de S. José, diz-se que está completamente acabada, mas que há edifícios em ruína, mesmo a igreja, o ofício religioso só se podia celebrar numa pequena capela na praça, na qual mal cabiam 40 pessoas. Não havia sacerdotes, a guarnição constava de 190 soldados, o autor dizia que a povoação tinha uma população de “700 pretos católicos, que viviam sem pensarem no espiritual”. E bem importante é o que o comandante da Companhia descreve a seguir:
“A povoação de Geba contava com mil católicos, não tinha sacerdote, falta que também se sentia nos cristãos dispersos pela Serra Leoa, tinham deixado de lá ir religiosos de Bissau. No rio Nuno havia mais de 18 anos que lá não ia um missionário. A guarnição de Bissau andava rota e esfarrapada. O governador, sem meios, faltava-lhes com o pagamento; como não recebesse géneros da Companhia, reinava grande descontentamento entre a guarnição da Praça. A praça de Ziguinchor estava sujeita ao comando de Cacheu, quase deserta por viverem os moradores com os gentios. O administrador João da Costa profetizara que apenas a guerra entre a França e a Inglaterra terminasse, era para recear que uma dessas nações tomasse conta de Ziguinchor por estar perto do rio de Gâmbia, e estar Cacheu num estado que a não podia socorrer; sendo essa praça tão importante e de onde se costumava enviar a maior porção de cera para Lisboa, e não menos de escravatura para outros pontos, era realmente para lastimar. A artilharia da Praça de Cacheu estava como a de Bissau, sem reparos; a guarnição sofrendo grandes faltas, e até os particulares, para comprarem géneros, vendiam os seus escravos para Bissau. Nas mesmas condições sofriam os de Farim”.

Suplicava-se à rainha que os deixasse com o monopólio do comércio, que lhes fosse oferecida uma embarcação que impedisse os ingleses e franceses de roubarem gado, escravos e forros.

Senna Barcelos dá-nos também informação de relevo sobre a situação de Ziguinchor, à entrada do século XIX:
“Em princípios de 1801, sendo comandante da Praça de Ziguinchor Manuel de Carvalho Alvarenga, a qual era dependente da Praça de Cacheu, que tinha por governador Manuel Pinto de Gouveia, atacaram repentinamente os gentios de Sandegú, próximo de Ziguinchor, umas embarcações mercantes portuguesas que se achavam na costa a negociar. O comandante de Ziguinchor deu conhecimento deste facto ao governador de Cacheu, e este mandou logo um gentio, velho e prudente, amigo dos portugueses, para ir a Sandegú saber o motivo das hostilidades, respondendo os gentios inimigos que não o atendiam. Em vista da resposta, ordenou o governador que se lhes desse um assalto, ficando eles derrotados e aprisionando-se alguma gente. Durante algum tempo ficaram mansos e subjugados, até que traiçoeiramente voltaram a atacar as embarcações, matando e aprisionando alguns marinheiros. O governador de Cacheu mandou então preparar 17 canoas, tripuladas por senhores e escravos, que seguiram para Ziguinchor, e ali com o auxílio do gentio vizinho, auxiliares, se organizou a expedição. Fora encarregado de uma das canoas Julião Mendes, alferes da companhia do Capitão Francisco Rabaça, do Corpo de Infantaria de Ziguinchor, sem vencimento, o qual conseguira essa patente do ex-governador de Cacheu, Farim e Ziguinchor, Lopo Joaquim Almeida Henriques. Julião Mendes tinha sido escravo e recebera a alforria em 20 de novembro de 1799. Ele tinha deixado a condição servil para ter a patente oficial e por isso não lhe causava repugnância cometer o crime de traição. Mandara ele avisar ao gentio de Sandegú, por um seu escravo, do assalto que lhe estava preparado e forneceu-lhe pólvora e bala. Com o mesmo gentio tinha ele já combinado que no caso de saírem bem da luta lhe fossem vendidos todos os escravos que ficassem prisioneiros. Indispôs algumas tribos aliadas da praça contra outros aliados que forneciam mantimentos, dando-lhes pólvora e bala, pois seria insustentável a Praça de Ziguinchor, faltando estes aliados, únicos que mantinham o comércio de víveres com ela. O velho gentio de Cacheu descobrira a traição estando já as embarcações em viagem e pelos gentios que Julião Mendes quisera revoltar soube a verdade de tudo. Houve grande desânimo entre os expedicionários, que duvidavam uns dos outros, por isso pensou o velho gentio de Cacheu de tornar ali mesmo público o procedimento de Julião Mendes, pois que a maioria estava falada para nos atraiçoar”.

