terça-feira, 28 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20913: Da Suécia com saudade (69): Eu destrui um país [em sueco, "Jag har förstört ett helt land"], por Patrik Engellau... (José Belo)


Guiné-Bissau > Bissau > 2020 > Afribaba > Anúncio de venda de "Camião Volvo, de 20 toneladas, báscula para dois lados, com motor,  arroçaria e caixa em muito bom estado". Preço: 9 100 000 CFA (cerca de 13 870 euros, ao câmbio de hoje, 1 euro = 655,96 CFA).  Anunciante: Afribaba.(Reproduzido com a devida vénia...)


1. Mensagem de  José Belo,  ex-alf mil inf da CCAÇ 2381, Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70, e manteve-se no ativo, no exército português, durante uma década; está reformado como capitão inf do exército português; jurista, vive entre (i) Estocolmo, Suécia, (ii) nas imediações de Abisco, Kiruna, Lapónia, no círculo polar ártico, já próximo da fronteira com a Finlândia, e (iii) Key-West, Florida, EUA; é o único régulo da tabanca de um homem só (, mas sempre bem acompanhado das suas renas, dos seus cães e dos seus ursos)

Data: sábado, 25/04, 20:16



Assunto: : "Eu destruí completamente um País" (*)


Luís: seguem as as declaracões de Patrik Engellau, um alto quadro do funcionalismo público sueco, sobre a Guiné-Bissau.. Junto foto dele, Patrik Engellau em artigo publicado no "Alla Skribenter", 27 dezembro de 2015. Faço uma tradução adaptada do artigo. Atenção aos muitos erros ortográficos na língua de Camões, por mim pouco usada há muitas décadas, a pedir benevolências extras quando escrita sobre o joelho nesta tradução do sueco original.



Ámen, J.Belo


2. Eu destrui um país [em sueco, "Jag har förstört ett helt land"]

"Alla Skribenter", 27 de dezembro de 2015.

por Patrik Engellau


Trabalhei durante cerca de 10 anos na ajuda económica ao Terceiro Mundo, primeiro nas Nações Unidas e depois  na agência sueca para o a cooperação internacional e o desenvolvimento (SIDA - Swedish International Development Cooperation Agency), em países como o Brasil, Índia, Etiópia, e por último como chefe na embaixada sueca em Bissau.

Cheguei a Bissau em 1976, com 50 milhões de coroas suecas, no bolso, por ano,  para apoio económico (,hoje equivalente a cerca de 250 milhões). Isto foi mais ou menos na mesma altura em que o novo governo guineense tomava posse após a queda do império português.

A Guiné-Bissau era um dos países favoritos da Suécia. Tanto a União Soviética como a Suécia tinham feito grandes doações ao PAIGC, o movimento de libertação de orientação socialista, agora no poder. Mas a Suécia era, então, de longe, o maior doador.

As nossas contribuições totalizavam uma soma muito superior ao Orçamento do Estado guineense. Sentia-me, então, como um dos elementos com maior influência no país. Tanto o Presidente [, Luís Cabral,] como os Ministros procuravam-me quase diariamente para obter as mais variadas coisas.

Mas os que julgam que tudo então se perdeu por os políticos terem aberto contas particulares em bancos suíços, estão enganados. Pelo menos no início, a líderança política eram constituída por gente honesta, bem intencionada, verdadeiros socialistas idealistas.
Queriam reformar e fazer progredir o país.

Obviamente que, ao olhar-se hoje [2015] retrospeticamente, não teria sido pior se a nossa ajuda económica tivesse terminado nas tais contas bancárias particulares.

A principal produção da Guiné-Bissau, além da agricutura de autosubsistência, era o arroz e o amendoim, os dois produtos de exportação,O comércio entre os produtores e o porto de Bissau estava nas mãos dos libaneses. Estes usavam carrinhas de marca Peugeot, em estradas lamacentas e com pouca manutenção, para transportarem para o interior produtos importados (, artigos de plástico, tecidos e outros), consumidos pelas populações, e no regresso a Bissau voltavam carregados com arroz e amendoim.

O governo não estava nada satisfeito com este sistema por considerar que os libaneses ganhavam demasiado com estes negócios de verdadeira exploração dos produtores locais. Considerava também que as pequenas quantidades transportadas não eram economicamente viáveis na perspetica da exportação em grande escala.

Ambos os problemas foram resolvidos com um plano que previa a nacionalização do comércio por grosso e a retalho e o transporte das mercadorias a realizar por camiões modernos.

Claro está que foi a Suécia quem, a meu pedido, veio a fornecer umas dúzias de moderníssimos camiões Volvo, desembarcados em Bissau em poucos meses.

Estes camiões último modelo,com ar condicionado, rádio estereofónico e confortável cabine para o condutor dormir, eram naves espaciais aos olhos da populção, e depressa se tornaram num instrumento de "engate" das belezas locais nas ruas de Bissau.

Durante uns tempos era mais importante esta "mercadoria" do que os tradicionais produtos de plástico e tecidos a serem transportados para o interior.

Se o problema tivesse sido só esse, as coisas näo teriam sido tão graves. Mas...quando os camionistas mais consciencios finalmente se puseram a caminho do interior (o que não deveriam ter feito!), concluiu-se que as estradas existentes [, "picadas",] não foram feitas para estes mastodontes ma sim para as carrinhas Peugeot.

Todos os tipos imagináveis de problemas surgiram, acabando por liquidar este tipo de transporte. Em menos de seis meses todos os camiões Volvo estavam parados.

Sendo as marcas de camiões Volvo e Scania as mais vendidas mundialmente, e utilizadas nas condições mais extremas, foi enviada a Bissau uma equipa de mecâncios para estudar o problema surgido.

Chegou-se à conclusão de que, para além dos problemas quanto ao peso que as estradas não suportavam, ambém tinham surgido pequenos problemas de manutenção das viaturas, do tipo: esqueceram-se de mudar o óleo, houve componentes dos motores que desaparecera, etc.

Com a falta de intermediários tradicionais, como os comerciantes libaneses, os camponeses não conseguiam escoar a sua produção, pelo que se voltaram a concentrar-se na produção para consumo local.

O arroz passou a não chegar para alimentar a população de Bissau. Aí a coisa tornou-se grave! O Presidente [, Luís Cabral,] justificou perante mim, que as coisas tinham-se agravado por razões climatéricas que teriam acarretado doenças para as plantas. Devido a isto, perguntou-me de imediato se seria possível um aumento da ajuda económica estipulada para estas situações de emegência.

Telegrafei de imediato para os escritórios centrais da SIDA (que são as iniciais ou o acrónimo da Agência Estatal Sueca para a ajuda aos países em vias de desenvolvimento) e, em muito curto espaço de tempo, tínhamos em Bissau um barco fretado, chinês, que transportava 3 mil toneladas de arroz para que a população não morresse de fome.

Estou a simplicar mas as coisas passaram-se basicamente assim.
História semelhante poderia ser aqui contada quanto ao enorme apoio económico sueco à indústria da pesca local.

São muitos os detalhes e sobre eles escrevi um romance publicado pela editora Atlantis. [Obs : Tenho em minha posse esses "detalhes"... Referência bibliográfica: Patrik Engellau - Genom Ekluten. Stockholm, Atlantis, 1980].

Pessoalmente acabei por me cansar destes contínuos fracassos na utilização de tão vastos recursos económicos, afastando-me de vez deste negócio escuro que é a assistência económica aos países pobres.(**)

Mas antes ainda de puxar a mim prórpio as orelhas, dei-me conta de que fui cúmplice no ato de destruição de um país.

Alguns anos depois, tanto o Ministério dos Negócios Estrangeiros como a 
agência sueca para o a cooperação internacional e o desenvolvimento (SIDA) cansaran-se, decidindo terminar com estes apoios à Guiné-Bissau, com o argumento de que este país, afinal,  não tinha o perfil adequado. Mas não podemos nem devemos "lavar as mäos" quanto ao processo e aos resultados.

