ATRIBULAÇÕES DE SOLDADO DE HÁ 50 ANOS
Esforço de Memória da Semana Santa e do Domingo de Páscoa de 1966, em Camajabá (Leste da Guiné)…
Narrativa dedicada aos camaradas que tarimbaram em Camajabá e Buruntuma, nomeadamente ao Abel Santos, José Fernando Estima, Abreu dos Santos, Eduardo Ferreira Campos, Jorge Gabriel, Ricardo Costa, Carlos Costa, José Campos Pontinha … que partilharam as suas vivências através deste blogue.
Naquele tempo, Buruntuma era uma tabanca de fulas e mandingas, um triângulo de território encravado na República da Guiné, domínio do régulo de Canquelifá, que aparecia à moda de cavaleiro, montado num belo cavalo, escoltado por escudeiros armados de G3, em visita de cortesia sentimental à formosa, escultural, evoluída e descontraída fula, uma das suas mulheres legítimas, segundo o Corão.
O Comandante Domingos Ramos fora encarregado de reactivar a Frente Leste, que Vitorino Costa falhara, antes de ir morrer a Fulacunda, com práticas de puro terrorismo contra as populações fulas, e a nossa CCav 703 foi transferida de emergência para lá, em finais de Maio de 1965, directamente da “Operação Razia” à mata de Cufar Nalu, na qual participava como força de intervenção às ordens do Comando-Chefe, para reforço e, depois, em rendição da sua guarnição, um pelotão de malta rija e valente, comandado pelo Alferes Vinhas, sou ignorante quanto a mais dados.
Buruntuma era cortada a meio por uma “estrada internacional” de terra batida Bissau-Nova Lamego-República da Guiné, a servir de divisória às comunidades fula e mandinga, ladeada de casas de arquitectura colonial, frontais às tradicionais moranças circulares cobertas a colmo, destacando-se a casa da PIDE e a vivendazinha de planta quadrada e de cor amarelada da Guarda Fiscal, idêntica à que depois vi implantada na praia de Leça, a tradicional barreira tubular e, na margem do pequeno rio Piai, campeava uma placa de betão: do nosso lado avisava Republique de Guineé; do lado oposto avisava República Portuguesa /Província da Guiné, emendando na estrada alcatroada, para Kandica, Saraboido e Koudara com derivação para Conacri.
Estrada internacional Bissau-Nova Lamego-Piche-Camajabá-Buruntuma-República da Guiné
Estávamos na época das chuvas, subiu-se ao cume do telhado mais alto para observar a vizinhança, reconheceu-se a ameaça de um par blindados Panhard ou parecidos, o Shirley, furriel sapador, afadigou-se na confecção de um potente fornilho e escolheu-se o melhor sítio onde escavar o buraco do seu enterro. Toda a gente em alerta, bazuqueiros e as suas “granadas de efeito dirigido” em prontidão, o capitão tornou-se guardião do explosor de accionamento eléctrico do fornilho – seria mais uma, das já muitas noites sem sono. O céu começou a descarregar água aos cântaros sobre estes pobres de Cristo, os raios e coriscos da tempestade tropical a incendiarem-no, um dos ditos percorreu o curso do cabo condutor até ao fornilho – e que tremenda explosão! Veio o dia e duas constatações: uma grande cratera e horizonte livre de blindados.
Camajabá situava-se nessa “estrada internacional”, a meio caminho entre Ponte Caium e Buruntuma, um deserto de apenas três moranças e um pontão de betão sobre o rio do mesmo nome, a sua valia estratégica, uma espécie de apólice de seguro para a subsistência da guarnição de Buruntuma. A guarnição de Camajabá, assim como a da Ponte Caium era destacada da CCaç 727 e das milícias de Canquelifá, malta tão fixe quanto azarenta – cada tiro cada morto sofrido – cujo comandante se distinguia como poeta, o então Capitão Miliciano Evóneo de Vasconcelos, recentemente falecido.
A duração máxima do destacamento de Camajabá não ultrapassava as três semanas e passara a rotativo da CCS do Batalhão de Nova Lamego, da CCaç de Canquelifá e da CCav de Buruntuma. Não obstante as ameaças, ainda não fora atacado, enquanto a sua milícia se distinguia a infernizar a vida aos militares europeus. A sua pequena guarnição averbava o suicídio de um alferes e o enlouquecimento de um segundo sargento. Chegara-me ao conhecimento de que os comissários do PAIGC em missão de doutrinação, procuravam abastecer-se do nosso tabaco e cerveja junto de milícias de Camajabá.
