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sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27368: S(C)em Comentários (81): O gen António Spínola e o major cav Carlos Azeredo que eu conheci, em julho de 1968, depois do ataque a Contabane (José Teixeira, ex-1º cabo aux enf, CCAÇ 2381, "Os Maiorais" , Buba, Aldeia Formosa, Mampatá, Empada, 1968/70)


1. Comentário de José Teixeira, ex-1º cabo aux enf, CCAÇ 2381, "Os Maiorais" ( Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70) (*)



Em Julho de 1968, uns dias depois da minha CCAÇ 2381 chegar a Aldeia Formosa, o major cav Carlos Azeredo (comandante do COSAF/COP 1)  apareceu no refeitório à hora do almoço, pediu silêncio e deu a seguinte ordem: 

"Logo, às 17,30 quero toda a gente deitada junto à paliçada, (não havia valas, havia pequenos morros, se não me engano e uma paliçada em cana de bambu num dos lados das casernas). Não quero ver ninguém fora desse local! É uma ordem."

Estava lá a CCAÇ 2381 e a Companhia  dos Lenços Azuis, do Capitão Rei, a CCAÇ 1792 / BCAÇ 1933.

Âs 17.30 começou a ouvir-se, ao longe, as saídas dos morteiros e os rebentamentos, também ao longe.com grandes interregnos e sem resposta de nossa parte, se bem me lembro.

Manteve-se até às duas da madrugada, segundo me disseram. Em pelas 23 horas fui dormir.

No dia seguinte logo de manhã apareceu o Spínola no Hélio. De pingalim e monóculo, pôs- se a ouvir o Carlos Azeredo. Este apontava os locais de saída das canhoadas do lado da fronteira de Conacri e local onde foram rebentando, sem nos afetar, nem á população.

Eu estava por perto, de bata branca, a ouvir a conversa e em dada altura o Spínola disse: 

"Carlos nunca te lembraste de mandar para ali (apontando com o dedo) umas obusadas?"

Na noite seguinte, os obuses 14mm trabalharam bem e na manhã seguinte doeu-me ver o carreirinho de gente (mulheres e crianças) com alguns tarecos à cabeça que se vinham acolher junto de familiares (suponho eu) em a
Aldeia Formosa.

Com isto quero dizer que o Spínola sabia que o Carlos Azeredo estava a mandar cumprimentos aos vizinhos da outra banda.

No dia anterior da parte da manhã, o major Azeredo foi dar um passeio pela Tabanca, como era seu hábito, e comentava-se (pelos velhinhos) que ia visitar (e conversar com ) o Tcherno Rachid.

Um abraço
José Teixeira


________________

Notas do editor LG:

(*) Vd. poste de 28 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27360: (Ex)citações (439): Ainda a propósito dos bravos de Contabane... "O maluco do Carlos Azeredo está a bombardear a Guiné-Conacry", dizia, em pânico, o QG... (Carlos Nery, ex-cap mil, CCAÇ 2382, 1968/70)

(**) Últ6imo poste da série > 26 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27353: S(C)em Comentários (80): o "Toca-choro" entre os mancanhas de Bula e Có

Guiné 61/74 - P27367: Manuscrito(s) (Luís Graça) (276): "A Rua Suspensa dos Olhos", de Ábio de Lápara, pseudónimo literário de José António Bóia Paradela (1937-2023), ilhavense, urbanista, arquiteto e escritor - Parte I: "Rua das Manhãs, a morte levou tudo o que eu amava"




Capa do livro "A Rua Suspensa dos Olhos" de Ábio de Lápara (edição de autor,  José A. Paradela, Aveiro, 2015, 164 pp.) (*)...

Ábio de Lápara é o pseudónimo literário de José António Bóia  Paradela.  Imagens: arquivo de LG + Matilde Henriques 


Fotos (e legendas): © Luís Graça (2025). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Zé António, meu mano:  hoje seria dia dos teus anos.  30 de outuro de 2025. Aliás, é dia dos teus anos. Oitenta e oito.  Um número redondo, uma capicua.  Em boa verdade, não morreste.  Deixaste apenas de aparecer, lá na nossa casa, como nos dias de cozido à portuguesa, feito pela "chef" Alice. Como tu adoravas o caldinho do cozido, a fumegar, já ao fim da tarde dos nossos sábados de eternidade,  com o saborzinho e o cheirinho da hortelã!