Fomos nós, afinal, quem forneceu ao governo do PAIGC as ferramentas e as oprotuniades, para eles efectuarem as suas estúpidas experiências sociais...

Enquanto isto sucedia, nós estávamos ao lado deles e aplaudíamos este país heróico com os seus belos princípios sociais.

Agora que Guiné-Bissau se tornou num "narco-estado", o estado ganha dinheiro com a ajuda ao tráfego de droga da América Latina para os mercados europeus.

E o que pode fazer o pobre do governo? Os camiões Volvo são agora sucata e os libaneses provavelmente foram-se embora!



Em defesa das ajudas deste tipo aos países pobre, é claro que pode-afirmar-se que geralmente o seu montante é tão pequeno em relação aos recursos próprios do país destinatário que o eventual insucesso  não é assim  tão importante.

Patrik Engellanm 27/12/2015.
Publicado no "Alla Skribenter"


[Reprodução com a devida vénia... Tradução, revisão e fixação de texto: JB. O editor LG cotejou o original em sueco, e a tradução livre do JB, com tradução automática,pelo Google Translate, em inglês e português]. 

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 20 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20878: Da Suécia com Saudade (68): por causa da tal pandemia, as minhas renas não podem agora andar em bicha de pirilau e muito menos em manada... (José Belo)
 

(**) Vd, postes de:

3 de novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13842: Da Suécia com saudade (40): A ajuda sueca ao PAIGC, de 1969 a 1973, foi de 5,8 milhões de euros (Parte I)... à Guiné-Bissau, de 1974 a 1995, foi de quase 270 milhões de euros... Depois os suecos fecharam a torneira... (José Belo)

4 de movembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13847: Da Suécia com saudade (41): A ajuda sueca ao PAIGC, de 1969 a 1973, foi de 5,8 milhões de euros (Parte II)... Um apoio estritamente civil, humanitário, não-militar, apesar das pressões a que estavam sujeitos os sociais-democratas, então no poder (José Belo)


5 de novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13849: Da Suécia com saudade (42): A ajuda sueca ao PAIGC, de 1969 a 1973, foi de 5,8 milhões de euros (Parte III)... Pragmatismos de Amílcar Cabral e do Governo Sueco, de Olaf Palme, que só reconheceu a Guiné-Bissau em 9 de agosto de 1974 (José Belo)

6 de novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13853: Da Suécia com saudade (43): A ajuda sueca ao PAIGC, de 1969 a 1973, foi de 5,8 milhões de euros (Parte IV): Rússia e Suécia, vizinhos e inimigos fidalgais, foram os dois países que mais auxiliaram o partido de Amílcar Cabral (José Belo)

7 de novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13859: Da Suécia com saudade (44): A ajuda sueca ao PAIGC, de 1969 a 1973, foi de 5,8 milhões de euros (Parte V): Quando se discutia, item a item, o que era ou não era ajuda humanitária: catanas, canetas, latas de sardinha de conserva... (José Belo)

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20912: 16 anos a blogar (5): O barbeiro dos bifes (António Carvalho, ex-Fur Mil Enf)


Região de Tombali > Mampatá > Uma foto aérea de povoação e aquartelamento.
Foto: © José Manuel Lopes (2008)


1. Mensagem do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enf da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74), com data de 20 de Abril de 2020, trazendo-nos uma história a que deu o título de O barbeiro dos bifes.


O BARBEIRO DOS BIFES

Nem sempre as diferentes especialidades se ajustavam ao perfil de cada militar, fosse por imperfeições do próprio sistema de avaliação, que nós conhecíamos por testes psicotécnicos, fosse pela viciação dos resultados sob a mão de uma oportuna cunha, viesse ela do padre da aldeia, do regedor ou até de um coronel reformado.

Certo é que, para preencher a especialidade de atirador, nunca havia pedidos, e poucos eram os que sorriam quando, no fim dos três meses de recruta, lhes era comunicado que lhes tinha cabido em sorte a G3. Na ingenuidade de muitos mancebos não lhes calharia mal a especialidade de condutor, sendo que alguns até almejavam essa profissão, logo que regressados à vida civil. Não sabiam eles ainda quão perigoso era conduzir um camião nas matas de África, sujeitos ao primeiro tiro ou ao rebentamento de uma mina anticarro.

Ao Simão, de Oliveira de Azeméis,  foi-lhe atribuída precisamente a especialidade de condutor-auto, a contragosto, mas se assim tinha sido o resultado dos testes, assim tinha que ser. A grossa maioria dos recrutados, entre 1961 e 1974, bem sabia da sua condenação à guerra do Ultramar, ao fim de meia dúzia de meses, mas o Simão sempre admitia que pudesse ter sorte, até porque era já casado. Podia ser que escapasse e ficasse por cá, julgava até que, com mais sorte ainda, poderia ficar ao serviço de um oficial superior, conduzindo-o num “Carocha” verde azeitona ou num Mercedes da mesma cor, entre quartéis e a sua residência. Bem tentou, pediu até a uma senhora de Oliveira de Azeméis que tinha trabalhado em casa de um general, mas, azar dele, a senhora tinha saído de lá zangada, quando ainda jovem, por lhe não ter aceitado uma proposta indecente.

Foi azarado o Simão, porque se tinha pouco jeito para aquela profissão, muito menos se imaginava a conduzir uma Berliet carregada de cerveja e sacos de arroz, em picadas cheias de buracos camuflados por água. Ao fim de seis meses de tropa estava já escalado para o pior sítio da guerra de África, ainda por cima obrigado a integrar colunas de reabastecimento, com um qualquer camião, a que havia de faltar sempre alguma peça, a transportar água e lenha das imediações do aquartelamento e outros serviços que lhe fossem atribuídos. Estava o Simão metido numa camisa de sete mangas, mas havia de se safar, o espertalhão.

De vez em quando, de propósito, quando ia à lenha, ali por perto, arranjava maneira de fazer de conta que não via e passava por cima da ponta aguda do pé de uma árvore e lá ia mais um pneu à vida. Também daria resultado arranhar a caixa de velocidades, de vez em quando, sempre que o Furriel Mecânico ou o Capitão estivessem por perto. Só por si estes argumentos não seriam suficientes para o Capitão o tirar da condução, mas iriam ajudar muito, poucos dias depois. O Simão tinha um plano bem urdido. Quando, antes do embarque, ainda em casa, a mulher lhe punha na mala, entre outras roupas, um casaco, ele disse-lhe, num riso forçado, antes da triste despedida:

"Tira daí, mulher, o casaco que lá só há calor de rachar e mete mas é, no lugar dele, a minha ferramenta de barbeiro, que para alguma coisa me há de servir."

Nas horas vagas ia cortando o cabelo a um ou dois por dia, daqueles seus amigos, que mais lhe não pagavam que uma simples cerveja. Longe de cogitar que o Simão montava a “oficina” propositadamente em sítio que o visse, o Capitão, apreciando-lhe a destreza com a máquina e a tesoura, logo quis tirar proveito da situação. Foi, pois, o que fez, no dia seguinte quando o mandou chamar ao seu gabinete:
- Então Simão, já que tem andado a cortar o cabelo a alguns militares, trabalho que vejo bem que já fazia na vida civil, vai, a partir de agora, ser o barbeiro da companhia.

O Simão não teria disfarçado o agrado daquela ordem emitida pelo seu Capitão, caso se tratasse de uma proposta susceptível de negociação. Agora uma ordem! Ele bem sabia que na tropa não havia a especialidade de barbeiro, logo, sendo ele condutor, só aceitaria esse encargo de tosquiar aquelas quase duas centenas de militares, se a ordem viesse condimentada com algo mais apelativo. Mas ele, a parte mais fraca, não havia, naquele dia, de recusar, definitivamente, obedecer à ordem do Capitão, ainda que ilegal. Por isso, só lhe disse, condoído, que lhe seria quase impossível acumular a função de condutor com a de barbeiro.
- Se o meu Capitão me arranjasse uma outra função, dentro do arame farpado, libertando-me da condução, seria mais fácil, assim vai ser quase impossível eu dar conta do recado, que são muitas cabeças!

