terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25168: A 23ª hora: Memórias do consulado do Gen Bettencourt Rodrigues, Governador e Com-chefe do CTIG (21 de setembro de 1973-26 de abril de 1974) - Parte III: a CCAÇ 3545, de Canquelifá, no início de abril de 1974, "à beira da exaustão física e emocional"


Lisboa > Base Naval do Alfeite > 30 de abril de 1974 > Da esquerda para a direita: Coronel António Vaz Antunes, Brigadeiro Leitão Marques, General Bethencourt Rodrigues e Coronel Hugo Rodrigues, todos oficiais afastados no Golpe Militar de 26 de Abril em Bissau. Fotografia obtida já no Alfeite, em Lisboa no dia 30 de Abril de 1974. Fonte: arquivo do filho do cor inf António Vaz Antunes, o engº Fernando Vaz Antunes (que vive em Mafra), e a quem agradecemos a gentileza  (*).

Foto (e legenda): © Fernando Vaz Antunes (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. A 23ª hora, a das "hienas", o da "lobo" (nome da hiena na Guiné-Bissau, conforme a linguagem dos contos populares em crioulo)...

Também o último governador e com-chefe do CTIG, gen Bethencourt Rodriges, subtituto do lendário Spínola, teve a sua 23ª hora...  E acabou por ser derrotado não pelos "leões", mas pelas "hienas"...

Sem querer denegrir a sua folha de serviços (foi um brilhante militar, como tantos outros   
que "serviram Portugal em África", uma frase "redonda" e "barroca"...), achamos que foi sobretudo um erro de "casting": acabou por ser sacrificado no "altar da Pátria" pela visão míope de um senhor professor catedrático, especialista em direito administrativo, Marcello Caetano, delfim mal amado de Salazar, prisioneiro da extrema-direita do regime do Estado Novo, a quem faltou o golpe de génio, a grande leitura da história de Portugal e do Mundo, o rasgo de liderança dos "homens grandes" da Pátria,  para enfrentar, ética, moral, estratégica e politicamente, uma situação de guerra que se estava a degradar a olhos vistos, nomeadamente na Guiné e em Moçambique...  

O "herói do leste de Angola", o gen Bethencourt Rodrigues, o melhor do seu curso da Escola do Exército (que reminou em 1939),  atolou-se nas "bolanhas" da Guiné, e nas arnadilhas da política (ou do seu vazio...) e sobretudo foi incapaz de acrescentar um "suplemento de alma" a um exército (metade metropolitano e metade guineense, como ele ele próprio reconheceu mais tarde, em 1977, no seu "testamento político-militar" ("traído, vencido e pouco convencido") (**),  que estava cansado da guerra, e de combater sem um fim à vista e sem novos meios para fazer frente à nova estratégica do PAIGC (e dos seus poderosos aliados), que era a do tradicional "bate e foge", mas agora a partir das fronteiras (refugiando-se impunemente nos seus  santuários do Senegal e da Guiné-Conacri, onde Portugfal não poderia atuar, retaliando, sob pena de graves sanções internacionais, e de escalada do conflito,  sobretudo depois da desastrada Op Mar Verde, de 22 de novembro de 1970).

Nada correu bem a Bethencourt Rodrigues, para mais quando vai tomar posse a seguir à declaração unilateral da independência da Guiné-Bissau, e passado um mês e tal  começa a "época seca" (novembro-maio), altura em que o "urso" do PAIGC saía da sua letargia,,, retomando a sua atividade operacional... As "hienas" sempre foram um predador oportunístico... E o Amílcr Cabral, nunca tendo "cão", depressa ensinou os seus correlegionários a caçar com "gato"...

Bethencourt Rodrigues podia ter fechado a guerra com chave de ouro, abrindo as portas da paz e da solução política, negociada, do conflito, eventualmente com intermediação internacional... Mas, não, foi mais um militar político,  prisioneiro da estratégia suicidária do "orgulhosamente sós"...Em 26 de abril de 1974 acaba "nas teias da traição"... Sem honra nem glória. (*)

Mas voltemos à situação no terreno: o próprio general reconhece que "a gravidade (sic) da situação  militar que se vivia na Guiné nº 1º trimestre de 1974" (in "África: a vitória traída", op. cit, 2007, pág.  140).  E a prova disso foi a obssessão do general com a alterações do dispositivo: "planeava converter as 225 guarnições em 80 e tal. A dispersão é inimiga da eficácia. Mas já não tive tempo" (disse ele, nos "Estudos Gerais da Arrábida > A descolonização portuguesa > Painel dedicado à Guiné (29 de Julho de 1997) > Depoimento do general Bethencourt Rodrigues, link infelizmente descontinuado e não salvagurdao pelo Arquivo.pt) (***).