Foste-te embora, não encerraste a tua conta do Facebook. E a PAL -Planeamento e Arquitetura Lda, continua de porta aberta. O teu gabinete, a tua torre que não era de marfim. Eras um homem, cidadão, português, ilhavense, escritor, urbanista e arquiteto, profundamente ligado à terra (e ao mar).  Nunca foste ilha, mas arquipélago. Todos os que te ama(va)m continuam a "falar" contigo. Na esperança de que tu nos oiças. Falamos de ti entre nós. Que é também a nossa maneira de "falar" contigo. 

Ainda hoje, ao fim da tarde (os dias agora são mais curtos com o raio da hora de inverno), estivemos, eu, a Alice, a tua Matilde e o teu Jorge, a matar a nossa saudade de ti, à volta de um pastel de nata e de uma bica. Só faltou o "almirante", que anda lá pelo Mar do Norte, no seu porta-contentores, com esta invernia. Virá cá pelo Natal. Para ver a tua neta, que está cada vez mais linda. Ah!, vais ter outra neta (ou neto). Parabéns!... Eu também já tenho duas netas, é bom, dão-nos a ilusão de eternidade.

E, depois, continuas a ter, aqui, um lugar sob o poilão da Tabanca Grande. Foste marinheiro. Nunca foste à Guiné. Mas fizeste a tua tropa, a tua guerra. Foste à Terra Nova. Também foste "periquito", aliás "verde". Aos 17 anos, no teu dóri, nos bancos de pesca da Terra Nova. Na frota branca, a bacalhoeira (*). E também estiveste na marinha de guerra. Darias sempre um "mau infante" como eu.

Hoje ergo a taça, bebendo simbolicamente à tua memória, que continua viva, presente e quente entre os teus (família e amigos).

Lembrei-me dos teus livros. E deu-me uma saudade danada de reler a tua Rua Suspensa dos Olhos (**), que foi a rua da tua infância, em Alqueidão, Ílhavo. Nunca lá fui, a Alqueidão, que pena, tendo-te a ti como cicerone.  Perdi essa oportunidade única. Mas, pelo que me dizias, a tua rua já não existia. As ruas da nossa infància, quando crescemos ou mudamos de rua, de cidade, de país, deixam de existir.  As ruas da nossa infància morrem connosco  se não passarmos para o papel ou para o computador as nossas memórias. Ainda bem que o fizeste. São as tuas geografias emocionais. Mas também não  precisei de ir lá, à tua antiga rua da infância, bastou-me ler o teu livro. 

Todos temos, tivemos,  uma rua da  infância. Imagino que o teu Alqueidão era o da gente humilde, que nasceu com o ADN do mar por brasão. Quando eu te visitava, em agosto, a caminho de Candoz,  era na burguesa Costa Nova. Conheço mal a tua Ílhavo. A última vez que lá estive foi no dia da tua despedida da Terra da Alegria.

O jornalista Viriato Teles, também ele ilhavense, que fez em 2015 a apresentação do teu livro, na terra de ambos, sessão que eu perdi por qualquer razão de agenda, escreveu então o seguinte, sob o título "Os olhos da nossa infància" (excertos reproduzidos aqui com a devida vénia):

(...) Eu não conheci 'A Rua Suspensa dos Olhos',  tal e qual ela como nos é contada neste livro. Nasci uns anitos depois do Zé António, e do Ábio, e por isso já não vi o empedrado nem os poiais em frente das casas de Alqueidão. 

Mas o lugar onde brincou o Zé António é o mesmo onde, anos depois, eu passei muitos dos meus dias — e sobretudo das minhas noites — da adolescência. Pela simples razão de que era em Alqueidão que moravam alguns dos meus melhores amigos, e isso fazia de mim um passeante regular da rua.

Além disso, Alqueidão desembocava no esteiro da Malhada, que nessa altura era o melhor lugar do mundo (...)

(...) E muito daquilo que se passava na Rua Suspensa dos Olhos,  do Ábio de Lápara, passava-se de modo semelhante na Rua da Capela da minha infância. Além de que — e essa é seguramente outra semelhança que existe entre nós — no meu tempo como no dele, a infância vivia-se muito na rua e a partir da rua. Paradoxalmente, nessa época em que a liberdade era, em Portugal, um anseio longínquo e difícil de concretizar, a vida dos miúdos como nós era muito mais livre do que foi a dos nossos filhos.

A rua era o nosso pátio, a nossa casa, o nosso mundo. E a nossa escola, também. (...)

(...) Naqueles tempos em que as crianças vinham da Feira dos Treze pela mão da Dona Alicinha (que "não tinha filhos pois os dava a toda a gente" e que nos ajudou a ambos a vir ao mundo), Ílhavo era muito diferente do que é hoje. 