Havia mais condutores do que viaturas na companhia, por isso, dois ou três deles tinham sido colocados noutros sectores onde o Capitão notava necessidade. Ainda nem um mês tinha decorrido desde a nossa chegada a Mampatá, o nosso homem, em conversa com o Ferraz, seu colega de especialidade, que trabalhava contrariado na cozinha, propôs-lhe a troca, para ambos benfazeja . Faltava agora essa permuta merecer o aval do Capitão, porque, quanto ao Furriel Mecânico esse estava morto por o ver pelas costas, acabando-se assim a sua permanente aflição sempre que o via pegar numa viatura.

Assim, havia condições para todas as partes saírem satisfeitas. Por isso, os dois condutores, depois de apresentada a pretensão ao Furriel Mecânico, Nina de seu nome, correram ao gabinete do Capitão para a celebração daquela permuta de geral consolação. Agora já podia tratar do cabelo e da barba de toda agente, liberto das viaturas, embora com a acumulação de ajudante de cozinha e cantineiro.

Estava como queria, o nosso barbeiro Simão. Apareceu por lá outro, um alentejano, que também cortava o cabelo a alguns, mas embora mais barateiro, era mais fraquinho. Bom mesmo, esse, era no mato, com a “bazooca”, arma da 2.ª Guerra Mundial que manejava com mestria.

Um barbeiro na tropa
O Simão era um espertalhão, mas tinha sentido de justiça e consciência de classe. Cada um dava-lhe de gorjeta o que quisesse, mas ele, mesmo não dispondo de tabela fixada na árvore onde encostava a cadeira, tinha na sua mente, o valor justo para cada posto, e rogava, por entre dentes, as maiores pragas ao alferes que lhe desse menos do que um furriel ou quando um destes lhe desse tanto como um soldado.

Terá beneficiado da influência das lavadeiras fulas que estabeleciam os preços pelos seus serviços de lavagem das nossas fardas em função dos nossos vencimentos? Julgo que sim, porque, na nossa cultura europeia, o preço de um bem é aferido pelo seu valor objectivo, independentemente do ordenado da pessoa que o adquire.

Era perito a pregar partidas e, num sítio onde era difícil encontrar um espelho, muito menos dois, como podíamos mirar a parte da nuca? Era aí que ele, às vezes, engenhava as suas maldades, deixando uma ou outra escada. A um, que veio de férias ao fim de dezasseis meses, desactualizado em relação à evolução da moda, fez-lhe um corte tão apalhaçado que até a namorada dele galhofou.

O Simão, no seu trabalho de cantineiro, passava a vida a servir cervejas, latas de coca-cola e whisky no bar comum aos oficiais e sargentos, onde comprávamos também tabaco, pilhas para o rádio e pouco mais. Tinha ainda um outro serviço que ele desempenhava com tanta habilidade como se estivesse a cortar cabelo. Por volta do meio dia, era sua atribuição, limpar a mesa, usada para algum jogo de sueca ou crapô, para agora nela ser servido o almoço ao Capitão e a mais três ou quatro Alferes. Não parava de sorrir o Simão enquanto, metodicamente, esticava as pontas da toalha e de seguida a enfeitava com pratos, copos e talheres que, um por um, abrilhantava com um paninho branco que trazia sempre consigo.

Depois vinha o melhor da peça, provavelmente o que lhe alimentava aquele permanente sorriso que se lhe não descolava do rosto magro e esbranquiçado, enquanto se ocupava daquele trabalho rotineiro de preparar a mesa e servir o almoço aos oficiais. Um deles, o Alferes Estuques, tinha embirrado com dois ou três militares, porque ao passar na árvore dos passarinhos, a nossa mítica árvore, a maior da tabanca, tinha-os repreendido por achar que os mesmos não o teriam cumprimentado de acordo com as normas rígidas da corporação militar. Ora, desse grupo de incumpridores fazia parte o Simão deste conto verdadeiro, que sorria enquanto pensava como havia de trambicar o exigente Estuques.

Para além de instalar a mesa para a refeição, ele tinha que trazer, da cozinha, uma travessa onde coubessem as quatro ou cinco refeições e competia-lhe servir o prato de cada um dos oficiais. Nos dias de massa ou arroz com rodelas de chouriço ou salsichas não tinha o Simão modo de prejudicar o Estuques, mas quando a nossa companhia comprava uma vaca, o sorriso do Simão era bem mais explícito, algumas vezes gargalhava até com os cozinheiros dentro da cozinha. Era lá que ele preparava, com a colaboração de um cozinheiro, a nicada. Trazia os bifes, de diferentes tamanhos, sobrepostos, mas na hora de servir os oficiais havia de arranjar maneira de o mais pequeno calhar sempre ao Estuques.

Aquilo já era de mais, ao ponto de o Alferes se queixar ao Capitão. Chamado à atenção sempre se defendeu o Simão que não o fazia por mal, que assim acontecia por mero acaso, mas que se iria esmerar, de futuro, de modo a que o Estuques não tivesse mais razão de queixa. O Simão havia de sair bem daquela situação, o Estuques é que continuou prejudicado, porque, em vez de lhe calhar o bife mais pequeno, ninguém sabe porquê, passou a ser para ele sempre o mais rijo.

Quando, na chegada a Lisboa, se despediram, por entre risos e abraços, o Estuques disse-lhe isto ou algo pior :
- Tu lixaste-me!

O Simão, senhor Aníbal da Costa Santos Simão, é hoje proprietário da Barbearia Barber Shop Elvis Museu, em Oliveira de Azeméis, onde continua a trabalhar, mas já não prega partidas aos clientes.
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Nota do editor

Último poste da série de 25 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20902: 16 anos a blogar (4): Os dias de Abril, mês “de águas mil”, de Constituições, de Revoltas e de Revoluções, que mudaram Portugal (1) (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav)

Guiné 61/74 - P20911: Notas de leitura (1281): Conversa entre homólogos na Guiné-Bissau: uma história hilariante (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Março de 2017:

Queridos amigos,

Retive este episódio com enorme satisfação, atendendo a que foi escrito por um cavalheiro, disso estou seguro e também passo a contar a história.
O Ministro Valente de Oliveira, que tinha como Secretário de Estado do Ambiente o Engenheiro Carlos Pimenta, em 1977, deu-me indicação, através da sua Secretária, que me recebia no dia tal à hora X, no Terreiro do Paço. Carlos Pimenta já me advertira que propusera o meu nome para coordenador de um grupo interministerial de trabalho que tinha um nome pomposo: para combater a degradação ambiental visual.

Documentei-me, achei a tarefa aliciante, e no dia tal à hora X, um quarto de hora antes, subi aquelas escadarias medonhas e fui metido numa sala com jarrões chineses e uma mesa Luís XV. Escassos minutos depois da hora marcada, abre-se a porta e aparece o Ministro que me conduz afavelmente para o seu gabinete e me pergunta se quero chá ou café, ele próprio iria preparar. Olhei-o atónito, era a primeira vez que um ministro agia com tal deferência comigo. Discutimos qualidades de chá, abriram-se e fecharam-se caixas, escolhi um chá russo, o Ministro preparou as coisas, ao mesmo tempo ia conversando comigo sobre o que se esperava deste grupo interministerial de trabalho.

A tudo disse que sim, garanti-lhe que seis meses depois teria relatório, ele disse-me que já sabia que era adepto da prontidão. Houve mais cavaqueio, o Ministro levantou-se, abriu a porta e conduziu-me ao topo da escadaria, curvámos a cabeça, exprimi-lhe a minha satisfação em poder trabalhar com alguém com tais primores de caráter. O Ministro agradeceu. Fiquei seu admirador.

