quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24707: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (2): O martírio da viagem de comboio de Afife ao Porto (Valdemar Queiroz, Afife, Viana do Castelo)


Viana do Castelo > Afife > A soga > Postal iliustrado, s/d, c. 1940. (Diz-se "levar os bois à soga"; a soga é uma tira de couro cujas extremidades se prendem às pontas do boi, e pela qual ele é puxado ou guiado.)

Fonte: Arquivo Municipal de Viana do Castelo (com a devida vénia...)


1. O Joaquim Costa (*) e agora o Valdemar Queroz já pagaram a "obada" ou "côngrua" ao "prior desta freguesia", escrevendo e publicando a uma historieta do tempo de antigamente... (Aqui não se paga em espécie, mas em géneros...).

O primeiro escreveu sobre a feira, em Vila Nova de Famalicão, onde ia, mais a mãe, comprar chancas (não se podia ir descalço para a "escolinha"...). O Valdemar, esse,  lembrou-se da sua primeira viagem de comboio (em tudo na vida, há sempre uma primeira vez)... Uma história não menos deliciosa de um menino que gostava era de andar descalço e comer "coubes", lá na casa da avó, em Afife, em "Biana" do Castelo...

Afife fica a 10 km a norte de Viana do Castelo, sede do concelho. Hoje a distância ao Porto (70/80 km) faz-se em menos de uma hora de carro ou de comboio. Mas em 1955 devia ser uma eternidade, a avaliar pelo "martírio" quer sofreu o nosso "djubi", como ele conta aqui com verve e com graça...

Minhoto de nascimento, alfacinha por criação, avô de netos neerlandeses, e para mais vivendo sozinho trancado em casa na Rua de Colaride, Agualva-Cacém, é uma figura muito querida da Tabanca Grande. 

Que os bons irãs lhe deem vida e qualidade de vida (que  a saúde, essa, anda muito remendada, por mor de um raio de uma DPOC)...


Valdemar Queiroz, minhoto por criação, lisboeta por eleição, 
ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, 
Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70; 
aqui, na foto, em Contuboel, 1969.


O martírio de viagem ao Porto

por Valdemar Queiroz

Com dez anos fiz a primeira viagem de comboio (#), foi no correio de Afife ao Porto.
Foi à casa de uma tia nas férias grandes de Verão.

O martírio começou em casa da minha avó, continuou estrada abaixo até à Estação e só melhorou quando o comboio partiu e eu descalcei umas botas novas que me apertavam os pés.

Eu ia sozinho e com medo de me roubarem as botas atei-as à cintura,  até parecia um "cowboy" com duas pistolas,  e fiz toda a viagem descalço, que nada me custou por estar habituado.

O martírio das botas passou, mas outro tão complicado apareceu, passada a Ponte de Viana: 

− Nunca saias do teu lugar!  − dissera-me a minha avó à frente do chefe da Estação que parecia um polícia.

O tempo ia passando e eu, com uma grande vontade de correr dentro do comboio, para ver o que se passava nas outras carruagens. E assim foi,  até chegar à carruagem de 1.ª classe com os bancos de couro avermelhado.

Não passou muito tempo de admiração para levar com um 'estás a levar um puxão d'orelhas, vai já pro teu lugar', disse-me o "polícia'" da carruagem.

Lá me sentei no meu lugar do banco de pau da 3.ª classe (?) e adormeci até chegar ao Porto.

No Porto foi um martírio calçar as botas, andar com elas a olhar para todos os lados que nunca tinha visto.

Passado pouco tempo de andar de boca aberta na grande cidade, comecei a chorar e a pedir para voltar à minha terra pra casa da minha avó.

Foram quinze dias de martírio, aflito dos pés e ser obrigado a comer bife com esparguete.
Ah! que saudades quando regressei a Afife, poder andar descalço e a comer couves com batatas, toucinho e chouriço.

Manias de criança mimada.

Valdemar Queiroz

Nota do autor: (#) no ano seguinte voltei a viajar de comboio pra Viana, para  ir fazer o exame da 4.ª classe (Instrução Primária)

27 de setembro de 2023 às 15:29 (*)

______________

Nota do editor:

(*) - Ultimo poste da série > de 4 setembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24704: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (1): A Feira (Joaquim Costa, Vila Nova de Famalicão)

4 comentários:

Anónimo disse...

ASCENÇÃO.
O RIO PASSA EM CABANAS
POR ENTRE FRAGAS… TÃO LINDO
QUE EMBORA DESÇA DA SERRA
PARECE QUE VAI SUBINDO

Cabanas – 6 – 9 939

(Pedro Homem de Melo)

Joaquim Costa

Valdemar Silva disse...

E temos o carro dos bois que até são bacas piscas.

ÚLTIMAS VONTADES
ENTERREM OS MEUS OSSOS EM AFIFE,
NO BRAVO JARDIM QUE ME FEZ HOMEM.
POIS QUERO TER (SE OS CARDOS TAMBÉM COMEM!)
A SUA FOME PURA POR ESQUIFE.

Cabanas(Afife), Pedro Homem de Melo

E assim aconteceu, o poeta está enterrado no Cemitério de Afife.

Valdemar Queiroz

Zé da Silva disse...

Filho de combatente na guiné....

Sigo o vosso blog há algum tempo, e depois da devida autorização por parte do meu Pai(o conhecido pelo sim pelo não....) li esta história dele com o devido cuidado. E resolvi dar resposta...
É algo quase ireal para alguém q nasceu em 73, e é algo ireal para alguém q nunca, ou quase nunca se deslocou sem sapatos p algum lugar, ler uma história do meu pai com a mesma idade que eu já tive mas anos mais tarde e viver situações que hoje em dia, e até em 83, parecem ireais....
Muito se fala do que uma civilização, um pais ou um povo evolui mas temos que ver que muito modou desde que o pequeno Valdemar se aventurou nas ruas portuenses. Mas, e desculpem a minha negatividade, pouco mudou no mundo em relação à insegurança no meio que nos rodeia. Dá-me ideia que continuamos com os sapatos presos à cintura, ou pelo menos, não nos atrevemos a calçar.. Agora não é a viagem, o destino e até a permanência numa cidade estranha, mas sim a em incerta no mundo em geral. Para o pequeno Valdemar, para mim com 10 anos de idade e para muitos que agora 10 anos têm continua a ser uma mistura de medo com curiosidade, mas para o adulto Valdemar e o filho dele é exactamente a mesma coisa. Dia após dia, não esquecer o vizinho e amigo e rezar, para quem têm a felicidade ser Teu, esperar por dias melhores. Eu sei que melhor dias viram, eu sei.... mas esta tua história meu pai, está para mim cheia de metáforas, silogismos e associações...

Quem me dera andar descalço
Quem me dera andar nu,
Ter medo de cada pedra da calçada
Ter medo do frio desconhecido.

E agora que caminho com os mais belos sapatos
Sinto-me quente por fora,
E perante a mais pequena irregularidade
Foge-me a paragem do destino....

(Novamente perdou-a-me a negatividade.)
Bem haja a todos.

Valdemar Silva disse...

Pois é o que dá ter um filho licenciado em História da Arte e ter sido Cabo Especialista da Força Aérea.

Não tem aparecido por cá comentários dos filhos dos combatentes, e ainda por cima a comentar sobre o tempo em que andar descalço não era proibido como era em Bafatá em 1969.

kusjes voor mijn kleinkinderen

Valdemar Queiroz