Nas nossas infâncias, Ílhavo era uma vila, ainda essencialmente ligada ao mar e à pesca longínqua da Terra Nova, e isso modelou inevitavelmente a nossa forma de estar e de sentir: aquele modo de ser meio agreste que nos caracteriza e que se revela nos jeitos e nos trejeitos, no linguajar, na maneira como falamos uns com os outros — e uns dos outros, também.

Não me custa dar razão a quem nos define como sendo uma gente pouco dada a cortesias: afinal, a 'alma ilhavense' moldou-se nos mares do fim do mundo, em meses de solidão e frio glacial, onde pairava sempre o sopro da morte, à espreita em cada vaga. Isto no que aos homens diz respeito. Quanto às mulheres, forçadas a assumir o comando da vida em terra, desenvolveram um forte sentido matriarcal — que se mantém, para o bem e para o mal. (...)


Recordo aqui o que te escrevi e disse, na na minha oração fúnebre, em 23 de fevereiro de 2023, na igreja matriz de Ílhavo:

(...) Ah!, quanto humanidade, ternura, inocência, traquinice, generosidade e poesia havia na tua rua suspensa dos olhos...

Ilhéu, lhavense, filho da terra e do mar, evocas e descreves com enorme ternura e talento a rua onde nasceste e cresceste. E das figuras humanas que marcaram a tua memória e o teu imaginário, não posso deixar de citar o teu pai, marinheiro aos 12 anos, figura de referência na tua vida, sempre ausente e sempre presente, e que gostava de dizer: “O mundo todo não vale o meu lar”…

Tendo tu sido criado no matriarcado, cercado de mulheres e dos seus fantasmas e das suas recordações, fizeste, no entanto, da figura do teu pai a mais bela evocação na tua narrativa ilhavense: “Estávamos todos em casa, isto é, ele não estava no mar, que é como quem diz, sabe-se lá onde”… (...)


LG | Alfragide, 30 de outubro de 2025, 23.00





Excertos de "A Rua Suspensa dos Olhos" - Parte I: "Rua das Manhãs, a morte levou tudo o que eu amava"

por Ábio de Lápara / José António Paradela 
(1937-2023)



Rua das Manhãs
A morte sabia
quem ali morava...
Rua das Manhãs
a morte levou
tudo o que eu amava...


Raul de Carvalho (1920-1984)


(...) Eu, criatura inventada à imagem e semelhança de Deus, fui fabricado em Campo de Ourique. Era o que dizia a minha mãe, casada com um marinheiro nos idos de 35.

Como cada um fica indelevelmente marcado pelo tempo e pelo espaço onde foi concebido, dizem, tive de aceitar logo,  nesse transe, o maldito signo do Escorpião.

Do mesmo modo, assente o sítio da batalha cujo nome, apesar da discórdia, ainda hoje é considerado o locus onde a divindade assinalou o desígnio nacional, o meu brasão só poderia ser o das cinco chagas, para os mais religiosos, ou dos cinco castelos mouros para os mais dados às coisas da guerra.

Isso acarretou alguns amargos de boca no meio familiar, onde um avô republicano casou em primeiras núpcias com uma prima católica, que passou a ser minha avó. E assim tive de herdar, ainda antes de nascer, o nome dele e o carinho extremoso dela.

Um pouco mais tarde, fizeram-me constar que fui comprado na Feira dos Treze, ali na Vista Alegre, sempre perseguido por simbolismos estranhos, e levado para a rua de Alqueidão pela mão de uma Alice que vivia do outro lado do espelho. Não tinha filhos pois que os dava a toda a gente, e ficou conhecida pelo carinhoso diminutivo de Alicinha como nas estórias de duendes e feiticeiras, já que as suas mãos exsudavam milagres em cada parto.

Terá sido este o meu caso, pois as primeiras recordações de que disponho, dão comigo a viver já nessa rua fantástica, tal como vou descrever.  (...)

***

(...) A minha casa tinha porta para ela, que nesse tempo era empedrada com calhau rolado de média dimensão, digamos... do tamanho de padas de Vale d' Ílhavo, que geravam um ruído forte sob os rodados metálicos das carroças de bois e torciam os pés às mulheres que usavam tamancos.

Para ser breve, direi que tirando as casas, de tudo o que hoje lá está, nada existia. Pois é! Pensem no que quiserem... Nada disso existia! Em contrapartida, existiam longos poiais na frente das casas que serviam de bancos onde se sentava a vasta comunidade lá da rua.