Mais tarde, mostrou-se apreciador do trabalho que tínhamos desenvolvido, uma equipa de luxo. Mas é assunto que não cabe aqui.

Um abraço do
Mário


Conversa entre homólogos na Guiné-Bissau: uma história hilariante

Beja Santos

Encontrei no livro “A Engenharia Militar na Guiné”, coordenado por Alberto da Maia e Costa, edição da Direção de Infraestruturas do Exército, Julho de 2014, de que já aqui se fez recensão,[1] um testemunho bem divertido assinado pelo Tenente Miliciano de Engenharia Luís Valente de Oliveira, que, como é de todos sabido, desempenhou por muitos anos cargos ministeriais.

Diz Valente de Oliveira que integrou a primeira Companhia de Engenharia que foi para a Guiné, a Companhia Mista de Engenharia n.º 447, em 1963.

A parte mais expressiva do trabalho que lhes coube teve a ver com a construção de quartéis de todo o tipo, mas também melhorias em instalações já existentes, a fortificação de unidades, e o abastecimento de água potável.

Estavam instalados no antigo aeródromo de Brá:

“Havia um hangar que servia para quase tudo, desde arrecadação de material a caserna. A messe dos oficiais era uma tenda de lona, e a messe dos sargentos era uma antiga construção de apoio à base aérea. Esperando-se a chegada de mais companhias, foi decidido começar a construir um novo quartel em Brá. Foi-me atribuída a coordenação de apoio a todo o setor Norte da Guiné e a construção dos aquartelamentos de Brá”.

Tudo se processou como abreviadamente se passa a contar. O Engenheiro Valente de Oliveira pediu ao Capitão Perry da Câmara que lhe enviasse livros respeitantes à construção em países tropicais húmidos, a necessidade de inventar e improvisar era enorme, como ele explica:

“A estrutura de base dos diversos pavilhões era metálica, pré-fabricada pela Mague e suscetível de um aproveitamento bastante elástico. Mas, tirando a cobertura tudo o resto teve que ser inventado, de preferência com recurso aos meios de que dispúnhamos no local: madeira e blocos de cimento usando laterite desagradada como inerte. As boas regras recomendavam que as construções fossem orientadas transversalmente às correntes de ar dominantes, que as fachadas ficassem à sombra, que se assegurasse uma ventilação permanente, a todos os níveis, que o pavimento fosse relativamente elevado em relação ao terreno circundante. Assim, fizemos, em toda a Guiné, dezenas de pavilhões para casernas ou refeitórios, para gabinetes ou enfermarias… Só os balneários e as arrecadações escapavam a estas regras estritas, os primeiros porque eram muito abertos, os segundos porque tinham, mesmo, de ser fechados. Todas as aberturas eram providas com rede mosquiteira”.

Eng.º Luís Valente de Oliveira
Agora vem a história contada com fino humor, como é timbre do Engenheiro Valente de Oliveira:

“Sucede que, passados 30 anos, exercendo eu funções governamentais, fui convidado pelo meu homólogo do Governo da Guiné para fazer uma visita oficial ao seu país. É costume eles chamarem-nos mesmo de homólogos: o homólogo quer café ou chá? O que dá um colorido especial às conversas.

Em Bissau não há muito para fazer, de modo que eu visitei praticamente todos os membros do governo, com quem mantive agradáveis trocas de impressões. Eu conhecia bem o território e tinha lido muito o que, sobre ele, haviam escrito personalidades ilustres como o Almirante Sarmento Rodrigues, os Comandantes Teixeira da Mota e Peixoto Correia, António Carreira e alguns outros. Isso permitia que a conversa fosse viva e lhes interessasse, nunca nenhum deles tendo perguntado porque é que eu estava tão bem informado acerca dos problemas da Guiné. Ou achavam que eu me tinha preparado para a visita ou, então, que era natural que os portugueses soubessem bastante acerca do seu país.

Assim, desde o Primeiro-Ministro e do Ministro dos Negócios Estrangeiros, sempre acompanhado do meu homólogo, visitei cerca de uma dezena de membros do Governo.

Em determinada altura, fomos ver o ministro das Obras Públicas. Qual não é o meu espanto quando verifiquei que o ministério estava instalado no antigo Quartel de Engenharia e que o gabinete do Ministro era um dos espaços onde eu e os outros camaradas tínhamos tido as nossas secretárias.
Verifiquei que as aberturas guarnecidas com persianas que asseguravam a ventilação tinham sido tapadas para encaixar um aparelho de ar-condicionado que não trabalhava. O calor era insuportável mesmo tendo-nos posto em mangas de camisa. Falámos um pouco de tudo, nomeadamente das estradas que estavam em reparação ou construção, das pontes projetadas e dos barcos que ainda asseguravam a passagem dos rios em certos pontos que eu bem conhecia. Em fim de conversa desabafei: 'Senhor Ministro! O seu gabinete é muito quente!'...Logo veio a resposta esperada: ‘Montou-se o ar-condicionado mas ele avariou, não havendo ninguém na Guiné que o saiba reparar, de modo que eu sofro este calor que não abranda, mesmo com a porta do gabinete aberta!’.

Vi que todas as aberturas que asseguravam a ventilação transversal do edifício tinham sido cuidadosamente tapadas com argamassa, tendo permanecido, contudo, os elementos de madeiras originais.

Cuidadosamente perguntei-lhe se ele não tinha pensado em voltar a assegurar o funcionamento original do edifício retirando o aparelho avariado e a argamassa, aliás posta sem grande cuidado. Olhou para mim intrigado: ‘Acha que melhora?’. ‘Tenho a certeza’, foi a resposta. ‘Como é que sabe?’. ‘Foi eu que fiz!’.

Nunca esquecerei a cara do ilustre ministro. Esbugalhou os olhos e, como sucede frequentemente em África, tudo acabou com uma enorme gargalhada e um grande abraço de amigos para sempre".

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Notas do editor

[1] - Vd. poste de 16 DE MARÇO DE 2020 > Guiné 61/74 - P20740: Notas de leitura (1273): “A Engenharia Militar na Guiné, O Batalhão de Engenharia”, Exército, Direção de Infraestruturas, Julho de 2014 (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 20 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20880: Notas de leitura (1280): “O jornalismo português e a guerra colonial”, com organização de Sílvia Torres, Guerra e Paz Editores, 2016 (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20910: Agenda cultural (747): "Voando sobre um ninho de Strelas", de António Martins de Matos: 2ª edição, revista e aumentada (Lisboa, Sítio do Livro, 2020, 456 pp.)


Capa e contracapa da livro do António Martins de Matos, agora em 2ª edição


1.  Mensagem de António Martins de Matos [, ex-ten pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74; ten gen pilav ref António Martins de Matos, membro da nossa Tabanca Grande (desde 2008, com uma centena de referências no nosso blogue), autor do livro de memórias "Voando sobre um Ninho de Strelas" (1ª edição, Lisboa: BooksFactory, 2018, 375.pp.)] [, foto atual à esquerda]:
 
Sata: 12/3/2020

Assunto: Livro "Voando sobre um ninho de STRELAs", 2^edição

Caro amigo

A 2ª edição do meu “Voando sobre um ninho de STRELAs” acabou de ser publicada.

Uma nova Editora, dois novos capítulos e outros dois anexos, 456 páginas.

Está desde hoje à venda no site da nova Editora, “ O Sitio do Livro”, “Edições Exlibris” e igualmente no ´”Pássaro de Ferro”

Cumprimentos

AMM

2. Sinopse:

"Voando sobre um ninho de STRELAs é acima de tudo uma carta de amor dirigida a todos os militares mortos em combate no Ultramar, bem como a todos os pilotos-aviadores da Força Aérea Portuguesa: aos que voaram pelos mesmos céus a evitar os mísseis Strela; aos que voam hoje em missões-patrulha da NATO, espalhados pelo mundo inteiro; e aos futuros “periquitos” que, talvez ingenuamente, ainda sonham com o interior de um avião de combate."

