1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Dezembro de 2020:
Queridos amigos,
Nesta preocupação de juntar todas as peças inerentes ao conflito guineense, encontrei esta reportagem da Felícia Cabrita na revista do Expresso comemorativa dos vinte anos da publicação.
É impossível não ficar estupefacto não só pelo tom da escrita, é o desmazelo pela verdade histórica disfarçado nessa ilusão de ouvir uns e os outros, esboça-se uma atmosfera apocalíptica e insinua-se permanentemente que houve para ali uma derrota, tinha que acontecer o que aconteceu, já que o decisor político só queria é que desaparecesse da cena internacional a atoarda de que o PAIGC possuía território que indiciava a independência. Operação caríssima e escola de aprendizagem - para quem tinha a honestidade de tirar lições de uma guerra de guerrilha, tal como o Como provou.
Não sei exatamente para que servem estas reportagens, se para provar que a repórter esteve lá e cá ouviu gente, mas seguramente que não fica um quadro idóneo das etapas essenciais da operação. E, como sempre, tudo aparece inscrito em sede militar, como se de facto a Operação Tridente não tivesse sido, do princípio ao fim, uma decisão de Lisboa, que temeu a atoarda da república independente e que achou demasiado tempo, aqueles mais de 70 dias, que durou a operação, deve-se ter tido receio de que estava para ali um Vietname.
O que verdadeiramente aconteceu ainda pode ser contado por muito boa gente que seguramente não se revê nesta enxurrada de delírio que saiu do punho de Felícia Cabrita.
Um abraço do
Mário
A Operação Tridente: Quando o delírio se disfarça de objetividade na reportagem
Mário Beja Santos
A Revista Expresso comemorativa dos 20 anos do jornal foi um acontecimento editorial, ainda hoje é um documento de consulta. O número especial incluía uma reportagem de Felícia Cabrita sobre a Operação Tridente, profusamente ilustrada, imagens cedidas da operação propriamente dita e testemunhos do presente.
Trinta anos depois, aquela que é considerada a operação de maior envergadura de toda a guerra colonial merecia um tratamento mais digno, menos hipóteses e presunções e uma redação menos pesporrente e chocarreira. A jornalista achou que era conveniente dar um toque à Norman Mailer ou Hemingway, e dá-nos logo um parágrafo em tom épico:
“Os soldados tinham abandonado a metrópole de alma limpa, sem saberem muito bem o que era a guerra, estavam até ufanos por se livrarem da açorda e da azeitona no pão e dos míseros testões da jorna. E trocaram sem regatear enxada e martelo por arma. Com as primeiras baixas, depressa se esqueceram que não era de bem matar e entregaram-se ao mister da guerra, ganharam expediente em cortar orelhas e dedos e a torturar gente indefesa. Ainda não tinham passado pela hora da verdade quando os segredos se revelaram, a valentia a impropério.
Em 1964, mil e tal homens partiram para ocupar uma ilha que era já lenda. Levaram no bolso as suas santas, multiplicaram devoções, mas Deus da sua morada não olha para outros caminhos. Eles tornaram-se farrapos, durante dois meses e meio intérpretes de uma missão falhada. Os habitantes da ilha tenebrosa ficaram de pé até ao fim, muitos morreram, mas a morte o que é senão incerteza? Os que ficaram mantiveram-se insurretos, contentes com o mundo e as suas leis, entregaram-se à dança e à festa, fizeram galas de sangue que ofertaram ao Irã…”.
A repórter esqueceu-se de dizer que o governo de Lisboa estava muito incomodado com a propaganda que o PAIGC destilava em meios internacionais de que possuía território dentro da colónia, decretou aos comandos em Bissau a erradicação de tal presença, organizou-se operação, veio mesmo o Ministro da Defesa, Gomes de Araújo.
Essa mesma propaganda do PAIGC irá fazer constar anos a fio que houve derrota das tropas portuguesas, que as populações afetas ao PAIGC e as suas milícias não arredaram pé, alimentaram o mito com o mais completo despudor. Acontece que a Operação Tridente está bem repertoriada, e até se inclui na documentação capturada uma carta de Nino Vieira a pedir apoio a outros camaradas da região Sul, quando o coronel Fernando Cavaleiro percorrer a ilha no fim da operação as populações e milícias tinham atravessado o canal, à cautela, e regressaram quando as tropas portuguesas ficaram circunscritas, no extremo da ilha, ao destacamento de Cachil.
A importância do Como, avisadamente os investigadores têm-no dito, cedo desapareceu, e não só aprendeu quem não quis, o Como tem como significado o bate-e-foge, um dos cânones da guerrilha.
Mas isso não tinha importância para o tom megalómano da reportagem. Corriam rumores sobre os efetivos posicionados no Como: que era uma base central, que tinha abrigos antiaéreos, hospital, búnqueres, centenas de guerrilheiros, pura fantasia, está historicamente demonstrado que os efetivos do PAIGC ainda dispunham de escasso material, ainda não havia armamento antiaéreo, as minas surgirão pouco depois, a guerrilha ainda está num estado incipiente.
Procura-se dar o lado da guerrilha, a exploração a que Manuel Brandão sujeitava as populações:
“Os agricultores entregavam arroz e os animais por tuta e meia, ou então recebiam géneros, trapos e aguardente de cana. No fim do ano estavam sempre a contas com a administração portuguesa. O comerciante adiantava os 150 escudos do imposto de cabeça, dinheiro que os indígenas pagavam depois a triplicar ou a trabalhar de borla nas suas plantações. Poucos se atreviam a atropelar as leis de Brandão. Se alguém era apanhado a negociar em Catió, esperava-o o tanque coberto de óleo de palma até ao pescoço, muitos escorregavam na gordura espessa e morriam”.
