Figura 1 > Estudo prévio para monumento em memória dos combatentes da guerra colonial (2005), Arq. Augusto Vasconcelos (Fafe) (Fonte: Silva, op. cit, 2025, pág. 7)
1. Com a devida vénia e autorização do autor, Jaime Bonifácio Marques da Silva (antigo alf mil pqdt, 1º CCP / BCP 21, Angola, 1970/72, conterrâneo do nosso editor LG; membro da Tabanca Tabanca desde 21/1/2024, com c. 120 referências no nosso blogue), passamos a criar uma nova série "Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci..."
Foi condecorado com a medalha de Cruz de Guerra de 3* Classe,
A série que vamos agora iniciar, tem o seu nome. Iremos publicar cerca de 15 postes, com excertos das pp. 75-98 do seu livro, correspondentes ao Capítulo Dois:
Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci...
por Jaime Silva
Neste ponto do texto pretendo contar experiências e aspetos marcantes do meu percurso na guerra colonial, enquadrando-o na minha circunstância cultural, social e local até chegar às portas da guerra em Angola.
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Jaime Silva |
Porém, só há cerca de uma década, com o regresso à minha terra natal, Lourinhã, começa a fervilhar a ideia de fazer um trabalho que revisitasse e recuperasse para a memória coletiva os meus conterrâneos que combateram e morreram pela pátria que os chamou e obrigou a fazer a guerra. Com efeito, sofreram e perderam a vida às mãos de uma guerra injusta e de uma nação que os votou ao esquecimento. Participei na guerra, durante dois anos e meio e, como alferes miliciano, comandei um pelotão de soldados e sargentos, integrado nas tropas paraquedistas, sempre no “gastalho”.
Como combatente lourinhanense, sobrevivente de uma guerra a que não pude fugir, sinto-me agora mobilizado para contribuir para a reposição da história desta injusta guerra. Partilho com muitos outros e outras, o dever de memória às vítimas desta, particularmente, de todos os que nela pereceram. Esta é a razão do meu testemunho no contexto deste livro.
Voltando à minha circunstância, direi apenas que nasci e cresci num Portugal de obscurantismo bafiento e de “pobreza descarada e generalizada” (Tavares, citado Sousa, 2024: 09); vim à luz do dia, no mês de julho, do ano de 1946, numa aldeia de trabalhadores rurais, pertencente ao concelho da Lourinhã.
A realidade escolar desse tempo era de uma grande percentagem de crianças que não terminava a 4.ª classe (vindo, muitas deles a concluí-la, mais tarde, na tropa). Muito menos tinham oportunidade de pensar em continuar os seus estudos.
Neste contexto de miséria alargada, também no concelho da Lourinhã, calhou-me, na minha sorte, ter tido a oportunidade de ir para o seminário. Foi nos finais da década de 50. Tinha doze anos, quando transpus o portão de acesso a uma casa desconhecida.
Neste contexto de miséria alargada, também no concelho da Lourinhã, calhou-me, na minha sorte, ter tido a oportunidade de ir para o seminário. Foi nos finais da década de 50. Tinha doze anos, quando transpus o portão de acesso a uma casa desconhecida.
Nos primeiros tempos, senti-me completamente desenraizado, vivendo num ambiente de dilemas, semelhantes aos tão bem retratados por Vergílio Ferreira na sua obra, "Manhã Submersa", e, depois, por Lauro António, no filme com o mesmo nome.
No verão de 1968, abandono o seminário. Era um jovem de 22 anos, politicamente ignorante, mas com uma certeza - teria, imediatamente, que cumprir o serviço militar obrigatório.
Relatarei, nesta parte do trabalho, vários momentos marcantes que vivi na guerra sendo que, estes e outros são uma recordação penosa, continuam a fazer, quotidianamente, parte da minha guerra. (...)
Relatarei, nesta parte do trabalho, vários momentos marcantes que vivi na guerra sendo que, estes e outros são uma recordação penosa, continuam a fazer, quotidianamente, parte da minha guerra. (...)
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Nota de JS/LG:
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(#) O termo "gastalho", na gíria dos paraquedistas portugueses durante a guerra colonial em Angola (1961/75), é equivalente a porrada, mato, situação de dificuldade, combate intenso ou local perigoso, onde as tropas pára-quedistas muitas vezes combatiam; o vocáculo ainda náo foi grafado nos nossos dicionários com esta aceção (Fonte: JS/LG + assistente de IA / Gemini).
1. Eu não esqueci: a minha (im)possibilidade de desertar
Eu não esqueci que, em finais de setembro de 1968, no período entre a inspeção militar e a incorporação na EPI (Escola Prática de Infantaria) em Mafra, um dia, já perto da meia noite, sou desafiado pelo meu amigo José Manuel Dionísio a desertar para França, “a salto”.
Nem sequer pude pensar nem concretizar essa possibilidade, porque não tive 10 contos para pagar ao “passador”. O episódio passou-se mais ou menos assim:
Eu não esqueci que, em finais de setembro de 1968, no período entre a inspeção militar e a incorporação na EPI (Escola Prática de Infantaria) em Mafra, um dia, já perto da meia noite, sou desafiado pelo meu amigo José Manuel Dionísio a desertar para França, “a salto”.