Clicr aqui para ver ou adquirir o livro e conhecer o seu autor: www.sitiodolivro.pt/Voando-sobre-um-ninho-de-STRELAs

Guiné 61/74 – P20909 Memórias de Gabú (José Saúde) (92): “Um Ranger na Guerra Colonial Guiné-Bissau 1973/74” (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.


Memórias de Gabu (Antiga Nova Lamego)

“Um Ranger na Guerra Colonial Guiné-Bissau 1973/74” 

Camaradas,

Neste constante deambular pelas escarpas da vida, sendo que a minha existência terrena é já credora de uma basta longevidade, encontro-me barricado numa trincheira avançada onde o silêncio impera por via de um inimigo invisível – Covid-19 – que traz incertezas quanto ao futuro e, sobretudo, pavor pela pandemia que por ora nos coube em sorte e que se alastra mundialmente.

Camaradas, fomos antigos combatentes na Guiné, permanecemos entrincheirados nos mais diversos pontos territoriais guineenses por culpa de um conflito armado, conhecemos situações caóticas, vivemos momentos de dor, de angústia, enfim, um rol de condições que nós, combatentes viventes, ainda usufruímos em contar.

Nesta minha última obra inseri um texto em que procurei conhecer um pouco da razão existencial sobre Gabu e da sua etnia fula que por lá prolifera. A pesquisa efetuada veio também ao encontro de um facto que sabia, isto é, a minoria mandiga por lá existente.

Deixo-vos, pois, com mais uma pequena leitura para que possamos “matar” o tempo num tempo que pressupõem uma desejada tranquilidade.
   


 Antiga Nova Lamego - Lavadeira fula

Denominada como Nova Lamego, sobretudo ao longo da guerra colonial, Gabu é uma região cujas fronteiras confinam a norte com o Senegal, a leste e a sul com as regiões de Tombali e a oeste com Bafatá. 

Recorrendo a dados históricos contemplados na Wikipédia, enciclopédia livre, Gabu foi a capital do Império Kaabu, um reino Mandinga que existiu entre os anos de 1537 e 1867 e que se chamava Senegâmbia. Antes, tinha sido uma província do Império Mali. No século XIX a etnia fula impôs a sua supremacia na região e colocou ponto final no domínio de Kaabu.

Gabu é, igualmente, a pátria do chão fula (79,6%), existindo ainda a etnia mandiga (14,2%) que se espalha por toda a zona mas numa menor escala. Foi-me dado a oportunidade em conhecer alguns dos princípios éticos de uma população que prima pela honra de uma herança que assumem como um indeclinável direito.

No plano territorial Gabu possui uma área de 9.150 kms2 e tinha no ano de 2004 uma população que se estimava em 178.318 almas, sendo, por isso, considerada uma das maiores, senão a maior, das regiões do país.

Introduzo como credível uma nota de rodapé que após a independência do país Gabu recuperou o seu nome tradicional existindo, atualmente, um pequeno núcleo urbano de inspiração colonial.

Detentora de clima tropical, quente e húmido, a região de Gabu é composta por uma população em que a doutrina praticada aponta como alvo principal a religião muçulmana (77,1%).

As temperaturas rondam normalmente os 30/33 graus durante o dia e os 18/23 à noite. As estações anuais definem-se como as das chuvas que vai de maio a novembro e a de seca de dezembro a abril. Dezembro e janeiro são considerados os mais frescos. Por outro lado a economia assenta no comércio, agricultura e pecuária.

Os usos e costumes das gentes de Gabu derrapam para primórdios éticos onde é visível uma hierarquia humana que não abdica do erário transmitido de gerações para gerações.

Redijo este tema sobre um “estágio” obrigatório nessa zona e na qual me foi proporcionado observar algo mais ao longo da minha comissão em solo guineense, embora encurtada devido à Revolução de Abril de 1974, uma vez que fui um dos cerca de 45 mil militares dos três ramos das Forças Armadas – Exército, Força Aérea e Marinha – quando por lá prestava serviço. Conheci, portanto, a guerra e a paz e um pouco das vivências tradicionais das suas gentes.

Aliás, num trivial conhecimento com os nativos que muito me estimulou, pessoas simples que viviam no interior de um adensado mato e entre as duas frentes da guerra, usufrui da possibilidade em conhecer alguns dos seus expeditos hábitos, assim como as memórias que nós combatentes incessantemente recordaremos.

Vamos pois ao encontro de conteúdos passados em pleno palco da guerrilha.

Um abraço, camaradas.
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523


Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. também o último poste do autor em: 

Guiné 61/74 - P20908: Parabéns a você (1793): Cor Inf DFA Ref Hugo Guerra, ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 55 (Guiné, 1968/70) e Humberto Nunes, ex-Alf Mil Art, CMDT do 23.º Pel Art (Guiné, 1972/74)


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Nota do editor

Último poste da série de de 24 de Abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20894: Parabéns a você (1792): David Guimarães, ex-Fur Mil Art MA da CART 2716 (Guiné, 1970/72)

domingo, 26 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20907: Bom dia, desde Bissau (Patrício Ribeiro) (14): O 25 de Abril passado em Farim, com crocodilos à mistura no rio Cacheu..., mas levando o luxo (!) da água e da luz ao hospital local... E, hoje, almocei ostras na grelha!



Guiné-Bissau > Bissau > 26 de abril de 2020 > Hoje há ostras na morança do Patrício Ribeiro... Acabou de comprar à porta um balde de 20 litros... e mandou-nos um "cherimho"... só para fazer inveja!... (São bem merecidas: afinal, ele é capaz de ser um dos últimos malucos "que gosta do que faz".... e que escolheu viver na Guiné-Bissau!)


Portugal > Lisboa > Praça do Comércio > 25 de abril de 2020 > O meu neto, de 3 anos, a quem eu pedi para ir ver se ainda lá estavam os blindados...


Guiné- Bissau > Região do Oio > Farim > Hospital > 25 de abril de 2020 > Uma sessão de formação: o Patrício Ribeiro, ao centro, de máscara... (É que a Covid-19 também já lá chegou...)


Guiné- Bissau > Região do Oio > Farim > Hospital > 25 de abril de 2020 >   À entrada do hospital há um cartaz a explicar "o que é o corononavírus" (em português, o que poucos entenderão: primeiro, porque não sabem ler; segundo, porque não falam português...).


Guiné- Bissau > Região do Oio > Farim > Hospital > 25 de abril de 2020 > O milagre da vida: uma criança que acabara de nascer, na véspera, em 24 de abril...


Guiné- Bissau > Região do Oio > Farim >  24 de abril de 2020 > Rua


Guiné- Bissau > Região do Oio > Farim > 25 de abril de 2020 > Rua (que parece estar a ser alcatroada...)


Guiné- Bissau > Região do Oio > Farim >  25 de abril de 2020 > Praça central com monumento do tempo colonial...


Guiné- Bissau > Região do Oio > Farim > 25 de abril de 2020 > Praça central, com monumento do tempo colonial... O Patrício Ribeiro, de costas...


Guiné- Bissau > Região do Oio > Farim > 25 de abril de 2020 > Monumento que resistiu ao "camartelo revolucionário", comemorativo do 5.º centenário da morte do Infante D. Henrique (1460-1960): ainda dá para perceber a estrofe de Camões. "Por mares nunca dantes navegados"... As letras e os algarismos, em metal, foram retirados (muito provavelmente roubados).


Guiné- Bissau > Região do Oio > Farim > 25 de abril de 2020 > Porto fluvial, na margem direita do rio Cacheu... E até por aqui há crocodilos.


Guiné- Bissau > Região do Oio > Farim >  25 de abril de 2020 > Porto fluvial.