Pelas minhas funções de “apsico” e comandante de dois pelotões de milícia, em permanência às suas actividades específicas, estava excluído da escala para esse destacamento. O último da CCav 703 caberia ao Furriel António Moreira, a regressar de férias; mas ele encalhara em Bissau, de baixa ao Hospital Militar, com os intestinos infestados de bicharada, doença de nome difícil, quiçá uma amebíase (está correcto, Luís Graça?). Entramos na Semana Santa, o Furriel Simas foi escalado para o meu lugar, fui escalado para secção do Moreira e mais uns reforços, subimos para a caixa de carga de uma Mercedes, e fizemo-nos ao caminho da descida ao inferno de Camajabá.
A manhã findava e a rendição foi expedita, sob o impacto do alívio dos rendidos, alvos do escarnecimento por parte de alguns graduados da milícia, que a seguir reagiram refractários ao escalamento de segurança, da ida à água, à lenha ou a jornadas de capinação.
Chegávamos ao fim da comissão num estado de fraqueza geral, eu sair de uma crise palúdica com o peso de 39 kg, e ante aquele desafio. Passei a mensagem de um “olho no cigano e outro no burro” e a malta soube descodifica-lo. Seguiu-se uma tentativa de sublevação, que não terá redundado em carnificina por estarmos bem armados e melhor capacitados para passar ao seu o melhor uso (a milícia era dotada de Mauser) e tive de prender literalmente 7 deles e despachá-los para Nova Lamego.
Chegamos à sexta-feira santa, o ambiente serenara, a disciplina regressara, acabara com a discriminação, instituindo rancho igual para todos, reciclando o meio bidão para a sua “bianda” em caldeirão da cozinha comum; tínhamos acabado de almoçar uma caldeirada de peixe bem picante, que mandara recolher no rio, efeito de lançar uma granada ofensiva no troço que me pareceu mais fundo, (ignorava a ecologia), o cabo que acumulava a metralhadora Breda com a cozinha, acabava de nos fazer rir, ao dizer que se lhe arranjássemos um cabrito, cabra ou cabrão, algumas cebolas e alhos, nos faria um estupendo pitéu para o domingo de Páscoa e aproxima-se um ciclista fardado de cipaio, vindo dos lados da Ponte Caium, que declarou arranjar tudo ao mesmo tempo que me dava um discreto sinal para um aparte.
- Ensina-me a andar de bicicleta – disse-lhe.
Montei o selim, com ele a segurá-lo, percorremos um bocado da estrada e ele disse-me:
- Bandido vem atacar na noite de sábado, para vos apanhar à mão.
- Como soubeste?
- Estão em Koundara (base-mãe do PAIGC), soube agora e não disse nada a ninguém.
- Então não digas; eu digo.
Reunidos aos outros dei-lhe 50 pesos por conta desse material, que protestou entregar no dia a seguir, Sábado de Páscoa.
Eu e outros dois fomos dar uma volta de reconhecimento a todo descampado em volta do destacamento. Como a fronteira distava menos de 20 km, calculei a montagem do cerco para a meia-noite de sábado. Os calafrios perseguiam-me; a duas semanas de ir embora teria o azar de defrontar sozinho o experiente ex-camarada Domingos Ramos? Topamos um rolo de arame de tropeçar intacto junto a uns montes de formiga baga-baga e aproveitamos para implantar duas granadas. O arame de tropeçar servirá para armadilharmos um bosque de cajueiros, fronteiro ao estacionamento. Uma dessas granadas rebentou logo ao anoitecer.
Ao fim da manhã do dia seguinte, surgiu-nos o ciclista, então desfardado de cipaio, com uma cabrita, cebolas e alhos, embolsou mais 120 pesos e desandou, e eu pedi-lhe para me deixar uma manga de câmara de ar de bicicleta. Só então decidi comunicar a notícia ao comando.
Na madrugada daquele domingo de Páscoa, os nossos cerca de 20 milícias islamizados começaram a alarmar-se ante visão de “irãos”, quais pirilampos, observados da caixa de carga de uma Mercedes cujo motor fora destruído por uma mina, a servir-nos de posto de observação e de espaldão elevado. E umas morteiradas devidamente calculadas foram suficientes para afugentar esses “irãos”.
Ironias que a vida e as suas circunstâncias tecem. Naquele domingo de Páscoa de 1966, a tropa europeia e os milicianos nativos da guarnição de Camajabá, ao partilhar o almoço de um aprimorado estufado de cabra, não lhes terá passado pela cabeça que a oportunidade fora-lhes propiciada pelo comandante da guerra na Frente Leste – o ex-Furriel Miliciano Domingos Ramos.
E para a malta da CCaç 1418, que nos rendeu em Camajabá. Para que nos terá servido aquele troço da câmara de ar, cedido pelo ciclista? Para herdarem de nós a bateria de chuveiros de banho, que encontraram a funcionar plenamente…
Anos depois, o Moreira contou-me que não regressara a Buruntuma (para não ir para Camajabá), não se tratar da bicharada intestinal, mas porque alguém lhe conseguira para a análise a amostra da merda de um doente verdadeiro e a fizera passar por sua…
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