1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Dezembro de 2010:
Malta,
Espero que quem tenha vivido no Xitole venha participar na descodificação das imagens captadas neste dia. Até agora não se encontrou nada tão bem conservado.
O Xitole merecia um projecto da recuperação, em nome da memória de todos nós que ali combatemos. Vamos ver se a ideia pega.
Um abraço do
Mário
Operação Tangomau (9)
Beja Santos
O dia no Xitole e o regresso a Finete
1. O Tangomau levanta-se cedo, a sua preocupação é contemplar o nascer e o capitular do dia, captar as cambiantes de luz, ouvir as vozes dos humanos e as sonoridades da fauna, impressionar-se com aquela bola de fogo que desaparece no horizonte como avião bombardeiro incendiado a despenhar-se na grande e maciça floresta. O dia de hoje era suposto prolongar o de ontem, continuar-se no Cuor. É indispensável espiolhar Finete, falhar com o chefe de tabanca, mesmo que pareça surrealista perguntar-lhe se ele cede terreno para que o anarca Jorge Cabral ali construa uma casa. E para que as peripécias ganhem sumo, pedir orçamento a quem de direito, não basta fazer contas a tijolos de adobe, chapa zincada, ripas de cibe para o travejamento, divisórias para os quartos, cozinha e casa de banho, há que pensar que o glorioso antigo comandante do Pel Caç Nat 63 terá uma cozinha, pisará lajedo, é admissível o conforto de um gerador. Por ora nada mais, quanto a Finete. Mas há Madina de Gabiel, Sansão, Maná e Canturé. Afinal, o Tangomau rende-se ao que o homem grande Fodé Dahaba decidiu, vai-se ao Xitole. Antes, fazem-se compras para o Bairro Joli e acolhem-se surpresas. A primeira, é receber a visita da família de Quebá Soncó, o primogénito do régulo Malã Soncó. Faustosas, apresentam-se Nhali Cassamá e Bantã Aiderá, Nhali estava na bolanha quando o Tangomau visitou Missirá. Fanta, a outra mulher de Quebá, está em Bissau. Falou-se do passado e das amarguras do presente. Nhali sabe que o filho Bacari telefona regularmente de Saragoça para o Tangomau, Nhali pede um presente muito especial ao filho, um telemóvel, toda a gente já tem telemóvel menos ela…
Bantã à esquerda, Nhali à direita, à porta da casa de Fodé Dahaba. Enquanto fomos ao Xitole, elas passaram o dia com Aidjá. Não podiam adivinhar que no dia seguinte o Tangomau iria aparecer de motocicleta em Missirá, vindo de Canturé e Maná. Passou de raspão em Canturé, haverá depois uma visita com pompa e circunstância, ali ia morrendo numa mina anticarro e Canturé é local muito belo, um quase obrigatório ponto de passagem para ir para Mato de Cão ou Finete.
2. Sai-se do Bambadincazinho e o Tangomau teve a vaga reminiscência das colunas de abastecimento ao Xitole. No interior do carro de combate cresce uma gritaria infernal, a comitiva de antigos combatentes rememora episódios de idas ao Cossé e ao Xitole. O importante é que depois de Samba Juli se vai em direcção a Cambessé, ali Dauda Seidi preparou a recepção. Lamentavelmente, perderam-se as duas imagens do evento, uma delas com a família do Dauda, chefe de tabanca e homens grandes.
O que mais impressiona em Dauda Seidi é que parece que o envelhecimento estar centrado nas linhas acentuadas do rosto e no esbranquiçado da barba. O resto, é o mesmo Dauda de há 40 anos, bastou dizer-lhe: “Não te mexas!”, Ei-lo hirto com a sua majestade natural. Parece que com os reis disfarçados de povo é sempre assim.
3. De Cambessé, o carro de combate dirigiu-se para Sinchã Indjai, a tabaca de Albino Amadu Baldé. Chegou o momento de um desabafo muito íntimo: o Tangomau deve-lhe muito, era ele que fazia a gestão efectiva do pelotão de milícias de Missirá. Possui uma comunicação fluída, é um português com as sílabas descascadas, sem nenhum travo do crioulo. Sempre possuiu um olhar místico, de quem regularmente fala com Deus. Era pragmático, jovial, tinha sido professor e educado por missionários. O Tangomau chorou convulsivamente quando se apercebeu da vida miserável que ele leva e a discrição com que esconde os revezes da vida. Levou-lhe livros e escreveu mesmo uma dedicatória muito especial: “Ao Albino, um irmão do coração, da solidariedade de Missirá, a minha dívida não tem fim e a admiração é inesgotável”. Como é habitual nestes eventos, primeiro saúdam-se os homens grandes e a autoridade, a seguir os camaradas reúnem-se com o anfitrião. Inevitavelmente, Fodé discursou, Mamadu Djau pôs-se a seu lado. Albino olha-nos como se estivesse estado todos estes anos à espera de uma justa reparação ou da minha visita.