Ali, as crianças brincavam, as mulheres ratavam nos casacos de quem passava e os velhos enrolavam cigarros de tabaco desfiado que acendiam nas beatas uns dos outros.

E o que se passava durante o dia, se repetia à noite quando o tempo estava ameno, sob a luz soturna de uma lâmpada eléctrica, adorada pelos morcegos, existente num poste metálico junto à loja do ti Tomé Pascoal !

Aí vivi durante os anos da minha tenra infância e alguns da juventude.

Digamos que era uma rua divertida onde não se vislumbrava nenhuma crise de natalidade, talvez porque a Feira dos Treze ficasse a curta distância e as crianças fossem baratas, ou porque a fome tocasse igualmente a todos quer fossem poucos quer fossem muitos e por isso, nascer era relativamente indiferente.

A verdade é que não faltavam amigos para brincar nem escaramuças entre as mães para nos divertirmos. Os pais, - semente intermitente - como habitualmente, estavam ausentes no mar, muito longe, bem perto das latitudes polares. (...)

***

(...) Os Cagulas eram quatro ou cinco filhos de um cabo do exército, homem aprumado, de frágil figura e aguçado bigode, envergando farda de caqui e capote de burel cinzento. Um justo bivaque, ligeiramente descaído sobre o lado esquerdo, deixava entrever uma madeixa negra encaracolada.

Recordo-o entrando no beco, a cumprimentar os vizinhos com um gesto militar, elevando a mão direita até à orelha do mesmo lado, sem lhes dirigir muitas palavras.

Um militar de pequena patente não ganhava para ter uma família tão grande! Assim, para matar a fome aos filhos, distribuía-lhes uma tarefa ao longo dos dias da semana: dois a dois, cajado e lata ferrugenta na mão, palmilhavam a pé os cinco quilómetros que separavam a sua casa do quartel, em Aveiro, de onde regressavam com ela enfiada no cajado, plena de sopa de feijão com massa e alguns gorgulhos flutuantes.

Acontece que por ironia do meu fraco apetite, adorava aquela sopa! Assim a minha mãe via-se obrigada a promover trocas para satisfazer o meu desejo que, no fim de contas, mais não era do que o prazer de comer na companhia daqueles amigos cujas estórias e aventuras me fascinavam.

Como a sopa já chegava fria, por vezes o prodígio consistia em fazer lume na sua lareira rasa, numa cozinha onde nem sempre existiam fósforos. Então era necessário pedir uma brasa a algum vizinho e, a partir dela, soprar até pegar o fogo à lenha ainda verde, colhida no mato! Lentamente, o lume ia crescendo sob a lata pendurada de um gancho de ferro na chaminé, e o cheiro que exalava ia aumentando a saliva nas nossas bocas: um manjar!

Na penumbra daquele espaço, as estórias tinham já uma aura de mistério ou de terror, associado à luz bruxuleante e ao fumo do pinho verde e cheiroso. E lá vinham os latidos nocturnos dos cães, supostos lobisomens, e as gigantescas gibóias de fatal abraço, vencidas por um pau afiado em ambas as extremidades, seguro pela mão forte do João Cagula, que depois me explicava como ganhava dinheiro com a gordura extraída, para fabricar o unguento que se vendia na Feira dos Treze! A banha de cobra, que curava sarnas, pruridos, eczemas e muitas coisas mais! (...)

***

(... ) Por esse tempo, ao fundo da rua, residiu intermitente, uma das mais divertidas figuras que a Rua Suspensa dos Olhos teve durante anos, inflamando a imaginação dos olhos acabados de nascer: o Ramon.

Loiro, ultra-penteado com azeite, garboso de faena acabada, montava um burro do seu clã, rua acima , desde o pequeno terreiro junto à fonte dos Bastos - a que os folcloristas da outra rua chamaram em tempos Fonte dos Amores, sem que lá tenham amado - até ao Largo da Senhora, que na outra rua tinha um nome já apagado, na tabuleta oval, de esmalte antigo.

Aí, os olhos vivos, sedentos de estranheza, o inquiriam sobre a vida dos ciganos e se deliciavam com o prodígio que era poder ser loiro e simultaneamente cigano, viver numa tenda de pano sujo e ser dono de um transporte individual de quatro patas.

E, para além do mais, ser feliz nas amizades que se prolongavam no tempo - embora interrompidas pela transumância - e nos permitiam cavalgadas heróicas no lombo despido daquele burro!