Guiné- Bissau > Região do Oio > Farim > 25 de abril de 2020 > Cambança do rio Cacheu: em primeiro plano, o Patrício Ribeiro...

Fotos (e legendas): © Patrício Ribeiro (2020) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do nosso amigo e camarada Patrício Ribeiro, um português, natural de Águeda, criado e casado em Angola, Huambo, ex-fuzileiro em Angola durante a guerra colonial, a viver na Guiné-Bissau desde meados dos anos 80 do séc. passado, fundador, sócio-gerente e director técnico da firma Impar, Lda.; tem mais de 90 referências no nosso blogue]

Data: 26 de abril de 2020 12:59
Assunto: 1- Farim e o 25 de Abril

Bissau / Farim, 25 Abril de 2020

Luís

Junto mais umas fotos; Farim, Mansoa e Lisboa, nesta data de Abril e da nossa quarentena.

Fotos dos nossos passeios… pelo interior da Guiné, muitos dos que as vão ver, passaram por aqui, há uns anitos, o “tempo passa rápido”.

Atravessamos o Rio Cacheu para chegar a Farim, como tantas vezes o temos feito, de piroga. A jangada mais uma vez estava avariada, em reparação, do lado de Farim (tenho quase sempre este azar)

Fomos entregar os nossos trabalhos: fornecimento de água corrente e iluminação, 24h ao dia, com energia fotovoltaica. Estes luxos… já não existiam há anos no Hospital.

A entrega foi da parte da ONG IMVF de Portugal [, o Instituto Marquês de Valle Flôr], à direcção do Hospital e Direcção Regional de Saúde.

O Hospital de Mansoa, também passou a beneficiar destes luxos, agora também já tem água na torneira 24h ao dia. Instalamos duas bombas fotovoltaicas (envio foto).

Desta vez, esta data tão simbólica, foi passada em Farim, as outras trinta e cinco anteriores, foram todas passadas na Guiné. A primeira em Luanda [, em 25 de abril de 1974,]  a ouvir a rádio BBC, “é a nossa vida” enquanto nos deixarem.

Como eu queria saber o que se passava em Lisboa, mandei o meu neto com 3 anos, à Praça do Comercio, para ele ver se ainda lá estavam os blindados… O que ele me disse, como podes (ver na foto), é que... não estava lá ninguém… (Nota: Ele já cumpriu a Quarentena, já saiu de Bissau há 15 dias.)

Luís,

Como diz o nosso amigo Rosinha (cheio de saudades), está na hora de eu ir grelhar um balde de 20 litros, cheio de ostras, que comprei há pouco à porta.

Se as fotos que te envio forem muitas, lança algumas à lama do rio Cacheu, que os crocodilos que lá andam, mesmo no porto de Farim, agradecem. Fica ao teu critério, todas levam legenda.

Um bom domingo para todos, e riam-se... de um maluco, que gosta do que faz.

Abraço
Patrício Ribeiro
impar_bissau@hotmail.com


Guiné- Bissau > Região do Oio > Mansoa >  Hospital > 24 de abril de 2020 > Painel fotovoltaico.
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Guiné 61/74 - P20906: Blogues da nossa blogosfera (129): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (44): Palavras e poesia


Blogue Jardim das Delícias, do Dr. Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos esta publicação da sua autoria.


Abril abriu muitas portas, por uma delas passou o Serviço Nacional de Saúde que, justamente, se enaltece no dia da Liberdade. Nesta data histórica, a Direção do Sindicato dos Médicos do Norte realça a importância de um Serviço Público de Saúde universal e inclusivo, sem o qual não seria possível o combate sem tréguas à epidemia que nos assalta.

A Direcção do SMN


HOMENAGEM

Adão Cruz

Sou médico há 56 anos. Lembro-me de sentir muitas vezes na minha vida profissional, vida que procurei levar o mais eticamente, o mais competentemente, o mais dedicadamente e conscientemente possível, desilusões e mesmo algum sentimento de desonra em pertencer à classe médica. Tudo isto, por comportamentos desviantes dentro da própria classe, dentro da sua especial missão de vida, que feriam o nosso principal tesouro, a dignidade e o profundo sentimento humanista.

Sempre tive e ainda tenho muitos amigos das mais diversas profissões, desde trabalhadores mais humildes até cientistas, empresários, políticos e banqueiros. A todos, de formas obviamente diferentes, nunca os deixei de homenagear com a minha leal e sincera amizade, e com o reconhecimento e admiração por muitos exemplos das suas vidas. Porém, esta pandemia que hoje está a roer a nossa existência individual, familiar e social criou em mim, no meio de todos os males, sentimentos que eu nunca havia experimentado de forma tão emocionada e profunda. Por isso a minha homenagem, nesta altura, a todos os profissionais de todas as áreas, amigos e desconhecidos, não pode caber dentro de limites, pois em situação tão complexa, tão intrincada e tão interactiva, é muito difícil separar os mais importantes dos menos importantes.

Nesta infelicidade que nos bateu à porta, há, no entanto, uma multidão de seres humanos que me levaram, indiscutivelmente, à reconquista de uma honra especial em pertencer à sua classe, a classe médica e o Serviço Nacional de Saúde. Um Serviço Nacional de Saúde, fruto do glorioso Vinte e Cinco de Abril, prestes a ser celebrado, um Serviço Nacional de Saúde que abrange políticos, autoridades sanitárias, administrativos, médicos, enfermeiros, auxiliares e pessoal mais anónimo, todos imprescindíveis ao seu funcionamento e ao seu mais sólido e nobre futuro. A todos a minha homenagem.

Fiz cuidados intensivos há largos anos, quando as unidades de cuidados intensivos começavam a aparecer, de forma muito primária, comparadas com as de hoje. Mesmo assim, senti bem fundo a responsabilidade e a abnegação que elas exigiam. Por isso, não me levem a mal que eu deixe aqui uma homenagem muito especial, acima de todas as homenagens, ao trabalho de todo o pessoal que de uma forma heróica dedica as suas vidas, nestes dias tão negros, à prática intensivista, em Portugal e fora de Portugal. São para mim, sem margem de dúvidas, os Heróis da actualidade, aos quais cada país, depois da vitória, deveria erguer o mais majestoso e merecido monumento.

20.04.2020
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20874: Blogues da nossa blogosfera (127): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (43): Palavras e poesia

Guiné 61/74 - P20905: Blogpoesia (674): "Sobre o Vinte e Cinco de Abril", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) este poema sobre o 25 de Abril:


Sobre o Vinte e Cinco de Abril

Receio bem que as gerações nascidas depois do vinte e cinco de Abril nunca cheguem a dissipar as névoas, tendenciosas que toldam, intencionalmente, esse acontecimento.
O Cavalo de Troia que o trouxe foi aquele minúsculo movimento de capitães, de carreira, por uma causa muito particular e interesseira, a de se libertarem da sina de se verem a arriscar a vida em comissões sucessivas a caminho de África.
Eu residia com minha família, de três filhos, em Almada e trabalhava em Lisboa.
Assistimos a tudo na cratera do vulcão.
Depois de regressar da Guiné e de ter tirado a ferros, o curso de Direito.
Rapidamente o movimento dos capitães foi subalternizado pelo movimento marxista internacional.
Viu nele a oportunidade de cravar aqui em Portugal uma outra versão da experiência cubana.
Vi chegar a Santa Apolónia, dum dia para outro, o líder Álvaro Cunhal.
Vindo de Moscovo.
Mário Soares. De Londres ou Paris.
Cada qual com interesses políticos antagónicos.
Cunhal, pró-soviético, colectivista;
Soares, pró Ocidente, capitalista. Do livre mercado e da democracia.
Extremaram-se as posições. Em movimentos contrários.
Um verdadeiro tsunami político-social.
Aceleradamente se desencadearam saneamentos das cátedras e das altas patentes das estruturas militares.
Uma onda de ocupações selvagens, das empresas mais poderosas; a reforma agrária selvagem irrompeu devastadora.
Os canais da TV e da Rádio foram ocupados.
Anunciou-se a perseguição religiosa.
As universidades pararam. Desertas de docentes capazes.
O MRPP insolente, escavacou num instante uma série dessas faculdades.
Quem estava no fim dos seus cursos superiores ficou perdido, sem saber o que fazer.
O País ficou partido ao meio: A fronteira, guardada a fogo, era Rio Maior.
Estancaram os mantimentos para Lisboa.
Havia que secar as praças e mercados. Vi o da Ribeira sem nada nas bancas.
Houve famílias com miúdos pequenos, que fugiram para a província.
Eu fui um deles.
Tentei emigrar para o Canadá e os serviços da política não me deixaram.
Foi um período muito turbulento que se implantou.
Foi o Vinte e Cinco de Novembro, com Ramalho Eanes e um grupo patriota de militares conseguiu clarear e inverter a supremacia comunista.
A partir da sua vitória, muito lentamente o País foi voltando ao normal.
Outro facto político de tremenda importância foi a chamada descolonização.
Depois de 13 anos de sacrifício não houve família que não visse partir para a guerra de África algum dos filhos.
Quantos por lá ficaram para sempre.
E é de ressaltar que a guerra do ultramar estava práticamente sobre controle.
Em Angola, Moçambique e na Guiné.
Havia prosperidade e progresso crescentes. Reais. Sobretudo nas duas primeiras.
O Governo estava a estudar instituir uma União ou Confederação das províncias ultramarinas com a metrópole.
As potencialidades desta fusão de interesses, respeitadores dos interesses nacionais, era enormes.
Mas, a gula dos países europeus ocidentais ficou embriagada com a hipótese de entrarem gratuitamente em África, para lhe sugarem as riquezas.
Rapidamente, o poder políticos passou para as mãos glutonas desse países oportunistas.
As populações "brancas" residentes e que já viviam bem, viram-se abandonadas pelas nossas forças militares.
E, depois, foi a debandada. Aquele movimento escabroso de aviões em cortejo a despejarem retornados com seus caixotes. O cais, desde a Ribeira até lá longe, ficaram a rebentar com tanto caixote.
Os retornados que trabalhavam na banca e nas funções públicas entraram, e bem, para os quadros. Entupindo por dezenas de anos as carreiras de quem cá estava.
Desenvolveu-se um certo confronto e hostilidade entre ambas as partes.
De realçar também que o Governo nacional estava a desenvolver uma reforma administrativa profunda.
A legislação fundamental, Constituição incluída, foram revistas em pontos muito importantes. Implantando uma igualdade de cidadania real.
Entre homens e mulheres. Em todos os sentidos.
Tudo ficou paralizado e sujeito ao vendaval das facções políticas.
Esta visão, tudo isto, foi ocultado e desvirtuado às novas gerações.
Creio bem que quem hoje tem para baixo de cinquenta anos já não vai ter tempo de dissipar as nuvens de desinformação que lhes meteram na cabeça...

Mafra, 25 de Abril de 2020
10h23m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de Abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20873: Blogpoesia (673): "Grande buraco", "Está posta a mesa" e "Seguramente, vem...", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P20904: (De)Caras (157): O comerciante Mário Soares, de Pirada, quem foi, afinal? Um "agente duplo"? - Parte VI: Uma foto intrigante, com uma reprodução da "Guernica", de Picasso, tirada na sala de jantar, pelo alf mil médico Manuel Valente Fernandes, CCS / BCAV 8323 (1973/74)


Guiné > Região de Gabu > Pirada > c. 1973/74 > BCAV 8323 (Pirada, 1973/74) > "Residência do célebre sr. Mário Soares, um dos dois comerciantes instalados em Pirada em 1973. Três dos alferes do Batalhão: Transmissões, Tesoureiro e Médico (eu, à direita)"...

O nosso camarada C. Martins, que também é médico, em comentário de 19/10/2012,  foi o primeiro a chamar a atenção para a reprodução que está na parede: " Mesa farta, contraste volumétrico entre dois comensais, e o quadro de parede é tão só a "Guernica" de Picasso e por fim são servidos por um 'empregado'  de mesa a preceito. Para os padrões da Guiné..é obra. Ganda sortudos" (*)

Foto (e legenda): © Manuel Valente Fernandes (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O autor da foto, o  Manuel Valente Fernandes, ex-alf mil médico da CCS/BCAV 8323 (Pirada, 1973//4) , é membro da nossa Tabanca Grande desde 17/10/2012.



Pirada, abril de 1964, o Mário Soares, ao centro,ladeado
pelo  alf mil António Pinto, `sua direuta; e o alf méd

médico (e  intérprete do fado de Coimbra) Luiz Goes
 (1933-2012), à sua esquerda. 
Foto: António Pinto (2007)

Na foto, acima,  aparece o Demba, o criado, todo bem "afiambrado, já citado em 1964&65, pelo Carlos Geraldo... O anfitrião,  comerciante Mário Soares, deve ter sido o fotógrafo...

Através do Carlos Geraldo (**) , que o conheceu e privou com ele, a partir de 15/10/1964, sabemos que o Mário [Rodrigues] Soares era um bom copo e um bom garfo, sabia receber bem, adorava receber na sua casa os oficiais milicianos (e, eventualmente, capitães e oficiais superiores)  era Lisboeta, teria ido para a Guiné em finais dos anos 50, princípio dos anos 60, por causa de "problemas financeiros" (sic), tinha esposa, duas filhas e um filho, adolescentes (em 1965) (um deles, o rapaz, a estudar em Lisboa), era um civil com cultura acima da média, tinha gira-discos e discos em casa, além de um máquina de projetar cinema (, nºão sabemos de 8 0u 16 mm),,, E, claro, um gerador. 

Intrigante, porque deslocada, é esta "reprodução" da Guernica, de Pissau, um quadro gigantesco, a óleo, pintado em 1937, que se tornou um ícone da paz e da denúncai da guerra e do genocídio...

O Mário Soares, c. 1973/74.
 Foto de Manuel  Velente Fernandes
"Agente duplo", informador tanto da PIDE/DGS como do PAIGC ?... Não temos elementos conclusivos...

Curiosamente, na sua apresentação, o Manuel Valente Fernandes não qualquer referência a um eventual protagonismo do Mário Soares no processo de retração do dispositivo militar e na transferência do aquartelento para o PAIGC, em agosto de 1974... Nem sabemos se ele lá estava nessa altura. O médico nem sequer cita o seu nome, a propósito desses acontecimentos

(...) Obviamente tive vivências semelhantes a qualquer dos camaradas que estiveram neste TO. Do que me ficou ressalto:

(i) A experiência da intensa solidariedade que se gerou entre os camaradas que vivenciaram juntos o risco de vida de cada um e a permanente entreajuda, isto durante largos períodos. Materializa-se actualmente na emoção dos encontros de antigos camaradas (o meu batalhão mantém estes encontros).
(ii)  As perturbações na saúde mental de tantos camaradas. Tive a experiência de dois dos nossos que manifestaram psicoses agudas (um militar da CCS e outro da 1ª Companhia, em Bajocunda), ambos felizmente com bom prognóstico após a evacuação.

(iii) A vivência da paz: aqueles almoços entre membros do batalhão e membros do PAIGC, no período que mediou entre o 25 abril e 25 agosto 1974 (regresso a Bissau), durante o período de retração do dispositivo. Aquele convívio com os ex-inimigos não se esquece, incluindo as conversas respeitantes à ideologia política, um tema então tão apetecido pelos jovens milicianos portugueses. (...) (*)



Mário Soares > Pirada >
14/2/1974. Foto: António
Rodrigues  (2015)
2. Será que o Mário Soares foi mesmo preso, a seguir ao 25 de Abril, de acordo com a informação do médico José Pratas ? (**P) 

Não tenho aqui, em meu poder,  o livro, "Senhor médico, nosso alferes: Guiné, os anos de guerra" (Lisboa, By the Book, 2014). O Beja Santos, que  fez aqui, no blogue,  um  recensão dessa obra,  escreveu o seguinte:
 
(...) "Em Pirada, tinha um agente da PIDE na vizinhança, bom para seviciar e intimidar, o Carvalho, substituído pelo senhor Pereira que tinha farroncas mas com as flagelações termia como varas verdes.