2. Tomemos um exemplo, constante do livro da CECA  (2015), onde se dá conta das dificuldades das NT no nordeste da Guiné (CAOP 2): por exemplo, a CCAÇ 3545 (Canquelifá) / BCAÇ 3883 (Piche) estaria mesmo "à beira de uma ataque de nervos" (isto é, isto é, com sinais gritantes de exaustão física e emocional) (****).


"Decisões do Comandante-Chefe

"Não foi possível encontrar as Directivas do Comandante-Chefe das FAG
relativas a 1974. No Arquivo Histórico-Militar estão compiladas decisões do
Cmdt-Chefe.

"Apresentam-se as mais importantes (pág. 462):

(...) • Decisão de 2Abr74 - Alteração do dispositivo (pp. 470/471)

"1. Por decisão de 1Abr74, foi o CAOP 2 reforçado com 2 CCaç Paras / BCP 21 a seguir por meios fluviais, em 3Abr, e determinando que constituísse, no mais curto prazo, com tropa da zona, uma reserva com efectivo mínimo de 3 GComb para alternar ou reforçar a acção do BCP 12.

2. Entretanto foram recebidas mensagens da CCaç 3545 (Canquelifá), do BCaç 3883 (Piche) e do CAOP 2 (Nova Lamego) do seguinte teor:

a. Da CCaç 3545: NT completamente extenuadas psicofisicamente não permitem que se desenvolva uma reacção conforme situação.

NT estão a revelar indícios de intoxicação causados por gazes libertados sentindo vómitos e náuseas. Solicito intervenção imediata forças especiais durante longo período de tempo e reforço esta com mais 1 CCaç. Para cumprimento eficaz missão que está incumbido este Comando cumpre-lhe expor situação para salvaguardar defesa mesmo.

b. DO BCaç 3883: CCaç 3545 revela situação psicológica pessoal altamente preocupante receando-se reacções incontroláveis e imprevisíveis caso futuras flagelações. Solicito imediata decisão fim garantir segurança e acautelar desenvolvimento situação de gravíssimas consequências à qual não poderemos fazer face.

Insisto necessidade urgentíssima resolução propostas urgente rendição CCaç 3545 e intervenção Canquelifá Flnterv.

c. Do CAOP 2: Virtude potencial revelado pelo ln este Comando não tem possibilidade de fazer face à situação.

3. Em conformidade, em reunião de Comandos no Cmd-Chefe em 021000Abr74, decidi o seguinte:

a. Fazer deslocar durante o dia 2Abr    por via aérea conforme solicitado pelo Cmdt do CAOP 2 dada a extrema gravidade da situação (Msg referida em 2. a.);

b. Fazer deslocar cerca 10Abrpara a Zona Leste a 1a/BCaç 4516/73 comandada pelo oficial de operações do Batalhão.

470

Esta CCaç, reforçada com 1 GComb do BCaç 3883, deverá render em Canquelifá as CCaç 3545 e 33/BCaç 4516/73, à ordem do Cmdt CAOP;

c. A CCaç 3545 fica estacionada em Piche mantendo-se integrada no BCaç 3883;

A 33/BCaç 4516/73 recolhe a Bissau logo que rendida, conforme instruções especiais para o deslocamento;

d. Fica ao critério do Cmdt do CAOP 2 a troca da guarnição do Pel Art de Canquelifá pela do Pel Art de Piche.

4. O CTIG dará instruções de carácter administrativo logístico. [... ]"

Fonte: Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 6º volume: aspectos da actividade operacionaç Tomo II: Guiné, Livro III, Lisboa: 2015, pp. 462 e 470/471.

____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 1 de maio de 2014 > Guiné 63/74 - P13078: O golpe militar de 26 de abril de 1974 no TO da Guiné: memorando dos acontecimentos, pelo cor inf António Vaz Antunes (1923-1998) (Fernando Vaz Antunes / Luís Gonçalves Vaz): Parte I 

(**) Vd, no livro escrito a quatro mãos, "África: a vitória traída" (Lisboa, Editorial Intervenção, 1977, 276 pp.): o depoimento do gen Bethencourt Rodrigues sobre a Guiné (pp. 103-143).

(***) Vd. poste de 4 de maio de 2014 > Guiné 63/74 - P13097: (Ex)citações (230): Estudos Gerais da Arrábida > A descolonização portuguesa > Painel dedicado à Guiné (29 de Julho de 1997) > Depoimento do general Bethencourt Rodrigues (Excertos, com a devida vénia...)

5 comentários:

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Subscrevo o comentário feito à situação vivida.
O Cor Vaz Antunes comandava o batalhão que se situava entre o Senegal e o meu (Mansoa). Fico admirado que não tenha aderido facilmente ao 25ABR dada as dificuldades e sofrimento que o seu batalhão e limítrofes suportaram especialmente na "guerra" de Guidage.