“Sabia que me trazias livros, mesmo com muita dificuldade, encontro nas leituras o meu alimento preferido. Arranja maneira de me mandar mais livros. Eu prometo escrever-te. Desculpa se te pedir ajuda, tudo é muito difícil, não tenho mais ninguém a quem pedir ajuda”. À despedida, o Tangomau beijou-lhe a testa e ele respondeu: “Domingo vou passar o dia contigo, meu irmão”.
4. É um prazer inexcedível conversar com Albino Amadu Baldé. Ele tem sempre resposta para tudo o que intriga o Tangomau. Do género: “Quando eu digo mãezinha, estou a falar da irmã da mãe que me pariu”; “Está descansado, hei-de descobrir os dois Ieró Djaló, vivem muito longe, vou mandar mensagem”; “Pode-se escrever que o régulo de Taibatá era Carfala Baldé, confirmo que Cherno Baldé era o comandante do pelotão de Demba Taco e o comandante da milícia de Amedalai Mamadu Baldé, todos já morreram”; “Sim, Abás Jamanca era sargento das milícias de Finete, depois da guerra foi viver para Galomaro, desapareceu, tens de ver que depois da guerra procurámos reconstruir as nossas vidas, fomos para as tabancas das mulheres ou dos irmãos, ali tínhamos paz e não fomos perseguidos”.
O Tangomau pediu ao Albino que se pusesse de pé, há que confessar que ao menos se devia ter esperado que Fodé Dahaba tirasse a mão do olho, paciência, salva-se a espontaneidade do momento. Este é um dilecto amigo martirizado, o Tangomau já suspira por domingo, têm tanta coisa para conversar…
5. A próxima etapa é o Xitole. Preparem-se, aqui não se estragou nem uma só fotografia. O que se lamenta é que o guia não identificou claramente todas as instalações visitadas. Ao que parece, o que a imagem regista terá sido uma instalação do comando. Dignidade não lhe falta. O que o Tangomau logo recordou, assim que pôs os pés em terra, foi o ritual da coluna vinda de Bambadinca a chegar ao Xitole, a cabeça da coluna logo se posicionava para o regresso e este edifício foi rapidamente relembrado.
O que o Tangomau mais gosta é o haver na edificação qualquer coisa na casa portuguesa. Mas também qualquer coisa que a memória gravou das vezes que se foi ao Xitole. Só faltou gritar: “O nosso capitão está aí?”.
6. Mas a mágoa vem logo a seguir, não há direito de não aproveitar este espaço, de o habitar, o Tangomau circula por um Xitole fantasma, parece que ficaram ali algumas almas do outro mundo que condenaram estes edifícios à indiferença mortal.
Terá sido caserna? Arrecadação? Ao menos aqueles que viveram no Xitole venham a terreiro e identifiquem a função deste espaço que fazia parte do destacamento. O incrível é que o edifício está telhado, mesmo vazio e sem préstimo aparente. Andava o Tangomau a deambular quando chegou uma motoreta com uma autoridade local. A conversa foi cómica, a autoridade nada sabia sobre o local, parece que o Xitole está à espera que tudo isto apodreça.
7. Súbito, Calilo Dahaba grita: “Velho, parece que está aqui uma daquelas coisas que andas à procura!”. Temos finalmente sinal de vida, uma inscrição da CCaç 1551. Isto facilita as coisas. Quem pertenceu à CCaç 1551 que se apresente e fale, as imagens vão dar vida e cor às suas memórias. Do lado do visitante, ponto final.
Foi um trolha que, à semelhança dos construtores das catedrais da Idade Média, deixou este sinal incisivo para a posteridade, à entrada de uma porta. Não se encontrará no Xitole outra marca parecida.
8. Prossegue a deambulação, mais um edifício do quartel. O guia é categórico: “Não sei para que servia, mas que era do quartel era”. O Tangomau está confiante, em breve vão aparecer comentários esclarecedores, talvez o comandante de companhia aqui desse despacho, nunca se sabe.
Fica-se com a ideia que há presença humana neste Xitole do passado, alguém se aproveita deste arvoredo frondoso. Há até mesmo a secreta esperança de que o Xitole poderá vir a ser recuperado, exibido como um quartel da guerra que mudou a vida a dois países. Vestígios não faltam e o Xitole já existia, já tinha importância muito antes da guerra.
9. Terá sido um refeitório, houve mesmo quem dissesse que a cozinha estava ao lado, o guia mostrou os restos de um abrigo, a pouca distância. Quem viveu no Xitole tem um imperativo de nos ajudar, a interpretar este vestígio arqueológico, o edifício já se esboroou, o desaparecimento total é uma questão de anos… ou de meses.