Nem sequer pude pensar nem concretizar essa possibilidade, porque não tive 10 contos para pagar ao “passador”. O episódio passou-se mais ou menos assim:
− Jaime, eu vou desertar, não quero ir para África para morrer na guerra. Vamos cinco, a “salto”, e tenho um lugar para ti, no táxi. Se quiseres, tens uma hora para ir a casa. Traz uma mala pequena com roupa e dez contos para pagar ao passador. Temos de atravessar os Pirenéus "a salto".
Olhei para o meu amigo e respondi-lhe:
− Ó Zé Manel, onde é que eu tenho dez contos?!
− Então, vai o Vítor em teu lugar.
Ele saiu a correr… E eu fiquei!...
(Continua)
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Fonte: Excertos de: Jaime Bonifácio Marques da Silva, "Não esquecemos os jovens militares do concelho da Lourinhã mortos na guerra colonial" (Lourinhã: Câmara Municipal de Lourinhã, 2025, 235 pp., ISBN: 978-989-95787-9-1), pp. 75-79.
(Revisão / fixação de texto, negritos, LG)~
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Notas do editor LG:
(*) Vd. postes de

8 comentários:
Luís Graça (by email)
29 out 2025 15:11
Jaime:
Uma vez paraquedista, paraquedista para sempre... Não adianta tentar esquecer, muito menos denegar...Espero que daqui a 50 anos os teus netos e bisnetos e os netos e bisnetos da "família paraquedista", bem dos nossos conterrâneos, ainda possam ler e entender o teu testemunho...
Mais assertivo, franco e frontal não podias ser nestes teus 15 postes que começámos a publicar. E que são extraídos e/ou adaptados do teu livro, com a devida vénia,para que possam chegar a um público mais vasto (estamos com mais de 1,5 milhões de visualizações de páginas nos últimos doze meses...).
Nem tu, nem ninguém é feito a "preto e branco"...Somos/fomos nós e a nossa "circunstância"...Por isso, nem tu nem nenhum de nós tem o monopólio da narrativa histórica (como tinha a professora da nossa escola primária e os manuais escolares por onde "ensinava"...).
Numa altura em que há boa gente a rever a sua história de vida, o seu curriculum vitae, a tentar branquear ou até escamotear o seu passado, é bom ouvir da boca de alguém como tu, filho de Adão e Eva, como todos nós, a frase "Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci"...
Obrigado pela partilha das tuas memórias mais íntimas (e nalguns casos perturbantes) da tua passagem pela tropa e pela guerra.
Dou conhecimento a alguns dos nossos amigos e camaras (mas a maior parte vai em BCC). Espero que enriqueçam o teu texto como os seus preciosos comentários (que são "a seiva do nosso poilão").
Um alfabravo.
Que Deus, Alá e os nossos bons irãs te protejam. Luís
Achei o pedacinho de texto final uma beleza. Quem desconheça o estado de espírito de um jovem de então ao ser enviado para uma guerra que não entendia e odiava , leia e medite. Fez-me recordar o meu pedido de ajuda a uma prima que morava junto à fronteira com Espanha que recusou arranjar-me um "passador". Não tinha filho da minha idade...
O Jaime Silva é directo, autêntico, amador da sua terra natal, mas:
Transcrevendo do texto: "... começa a fervilhar a ideia de fazer um trabalho que revisitasse e recuperasse para a memória colectiva os meus conterrâneos que combateram e morreram pela pátria que os chamou e obrigou a fazer a guerra".
Comentário: - Foi a pátria ou os interesses instalados que os chamaram ( os obrigaram!) a fazer a guerra?
E, logo a seguir: "... Com efeito sofreram e perderam a vida às mãos de uma guerra injusta e de uma nação que os votou ao esquecimento."
Pergunto:
- Foi a "pátria" que "os chamou e obrigou a fazer..." "... uma guerra injusta"?
- "Combateram e morreram pela pátria"?
Uma leitura crítica por quem esteja atento, esclarecido e conhecedor das coisas no terreno e da política de então, entre 1961-1974, mesmo que continue a ler a texto que segue, vê que há uma crítica forte ao sofrimento e perda de vidas sem sentido, que não foi mais do que por interesse do colonolialismo instalado e anquilosado, MAS, para um leitor apressado ou mal informado, fica um texto equívoco, um texto que, lido "em diagonal" OU transcrito parcialmente, pode ser utilizado pela propaganda e defesa da guerra colonial.
Um abraço ao Jaime Silva e a minha apreciação pelo trabalho que vem desenvolvendo na sua Lourinhã.
Abraço
Alberto Branquinho
A Pátria, Alberto, a Pátria!... Boa questão, Jaime...Tens que fazer o TPC e vir aqui à "montra de trás" do blogue para te explicares melhor...