"Também em Pirada vivia Mário Soares, com quem Pratas conviveu, pode aperceber-se como o Soares intermediava entre o PAIGC e as autoridades portuguesas, houve encontros secretos à mesa da sua sala de jantar ou no respaldo das cadeiras de lona. Tinha acesso privilegiado às informações da PIDE, ascendente junto das redes de informadores locais, geria com astúcia o assédio e a adulação das autoridades locais. Reflete sobre o drama deste protagonista entre dois campos em confronto".

E cita o autor, José Pratas:

“O tempo corria em seu desfavor, porque a guerra no terreno se perdia em cada dia que passava e era facilmente previsível a derrota da teimosia de Lisboa. No seu relacionamento com a tropa, este europeu, porventura o branco mais africano que conheci, só a muito custo conseguia refrear os impulsos beligerantes das chefias militares, sedentas de ação, indisponíveis, por dever de ofício, para tolerar diplomacias paralelas de que muitas vezes é feita uma guerra de guerrilha”.

"E veio a independência e mais problemas para Mário Rodrigues Soares", de acordo com a versão do José Pratas:

(...) “Poucos dias depois seria preso e enviado para Bissau. Ter-lhe-á valido a intervenção de Alpoim Calvão, que intercedendo a tempo junto do novo dono do Palácio do Governo, o terá arredado da mira das armas de um pelotão de fuzilamento. 

Deportado, chegou a Lisboa com a roupa suja que ainda trazia vestida, para ser detido de imediato no aeroporto da Portela pelo COPCON e arbitrariamente preso em Caxias sem culpa formada. Libertado sem julgamento, ultrapassou tranquilo todas as prepotências e perdoou com indiferença aos mandantes e funcionários do PREC”. (...) (***)


3. A historiadora Maria José Tíscar, no seu livro "A PIDE no Xadrez Africano: Conversas com o Inspector Fragoso Allas"( Lisboa, Edições Colibri, 2017, pp. 191/192), revela a identidade de dois comerciantes portugueses, que terão sido "informadores da PIDE" na Guiné, um deles o comerciante Rodrigo José Fernandes Rendeiro, que alguns de nós conhecemos em Bambadinca. 

Das conversas da autora com o antigo inspetor Fragoso Allas, vem à baila um outro nome,  o do Mário Soares, estabelecido em Pirada,

Contrariamente ao Rendeiro, que terá tido problemas logo a seguir ao 25 de Abril, pela sua ligação à PIDE/DGS, o Mário Soares teria ficado na Guiné-Bissau, após a  independência. Mas terá "caído em desgraça" e sido expulso do país, um ano e tal depois, em novembro de 1975.(****)

O inspector da PIDE/DGS, Fragoso Allas, entrevistado pela Maria José Tíscar, não deixa dúvida sobre a "duplicidade" do papel do Mário Soares que, legal e formalmente, nunca foi agente da polícia política. Cito o Mário Beja Santos (***);

(...) "A sua [de Fragoso Allas] grande preocupação era montar uma rede de informadores na Guiné, depois de ter avaliado a situação, reorganizou o gabinete do centro de cifra, seguiu-se a rede de informadores, os postos mais importantes da DGS estavam perto do Senegal, era o caso de Pirada, Bigene e Guidage, para a Guiné Conacri só havia o posto de Buruntuma. Explica a importância de Pirada [, as palavras do Fragosos Allas]:

“Estava localizado mesmo junto à fronteira com o Senegal. O posto estava dentro da casa de um comerciante. O agente da DGS ali colocado vivia dentro da casa do tal comerciante. Mas o que sucedia na prática era que o comerciante era mais agente da DGS que o próprio agente; 90% das vezes era o comerciante que atendia o rádio. Converteu-se num agente duplo. 

"O comerciante chamava-se Mário Soares. Era habilidoso, tinha boas relações com as autoridades portuguesas e tinha bons contactos, também, com as do Senegal. Teve atuações muito importantes para nós. O Mário Soares era útil como agente de contrainformação. Quando queríamos enviar informações falsas ao PAIGC dizíamos-lhe que era muito secreto e então ele ia logo transmiti-las. 

"As informações que ele fornecia sobre o PAIGC quase não serviam, porque nós sabíamos que ele também trabalhava para eles. Quando cheguei à Guiné, o General Spínola estava muito zangado com ele e queria mesmo expulsá-lo da província, mas isso não seria conveniente porque o posto da PIDE estava dentro da sua casa, pelo que me interessei para que ele continuasse na sua atividade”.

No Arquivo Amílcar Cabral não há referências ao comerciamte Mário Soares. E os ataques a Pirada muito provavelmente ele não os sabia com antecedência, por via do PAIGC. Tenho de falar pessoalmente com a investigadora Maria José Tíscar (, que conheci em fevereiro passado) e com o médico José Pratas, para saber qual o fundamento de cada uma das suas versões, nomeadamente no que diz respeito ao "fim da história".

Quer tempo caído em desgraça, a seguir ao 25 de Abril (segundo José Pratas), ou tenha ficado na Guiné, no tempo do Luís Cabarl (, segundo Maria José Tíscar), em recompensa pelos seus "pequenos favores" ao PAIGC (para logo a seguir, em novembro de 1975, ser expulso). a história deste homem parece confirmar o velho ditado popular: "Não se pode servir a dois senhores!"... A duplicidade, em tempo de guerra, é sempre um jogo perigoso.

[De qualquer não tendo aqui o livro à mão, recomenda-se a sua leitura, e em especial o capítulo dedicado à Guiné: A PIDE no Xadrez Africano: Angola, Zaire, Guiné, Moçambique (Conversas com o Inspetor Fragoso Allas) (2ª Edição).  de María José Tíscar, edição: Edições Colibri, janeiro de 2018 ‧ isbn: 9789896896799]

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Notas do editor:


(**) Vd. poste de 25 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20898: (De)Caras (129): O comerciante Mário Soares, de Pirada, quem foi, afinal? Um "agente duplo"? - Parte V: Quando fui a Pirada, em DO-27, em 2/5/1972, levar o inspector da PIDE/DGS, Fragoso Allas, a Pirada, para conversões secretas com os senegaleses... A 18 desse mês, Spínola encontra-se com o Senghor, em Cap Skiring (Gil Moutinho, ex-fur mil pil, BA 12, Bissalanca, 1972/74)

Vd. postes anteriores da série:

21 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20884: (De)Caras (128): O comerciante Mário Soares, de Pirada, quem foi, afinal? Um "agente duplo"? - Parte IV: Versões contraditórias sobre o "resto da história" deste português, de quem o ex-alf mil médico José Pratas (, BCAV 3864, Pirada, 1971/73) disse que foi "porventura o branco mais africano que conheci"

18 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20867: (De)Caras (127): O comerciante Mário Soares, de Pirada, quem foi, afinal? Um "agente duplo"? - Parte III (Depoimento do nosso saudoso camarada Carlos Geraldes)


(***) Vd. postes de: 


(****) Vd. poste de 3 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17929: (D)o outro lado do combate (16): O Rodrigo Rendeiro, depois de regressar a Bissau, terá fornecido preciosas informações à FAP , permitindo a localização (e bombardeamento) das bases do PAIGC em Morés e Dandum, segundo Maria José Tístar, autora de "A PIDE no Xadrez Africano: conversas com o inspetor Fragoso Allas", Lisboa, Colibri, 2017 (pp. 191/192)