E emerge o lendário Nino, as peripécias da sua fuga, a sua capacidade de subversão chegou ao Como, Brandão foi escorraçado e as lojas saqueadas. No Como, quando se inicia a Operação Tridente estarão escassas duas dezenas de guerrilheiros, há oito armas e quatro granadas, Pansau Ná Isna ausentara-se do Como na véspera da Operação Tridente. E começa o desembarque, precedido de bombardeamento aéreo.
“O tenente-coronel Fernando Cavaleiro tinha como missão isolar Como das restantes ilhas, para cortar o abastecimento da guerrilha, conquistar a população e garantir que se instalasse posteriormente a autoridade civil”.
Adivinha-se um terreno áspero, a ilha tem uma superfície de 210 quilómetros quadrados, mais de metade zona de tarrafe. Há desembarques em paz e outros debaixo de tiroteio. E novamente a jornalista se socorre do tom apocalítico:
“O médico sente o desespero dos soldados. Havia quem metesse um pé ou um braço fora do abrigo para ser alvejado, e mesmo quem descarregasse a arma no corpo. Outros inventavam doenças e muitos enlouqueciam. Ele estava à beira do esgotamento e pedia ao comandante para o substituir”.
Mais adiante, a jornalista pretende dar-nos um quadro de como nasce um herói, o brutamontes irado:
“Na Guiné, quando viu os primeiros mortos e apanhou um estilhaço no olho, depressa se tornou um selvagem. Uma vez limpo o sarampo a meia dúzia de mulheres, fazia coleção de orelhas, outra vez apeteceu-lhe violar uma velha. Antes desta operação era homem para cortar cabeças se tivesse tido oportunidade, mas depressa da experiência do Como confessa que perdeu a afoiteza. Naquele dia, cercado por todos os lados, só pensava em fugir, esconder-se, escapar ao inferno”.
Os guerrilheiros também não passam de gente desalmada, aos olhos da repórter, têm acesso aos corpos de soldados portugueses, roubam fardas e um anel e até o retrato de uma namorada. A guerrilha resiste, as mulheres têm comportamento heroico, avisam os homens de que dali não saem. O contingente português debilita-se:
“Passados quinze dias, cavalaria, fuzileiros e paraquedistas estavam reduzidos a 60% dos efetivos. 68 homens tinham sido evacuados e os outros pareciam penitentes bêbados atacados por todas as doenças tropicais”.
A repórter fala do fuzileiro José Marques que viu gente morrer ali ao pé, viu mesmo um camarada dar um tiro no pé para se ir embora, tal era o desatino que até pensou em matar o seu comandante, Alpoim Calvão, e confessa à jornalista que a partir desta operação nunca mais bateu bem da cabeça.
Momentos há em que a jornalista aceita a lucidez de descrever a guerra de guerrilhas, tal qual ela é, mas a tentação miserabilista e apocalítica é mais forte, e bumba, temos agora a apatia ou o paroxismo:
“Em emboscadas viu soldados a cavar buracos para se esconderem. Enfiavam o rosto na terra e disparavam ao acaso. Um alferes que estava meio pirado fazia malabarismos com três laranjas debaixo de fogo. E Jaime Segura, que não tinha queda para batalhas sem glória, aborreceu-se de morte. Infelizmente esqueceu-se de levar os dados de póquer, por isso entretinha-se no rio a pescar com granadas. Enquanto o Bretão, tinha ido para a Guiné por ter contas a ajustar com a PIDE não se lavava num gesto de contestação. Estava tão encardido que passava as tardes a fazer o jogo do galo no peito com um pau de fósforo”.
No meio de todas estas hecatombes, são avançados alguns dados. A operação ficará na História como a batalha mais longa e cara do Exército Português.
“Gastaram 356 bombas, 719 foguetes, 40944 balas. O vinho correu com fartura, o álcool foi o refrigério para o medo. Os cofres do Estado sofreram um arrombo de 290 mil contos. Em meados de março, passados quase dois meses e meio de terem desembarcado, as chefias militares começam a pressionar Fernando Cavaleiro, que garantia o sucesso da operação”.
Os contingentes retiram a 20 de março. Para a repórter, a sentença da desgraça é inapelável:
“As derrotas são osso duro de roer, partiam sem ocupar a ilha, sem conquistar a população e sem deixar a autoridade civil. Nove mortos e quarenta e cinco feridos graves era o saldo de uma batalha sem glória (…) Salazar também tirou as suas conclusões, e uns meses depois o governador da Guiné e o responsável militar eram substituídos. Mas, num ponto da ilha, encurralados entre o rio e a mata, ficava, durante dois anos, uma companhia a apodrecer”.
À distância de todos estes anos, interroga-se como foi possível o Expresso publicar esta mistela de dislates.
Atenção, mais tarde, Felícia Cabrita voltará ao Como acompanhada de Nino Vieira e voltaremos a esta mesma toada de loucura, medo e mortandade. Tudo isto para dizer que o melhor é ler a documentação sobre o que foi a Operação Tridente e perceber que não passou de uma escola de aprendizagem. E não vale a pena estar a incriminar militares ou a enxovalhá-los, a decisão da Operação Tridente partiu de Lisboa.