A história não acaba aqui, o traidor fugiu, foi apanhado, pediam ao governador para o enterrarem vivo, o governador preferiu mandá-lo degredado para o Pará toda a vida e foram-lhe sequestrados os seus poucos bens. Julião Mendes chegou ao Maranhão, iludiu o governador dizendo que estava inocente, veio até Lisboa queixar-se de que lhe tinham tirado os seus bens, foi mandado um sindicante a Ziguinchor para descobrir a verdade, e o que ele escreve dá mesmo muito que pensar, o sindicante achou que dos bens do tal Julião faltavam seis escravos e três embarcações, mas que os acusados não eram responsáveis por elas: “Que Julião Mendes nutria ódios contra José Domingos por este ter requerido contra ele, ao comandante de Ziguinchor, em Alvarenga, em 1800, como traidor, pois que tendo José Domingos concordado com os Grumetes-Forros de Ziguinchor para fazer guerra aos Balantas de Sandegú, que lhes aprisionaram três canoas, as quais foram vendidas em Cacheu e Farim”. E prossegue a descrição da trama com várias cambiantes de rancores e não é difícil perceber o envenenamento e a carga de ódios entre todos estes mercadores, prontos a escravizar quem quer que seja.

Neste levantamento de Senna Barcelos há também aspetos pícaros e não se registe a contar um:
“Em fevereiro de 1805 fora chamado Manuel Pinto de Gouveia pelo Conde da Anadia para ir governar a Praça de Bissau, que se achava abandonada por terem envenenado o governador desta, António Cardoso Faria. A tropa que guarnecia Bissau era composta de pretos, naturais do país, que conviviam com os gentios, que se negavam a fazer serviço. O novo governador pediu o posto de brigadeiro, e tendo ido ao paço solicitar ao príncipe regente este dissera-lhe: ‘Já estou bem informado do teu requerimento. O prémio não se procura antes da comissão feita. Sabe desempenhar ao que vais, e logo que as coisas estejam em paz pela secretaria te será remetido o que pretendes, pois vejo que é de justiça’. Seguiu Pinto Gouveia para Bissau, com 150 degredados tirados do limoeiro, facínoras e dos maiores crimes, tendo alguns destes a alva vestida, que lhes foi despida. Em Cabo Verde recebeu mais 80 homens de péssimos costumes, e com 230 soldados indisciplinados em Bissau formaria um batalhão de 460 desordeiros. Com muito trabalho montou o serviço militar, que estava relaxado, e restabelecia a paz entre os gentios”.

Não tem em conta as insubordinações na Praça de Bissau, os relaxamentos eram permanentes e as relações entre todos intoleráveis, veja-se este apontamento de Senna Barcelos:
“Havia quatro anos que o governador de Bissau não recebia os seus vencimentos; porém com ele vivia oficiais e negociantes que o acusavam de intriguista e turbulento, que negociava e proibia que os outros o fizessem, que vivia amancebado com uma Clara Gomes a qual saía a altas horas da noite da fortaleza, que ele absorvia os rendimentos reais, roubando a pólvora da fazenda para seu negócio e o dinheiro que lhe era remetido de Cabo Verde para pagamento da tropa e que falsificava os livros”. Por sua vez o governador queixava-se aos seus superiores de que havia amotinadores, apontava os cabeças de motim, desde oficiais a escrivães.
E Senna Barcelos dá-nos um parágrafo que clarifica o estado de desmando em que se vivia em Bissau:
“Em 12 de Julho deu-se nova insubordinação dos soldados. Ao toque da assembleia, às horas da parada da guarda, não quiseram os soldados entrar na formatura, e passando o governador ao quartel foi ali insultado, exigindo-lhe os soldados o pagamento no meio de ameaças, e pegando em armas, que não quiseram entregar. Retirou-se o governador e pela tarde daquele dia foi avisado de que os soldados tinham resolvido assassina-lo a golpes de baioneta, bem como a família, em vista do que o governador mandou logo dizer que no dia seguinte faria o pagamento com o seu dinheiro”.

E mais peripécias se podiam contar, mas este cenário não se modificaria tão cedo, anos depois, na sua famosa Memória da Senegâmbia, Honório Pereira Barreto não poupará pormenores ao estado calamitoso em que se vivia na Guiné.

(continua)

Fortaleza de S. José da Amura, na atualidade
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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE JANEIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22877: Historiografia da presença portuguesa em África (297): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (2) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Valdemar Silva disse...

Então quem mandou fazer os "Livro de História" da nossa Instrução Primária e do Secundário desconhecia esta Historiografia de presença portuguesa em África?
Estes livros apresentados por Beja Santos são da nossa Academia Real das Ciências, mas aprendíamos o Teixeira Pinto, Honório Barreto, não sei quê do preto da Guiné e ficava-se por aí.
Realmente..... e lá fomos nós, a generosa rapaziada dos anos de 1960, de "tradição combativa", para combater, não a praga da mosca tzé-tzé, mas a revolta latente de tetranetos dos doutros tempos.

Abraço e saúde da boa
Valdemar Queiroz