A Natureza é uma entidade superior, os edifícios demolem-se, apodrecem, as árvores crescem, imparáveis. Mamadu Djau comentava que era mesmo um refeitório e havia uma cozinha, o Tangomau aquiesceu.
10. Não é de mais insistir que os itinerários estão alterados, o que aqui se vê é a entrada de Canturé, hoje Gã-Turé. Neste sombreado explodiu uma mina que fez várias vítimas, uma delas mortal. Mamadu Djau reconstituiu para todos os presentes o que se tinha passado no final daquele dia 16 de Outubro de 1969. Quem vê estas fotografias não pode imaginar o tanto sofrimento havido. O Tangomau só se lembrava de Cherno Suane, que aqui desapareceu e ressurgiu. E rezou por Manuel Guerreiro Jorge, as fotografias não revelam o som dos gritos dos moribundos.
A explosão da mina anticarro deu-se exactamente no canto direito do querentim, a vedação típica feita com os caniçais. O fundo é um belo arvoredo, é uma avenida de poilões que vai até Finete. Mais bonito, mais esplendoroso, só a entrada do Enxalé, onde o Tangomau irá amanhã, antes de ir conhecer em tempo de paz Cabuca, Madina e Belel.
Perderam-se as imagens do regresso a FInete, o Tangomau di-lo abertamente, com o coração contrito. O que se perdeu: a ladeira de Finete para Canturé, com Malandim à esquerda; o registo da nova tabanca e a conversa com o actual chefe de Tabanca; a casa do Sr. Biloche, um dinâmico empreendedor e conhecido construtor civil a quem se pediu orçamento logo que o chefe de tabanca de Finete garantiu que oferecia o terreno para a casa do Jorge Cabral. Pois ficas a saber, meu estimado anarca, que a tua casinha em adobe, com uma boa cobertura de cibe e chapa zincada, as paredes interiores todas cimentadas, o chão ladrilhado, uma cozinha e uma casa de banho, pelo menos 4 janelas bem rasgadas, a porta da rua e a porta para a horta, é qualquer coisa como 5 mil euros. Depois, tens que contar com o gerador, o equipamento de cozinha e o da casa de banho, põe mais 2 ou 3 mil euros. Obviamente, tens que pensar no transporte, na governanta, na dama de companhia e no guarda-nocturno. É bem possível que vivas ali muito mais barato do que em Lisboa, com vista desafogada, a 70 quilómetros de Bafatá e a 2 horas de Bissau. O ideal é que vás escolher o terreno, marcas a data da viagem, o Sr. Biloche explicar-te-á tudo ao pormenor…
11. E assim se regressou a Bambadinca. Chegaram mais visitas, vou fotografar Califo Djau, da secção de Bacari Soncó. Ele recordou ao Tangomau um pormenor: trouxe uma carta que o coronel Mamadu Jaquité, de Madina, lhe deixara em Canturé, a anunciar que o iria matar. Curiosa é a coincidência, esteve hoje no local em que o carrasco esteve quase a praticar a execução. Calilo Dahaba apresentou ao Tangomau Lânsana Sori, um jovem da Guiné Conacri que tem motoreta e se oferece para o levar a Madina e a Belel, amanhã. Fodé Dahaba está furioso, esta independência do Tangomau é quase intolerável. Anoitece, chegou a hora de regressar ao Bairro Joli, os anfitriões querem saber sempre ao detalhe como se passou o dia. O Tangomau está excitado, Madina é o grande mito não revelado dos lugares míticos. A grande aventura está prestes a acontecer, é só uma questão de horas. E pela primeira vez na sua vida, o Tangomau vai atravessar a savana numa motocicleta.
Obrigado por teres vindo, Califo Djau. Obrigado por me teres lembrado o bilhete do coronel Mamadu Jaquité. Já tinha deixado outro bilhete na fonte de Cancumba, dizendo algo como isto: “Meu grande alferes de merda, andas a desinquietar a vida do nosso povo, vou tratar de ti. Se voltares vivo para a tua Pátria, será grande vergonha para mim. Prepara-te para o castigo. Nem Deus te salva. O meu nome é Mamadu Jaquité, fica sabendo”. O Tangomau apresentou-se no Cumeré, cerca de 20 anos depois. E fizeram uma festa, depois de se ter contado a história daqueles bilhetes: “Sr. Coronel, venho cumprimentá-lo, eu sou o alferes de merda, o de Missirá, não me matou, mas fez-nos sofrer muito. Agora venho abraça-lo”.
Fotos: © Mário Beja Santos (2010). Direitos reservados.
__________
Nota do editor
Vd. último poste da série de 27 de Dezembro de 2010 >
Guiné 63/74 - P7511: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (8): O primeiro dia no Cuor (continuação)