Guiné > Região de Quínara > "
Buba, 1969. Vê-se a bifurcação do Rio de cujas margens exteriores fomos atacados no dia do meu baptismo de fogo. Era um dos locais preferidos pelo IN para nos atacar" (JT).
Guiné > Região de Quínara > "Buba, 1969 – vendo-se um dos braços do Rio e uma pequena reentrância pela terra dentro, onde alguns de nós montávamos 'emboscadas' aos peixes quando estava a maré a vazar com uma rede improvisada, permitido uma fuga à fome, ou ao repetitivo arroz com chispe, na falta de outra coisa melhor" (JT)
Fotos gentilmente cedidas pelo ex-Alf Mil Med Azevedo Franco. Legendas: JT.
1. Mensagem de José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf, CCAÇ 2381,
Buba, Quebo, Mampatá e
Empada (1968/70) (*)
OS MÉDICOS COM QUEM PARTILHEI A MINHA AVENTURA DE ENFERMEIRO (**)
O primeiro contacto que tive com um jovem médico na Guiné, tinha eu dois meses de comissão. Era um jovem de 26/27 anos, chegadinho de fresco.
Devo recordar que um Curso de Medicina leva seis anos a tirar, mais um ano de Internato hospitalar, no mínimo, pois que, na Especialização, vão mais três a cinco anos. Um médico de Clínica Geral só está apto a exercer medicina com cerca de 25 anos ou mais, logo este jovem médico tinha já uns anitos mais que qualquer alferes.
Apresentei-lhe um camarada doente com sintomas de paludismo. Como sabem os sintomas de paludismo variavam por vezes um pouco. No caso vertente, o desgraçado exauria-se em suores externos e internos, a par de terríveis dores musculares. Era uma autêntica
bica aberta.
Como já tinha vivido algumas cenas idênticas, eu tinha aparentemente soluções para a cura, mas o médico entrou em
parafuso e queria remeter o desgraçado para Bissau [, para o HM 241,] com urgência.
Disse-lhe então que se tencionava pedir uma evacuação urgente, o melhor seria fretar uma avioneta diariamente, para resolver todas as situações que iria viver futuramente.
Após conversarmos um pouco, o médico optou por lhe receitar a medicação apropriada que tínhamos no Posto, e três/quatro dias depois o jovem estava curado.
De todos os médicos com quem trabalhei, recordo dois pelas marcas positivas que me deixaram: O Dr. Alcides e o Dr. Azevedo Franco.
O primeiro, já com uma certa idade, pela sua simplicidade e pela forma carinhosa e cativante como acolhia o doente. Um homem pouco falador, que deixava adivinhar quanto se sentia deslocado naquela guerra, mas sempre disponível.
O
Dr. João Carlos de Azevedo Franco, meu querido amigo, matosinhense de gema, marcou-me muito e com ele aprendi muita coisa, quer na Guiné, quer pela vida fora.
Especializou-se em Ortopedia e ainda trabalha no Hospital da Prelado no Porto. Aprendi com ele a ver no soldado, primeiro o homem em si, com toda a sua dignidade, e depois a doença que ele tem, da qual precisa de ser curado.
O Homem, longe da família, do seu meio natural, num ambiente climático desfavorável, debaixo de uma tensão psíquica elevadíssima, desgastado fisicamente pelo esforço diário de caminhadas debaixo de sol abrasador, com o perigo de morte sempre à espreita. A comida péssima e muitas vezes com refeições fora de horas ou rações de combate intragáveis. Água potável só por milagre se encontrava, etc.
Depois o doente que se queixava de tudo e às vezes não tinha nada, aparentemente, a não ser um cansaço físico e psíquico que lhe minava as forças e destruía o Homem a pouco e pouco.
Pródigo a conceder
baixas, chegou ao ponte de reduzir a minha Companhia a trinta e sete homens (praças), operacionais. A CCaç 2382 pouco melhor estaria e a CCaç 2317, de Gandembel, pior ainda.
Um dia no Gabinete médico vimos pela janela, eu e ele, um camarada aproximar-se para a consulta. Diz o Dr. Azevedo Franco:
- Vem ali fulano - (conhecia-nos a todos ou quase todos pelo nome). - Vem com certeza pedir mais uma baixa e pelo aspecto bem precisa. Vai preenchendo o documento que eu assino...
A resposta de Bissau a tão grande hemorragia de pessoal no activo não demorou. Repentinamente surge uma avioneta com dois médicos lá dentro. Umas junta médica para avaliar os doentes com baixa.
- E agora, Doutor!?
- Não te preocupes. Assim como vieram, também se vão.
Durante dois dias foi um corridinho para o posto médico. No fim ficou tudo igual ou quase.
Logo de seguida aparece o General Spínola, de camuflado e pingalim, acompanhado do Capitão Almeida Bruno, o tal dos óculos escuros. Foram visitar o
bando, estacionado em Buba.
Formatura geral. Discurso inflamado de patriotismo. Desafio a fecharmos os olhos e imaginarmo-nos na Confeitaria Trindade a
manjar perú recheado ou meia desfeita com grão e bacalhau, quando estivéssemos a comer massa com amostras de ossos de chispe, o prato mais cozinhado à época, por falta de outra coisa melhor.
Depois uma ordem para o médico, que eu presenciei, por estar ali mesmo junto a eles:
- Estes homens o que precisam é de umas
picas (injecções) valentes. Vou dar ordens para reforçarem o seu stock. Aponta Bruno!
Resposta sábia e ponderada do Dr. Azevedo Franco:
- O que eles precisam é de carne, peixe, fruta e descanso, Senhor Governador.
- Mas... umas picas... umas picas... - e lá se foi embora para o hélio.