Uma sugestão de leitura, estimulante, um artigo que veio no "Público", há 25 anos;:
Público > Destaque : Menino, sabes o que é a Pátria? | Ana Sá Lopes 25 de Abril de 2000, 0:00
Nâo era a Pátria que defendíamos na Guiné. A minha ditosa Pátria vai do Minho ao Algarve, mais Açores e Madeira. O que defendíamos era o lastro da História, o imobilismo de Salazar e Caetano, num mundo em mudança. Com o 25 de Abril caiu tudo, e novas loucuras se abriram. Felizmente o bom senso venceu. Na ex-África portuguesa, 50 anos depois, é quase só tristeza.
António Graça de Abreu
Camarada António Graça de Abreu,
Perfeitamente de acordo! É, foi isso mesmo!
Só com uma ressalva: Marcelo Caetano não pensava Inicialmente EXACTAMENTE ASSIM - mudou francamente depois da visita que fez a Luanda, durante a qual lhe prepararam uma recepção (nas ruas e nos salões) tão exuberante com a presença de brancos, negros e (também) mestiços, que ele, que (como Salazar) não conhecia África, lhe fez mudar completamente as ideias que tinha àcerca das medidas que, se lhe tivesse inicialmente sido possível, inicialmente teria tomado.
Posso estar errado, mas é o que eu penso.
Cumprimentos.
Alberto Branquinho
Lembram-se do Livro (único) da 3ª classe, talvez o mais "ideológico" dos manuais escolares do Estado Novo ?!...Quantas reguadas ou ponteiradas não apanhámos por não conseguirmos "papaguear" a então definição de Pátria, que teve de ser revista em 1975...
"Menino, sabes o que é a Pátria?
A Pátria é a terra em que nascemos, a terra em que nasceram os nossos pais e muitas gerações de portugueses como nós.
É a nossa Pátria todo o território sagrado que D. Afonso Henriques começou a talhar para a Nação Portuguesa, que tantos heróis defenderam como o seu sangue ou alargaram com sacrifício de suas vidas.
É a terra em que viveram e agora repousam esses heróis, a par de santos e de sábios, de escritores e de artistas geniais.
A Pátria é a mãe de nós todos os que já se foram, os que vivemos e os que depois de nós hão de vir.
Na Pátria está, meu menino, a casa em que vieste à luz do dia, o regaço materno que tanta vez te embalou, a aldeia ou a cidade em que tu cresceste, a escola onde melhor te ensinam a conhecê-la e a amá-la, e a família e as pessoas que te rodeiam.
Na Pátria estão os campos de ricas searas, os prados verdejantes, os bosques sombreados, as vinhas de cachos negros ou de cor de ouro, os montes com suas capelinhas brancas votivas.
A Pátria é o solo de todo o Portugal, com as suas ilhas do Atlântico (Açores e Madeira, Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe...), as nossas terras dos dois lados de África, a Índia, Macau, a longínqua Timor.
Para cá e para além dos mares, é a nossa Pátria bendita todo o território em que, à sombra da nossa bandeira, se diz na formosa língua portuguesa a doce palavra Mãe!....
Livro de Leitura da 3ª Classe, Porto Editora, Lda., 1958, pp.5-6.
Minha pátria é a língua portuguesa
Por Bernardo Soares
'Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie — nem sequer mental ou de sonho —, transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem. Tal página de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha vida em todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um prazer inatingível que estou tendo. Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia sintáctica, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio passivo de coisa movida. [...]
Não chóro por nada que a vida traga ou leve. Há porém paginas de prosa me teem feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noute em que, ainda creança, li pela primeira vez numa selecta, o passo celebre de Vieira sobre o Rei Salomão, "Fabricou Salomão um palacio..." E fui lendo, até ao fim, tremulo, confuso; depois rompi em lagrimas felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquelle movimento hieratico da nossa clara lingua majestosa, aquelle exprimir das idéas nas palavras inevitaveis, correr de agua porque ha declive, aquelle assombro vocalico em que os sons são cores ideaes — tudo isso me toldou de instincto como uma grande emoção politica. E, disse, chorei; hoje, relembrando, ainda chóro. Não é — não — a saudade da infancia, de que não tenho saudades: é a saudade da emoção d´aquelle momento, a magua de não poder já ler pela primeira vez aquella grande certeza symphonica.
Não tenho sentimento nenhum politico ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriotico. Minha patria é a lingua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incommodassem pessoalmente, Mas odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa própria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ípsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.
Sim, porque a orthographia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-m´a do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.
Fonte
In Livro do Desassossego, fr. 259 (Texto publicado originariamente em "Descobrimento", revista de Cultura n.º 3, 1931, pp. 409-410, transcrito do "Livro do Desassossego", por Bernardo Soares (heterónimo de Fernando Pessoa), numa recolha de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha; ed. de Jacinto do Prado Coelho, Lisboa, Ática, 1982 vol. I, p. 16-17. Respeitou-se a ortografia da época de Fernando Pessoa'
in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/outros/antologia/minha-patria-e-a-lingua-portuguesa/632 [consultado em 30-10-2025]
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