Um Ab.
António J. P. Costa

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Estive a reler as declarações que o general fez em 1997 no âmbito dos Estudos Gerais da Arrábida... Diz que foi apanhado de surpresa pelo 25 de Abril... Não sabia de nada, não suspeitava de nada!...

É possível? !... Não acredito!!!


Tabanca Grande Luís Graça disse...

O link para o sítio dos Estudos Gerais da Arrábida - Descolonização desapareceu mas já o recuperei através do Arquivo.pt , tem depoimentos muito importantes para a nossa história recente, o 25 de Abrir, a guerra, a independência das colónias...

Anónimo disse...

Caros camaradas

Apesar da minha tenra idade (na altura) era contra a guerra colonial,mas por dever de consciência, quando fui mobilizado não desertei, apesar de entender que a guerra estava perdida desde o seu inicio,porque a sua solução era política e não militar.

Vou falar especificamente da Guiné.

Tinhamos enorme dificuldade na mobilização de pessoal, nomeadamente de oficiais do quadro,que como todos sabemos era compensada com milicianos.
A componente psicológica era muito grave, muito por culpa das chefias que julgo que não pensavam no assunto ou o consideravam secundário.

Quanto há exaustão das tropas era tudo muito relativo, dependia de quem comandava e como.
Um dos motivos principais era não haver rotação, o que o General B.Rodrigues iria supostamente fazer, e também haver concentração de guarnições o que também parecia que iria ser feito.
Já existia muita tropa local, nomeadamente 20 ccaç,o batalhão de comandos,fuzileiros, pelotões de artilharia,pelotões de milicias,etc.

Ninguém diz, e eu soube posteriormente, que também o IN se encontrava exausto e com grande dificuldade de recrutamento,e teria nas suas fileiras cerca de 7.000 combatentes.
Existiam divergências internas.Falava-se que o armamento era muito melhor,mas no meu ponto de vista com excepção dos misseis terra-ar, que quase já não tinham porque tinham que os pagar, não sei em que é que tinham melhor, a não ser uma peça de longo alcance que era manobrada por cubanos, e tinham poucas granadas pelo mesmo motivo.

Especificamente em Gadamael em 74 estavam quase 700 homens repartidos por 3 companhias,1 pelart,2 pelotão de milicias,1 pelotão de canhões s/r ,1 pelotão de morteiros 81.

Saía-se para o mato sempre ao nivel de companhia.Em 74 nunca sofremos uma emboscada, e eramos flagelados de longa distância e felizmente sempre com péssima pontaria.

É verdade que não estavamos ali para ganhar porra de guerra nenhuma, simplesmente iamos aguentando.

Fico muito OFENDIDO NA MINHA DIGNIDADE quando se afirma que iriamos ter uma derrota militar estilo India

AB
C.Martins

Joaquim Luis Fernandes disse...

O estado a que se chegou na Guiné em 1974, era o reflexo do estado a que se chegou na Metrópole.
Talvez na área política por incompetência e na área militar por cansaço ou exaustão.

É grave reconhecer que em algumas Unidades militares, situadas mais próximo da fronteiras e mais vulneráveis aos ataques do IN, se tenha deixado degradar a moral das NT, pelo isolamento e pelas consequentes privações.
Pior ainda, haver no comando de algumas dessas Unidades, Chefias que não estavam em sintonia com as diretivas da Cadeia de Comando Superior. Julgo inaceitável haver Comandantes de Companhia ou até de Batalhão, cujo ideário político estava mais próximo do ideário político do IN e de quem o apoiava, do que dos valores sob os quais se incorporaram nas Forças Armadas e aí fizeram o seu Juramento de Bandeira.

Esta contradição ideológica veio a revelar-se com mais clareza após o 25 de Abril de 1974, quando alguns (muitos) militares ligados ao MFA optaram pela ação política na linha preconizada por determinado Partido Político, contrária à matriz das Forças Armadas Portuguesas, membro efetivo da NATO. Uma deriva irresponsável e incoerente, a que o 25 de Novembro de 1975 veio pôr travão.

Em minha opinião, o afastamento do General Spínola da presidência da Junta de Salvação Nacional, da rejeição das suas teses de democratização do país e do processo de descolonização, teve em vista seguir a estratégia que melhor servia os objetivos dos inimigos que combatíamos na Guiné e de certas forças políticas, que pensaram ter chegado a hora de dominar Portugal e os portugueses.

Incomoda-me uma questão:
Que lugar teve na estratégia dos Capitães do MFA, o destino dos militares e milícias guineenses, assim como da população em geral, que estavam enquadrados e ao lado de Portugal, de quem recebiam e esperavam proteção e auxílio?

Um desses Capitães do MFA, foi o Capitão CMD Zacarias Saiegh, que ficou na Guiné Bissau e depois foi fuzilado. O que fez o MFA para que isso não tivesse acontecido?

Atentamente
JLFernandes