Dias depois, chegou a LDM com alguns víveres e dois grandes caixotes de medicamentos à base de revigorantes.
Nem sequer foram abertos. Eu mesmo, por ordem do médico, fiz a guia de retorno para Bissau, com a informação de que não tinham sido pedidos.
O centro nevrálgico da construção da estrada passou entretanto temporariamente para Samba Sábali, um acampamento no meio da selva e logo depois para Mampatá Forreá, sendo a sua segurança assegurada por uma Companhia de Periquitos. A minha Companhia ficou repartida por Mampatá (um Grupo de Combate), Buba e Empada.
O Dr. Azevedo Franco ficou em Buba por mais algum tempo. Tive oportunidade de o reencontrar em Empada, onde nos ia fazer uma visita em serviço, e posteriormente em Bissau, no fim da minha Comissão, quando ele já estava a prestar serviço no Hospital Militar.
Recordo que tinha a seu cargo o acompanhamento médico dos combatentes do PAIGC, feridos ou doentes, feitos prisioneiros (***). Tive oportunidade de o acompanhar em algumas das visitas diárias que fazia a esses doentes e feridos. Só posso dizer uma coisa: Sempre o mesmo!
A sua forma de ser e estar na vida ficou gravada no meu coração e pela vida fora tem sido um esteio em que me apoio quando preciso.
Zé Teixeira
______________
Notas de L.G.:
(*) Vd. poste de 18 de Agosto de 2007>
Guiné 63/74 - P2058: Estórias do Zé Teixeira (20): Fermero ká tem patacão pra pagá, toma minha mudjer.
(*) Vd. postes antreriores desta série:
8 de Setembro de 2009 >
Guiné 63/74 - P4918: Os nossos médicos (4): Um grande amigo, o Dr. Fernando Enriques de Lemos (Mário Fitas, ex-Fur Mil, CCAÇ 763, Cufar, 1965/66)
6 de Setembro de 2009 >
Guiné 63/74 - P4910: Os Nossos Médicos (3): Os especialistas eram poucos, e não gostavam de ir para... o mato (Armandino Alves, CCAÇ 1589, 1966/68)
2 de Setembro de 2009 >
Guiné 63/74 - P4891: Os nossos médicos (2): Tierno Bagulho e Pio de Abreu (Canchungo, 1971/73) (Luís Graça / António Graça de Abreu)
15 de Fevereiro de 2009 >
Guiné 63/74 - P3899: Os nossos médicos (1): Alf Mil Médico José Alberto Machado (Nova Lamego)
(***) Vd. poste de 4 de Setembro de 2007 >
Guiné 63/74 - P2080: Estórias do Zé Teixeira (22): Tuga na tem sorte
(...) Encontro imediato com o IN
Um ano depois, já em Bissau a aguardar a embarque de regresso, fui ao Hospital Militar visitar o querido amigo Dr. Azevedo Franco e acompanhei-o na visita clínica aos seus doentes de ortopedia, entre os quais os IN aí internados em enfermaria própria. Um doente especial chamou-me a atenção pela sua história. Tinha sido ferido pelas nossas forças com uma rajada na perna que lhe atingiu também a barriga, ficando de intestino a céu aberto. Aguentou três dias enterrado no tarrafo de uma bolanha, até ser feito prisioneiro e enviado para o HM 241 em estado crítico. Estava safo, apesar de manco para toda a vida. Era apresentado como referência, pela sua capacidade de resistência.
Tentei entabular conversa e obtive como resposta:
-
A mim ká sibe portugué, a mim ká miste papeia cum tuga.
Ao que eu ripostei:
- Ká na tem probleminha. - E, fui dar duas de conversa com o vizinho.
No dia seguinte ao entrar na enfermaria, notei-lhe um sorriso e fui cumprimentá-lo. Fiquei por ali cerca de meia hora, a falar em crioulo, das “nossas guerras”. Por onde andámos, onde nos cruzámos sem nos ver e nos cumprimentámos, nas linguagem da guerra maldita que nos separou até aquele momento. Talvez, não o afirmo, tivéssemos falado das razões que nos assistiam e fizeram de nós inimigos sem nos conhecermos tão pouco. A sua história de guerrilheiro começava com o início da guerra. Tinha corrido já a Guiné toda, mas nos últimos três anos estacionara no Sul, onde foi ferido e feito prisioneiro, precisamente o chão por eu andei também.
Ao saber que eu tinha estado em Buba, perguntou:
- Estavas lá naquele ataque que fizemos antes do sol chegar?
Ao responder-lhe afirmativamente, continuou:
- Logo que nosso ataque terminou, a tropa ia sair pelo portão da pista e recuou. Que pena! Eu estava logo ali à frente, emboscado, na curva da estrada, (para Sinchã Cherno), junto à berma da pista, à vossa espera. Tínhamos muito material a proteger e vocês tinham a mania de vir logo a correr atrás de nós... ia ser “manga de ronco”.
Pois... e eu estava lá, nesse grupo !
-
Tuga na tem manga di sorte!
Um sorriso e um abraço talvez tenham selado este feliz momento... A conversa continuou, enquanto o médico fazia a sua visita clínica.
Houve ainda outro dia em que pude voltar a falar com ele. Como gostava de ter gravado as nossas conversas, já que estes momentos jamais sairão da memória. Já com muito pó, a memória recusa-se a deitar cá para fora, tantos momentos, dias, horas, minutos marcantes, bons ou menos bons daquela vida de “guerrilheiro à força” (...).
Vd. também poste de 2 de Setembro de 2007>
Guiné 63/74 - P2078: Estórias do Zé Teixeira (21): Saiu-lhe a sorte grande.