Porque na outra rua, os ciganos só podiam ser morenos, vendiam cestos, liam a sina nas mãos das solteironas e, por sua causa, era necessário montar vigilância nos quintais... Se isto não é um prodígio, digam-me lá onde é que eles existem! (...)

***

(...) Muitos donos de olhos atrás citados são personagens de estórias pessoais coladas na rua suspensa, evitando a sua queda. Mas o mais importante para o equilíbrio interno de todos eles, era o grupo que permitia aferir a certeza dos seus juízos: o grupo dos loucos daquela rua.

Ficam estes para outra ocasião, porque levam algum tempo a exumar. Os seus nomes são eternos porque estão sentados á direita do Altíssimo: Chiquinho Maneta,  o Ester, Chico Rádio, António Espiga...

Contudo, lembrei-me agora de outro personagem importante lá da rua, figura indesculpavelmente esquecida.

Era um homem de estatura muito pequena, ligeiramente encurvado e com uma perna mais curta que lhe acentuava aquele defeito quando se deslocava. Andava sempre com uma caixa de madeira suspensa do ombro por uma correia de couro, onde transportava os instrumentos do seu ofício.

Chamavam-lhe Manéuzinho Fazenda, e percorria a rua de uma ponta à outra cortando cabelos e escanhoando faces barbudas.

Barbeiro ambulante, utilizava os restantes atafais dos clientes para proceder à depilatória função.

Tive a pouca sorte de o ter como barbeiro nos primeiros tempos da vida. Era nosso vizinho e uma criatura muito afável, mas cheirava a aguardente e a tabaco de séculos anteriores.

As ferramentas de que dispunha há muito que deviam ter sido reformadas! A máquina de cortar tinha falta de dentes e arrepanhava-me o cabelo, já de si finíssimo como seda, cujo eriçado destruía os pentes à minha mãe e o meu couro cabeludo no esforço do puxão.

Mas o pior de tudo era a navalha de barbear para rapar o pelo sobrante da nuca! Os meus lancinantes gritos não paravam, apesar das constantes tentativas que ele fazia para afiar e assentar o fio da lâmina maldita!

E culminavam quando ele perguntava à minha mãe:

 
  Oh Rosinha, tens álcool para lhe desinfectar o pescoço?

Durante anos pedi a Deus, nas minhas rezas nocturnas, um milagre que me libertasse dele. Sendo Deus, já nesse tempo, bastante velho e surdo, esse prodígio só aconteceu mais tarde, quando o meu pai me encomendou ao senhor Leopoldo, barbeiro com ferramentas de outra afinação, barbearia selecta, bem no coração da vila.

Colocado um pequeno assento sobre a cadeira dos adultos, ali me sentava eu, embrulhado numa enorme toalha branca apertada no pescoço, frente ao espelho que me ia devolvendo as imagens de capitães já barbeados, que prolongavam as conversas atrás da minha cadeira, discutindo assuntos de barcos e mares encapelados, quando não dizendo mal do perfume ou do cheiro a mofo da toalha com que Leopoldo lhes secara a cara... E esse gozo prolongava-se pela manhã e pela tarde, à medida que saíam uns e entravam outros. (..:)

Fonte: Excertos do manuscrito , em pdf, de "A Rua Suspensa dos Olhos",  de Ábio de Lápara, que ajudei a rever em 2015, antes da execução gráfica. Recorri de momento ao manuscrito por não aqui à mão um exemplar do livro em papel.

(Revisão / fixação de texto, negritos: LG)

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Notas do editor LG:

(*) Vd. postes de;


30 de dezembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15554: Notas de leitura (792): "A Rua Suspensa dos Olhos", de Ábio de Lápara (pseudónimo literário de José A. Paradela): reprodução do capítulo 7 com a descrição da viagem de seis meses, aos 17 anos, em 1955, aos bancos de pesca do bacalhau: III (e última) parte

(**) Último poste da série  > 11 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27307: Manuscrito(s) (Luís Graça) (275): 50 pequenas coisas que mudaram em 50 anos no Portugal sacro-profano que eram as terras de Candoz, no Marco de Canveses, em Entre-Douro-e-Minho

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27366: O início da guerra (Armando Fonseca, ex-sold cond, Pel Rec Fox 42, mai 62 / jul 64) - VI (e última) Parte: Depois de Sangonhá, Cacoca (em 24 de junho de 1964)...A 2 de julho, emboscada em Cumbijã com duas minas, uma autiometralhadora e um granadeiro destruídos, 2 mortos, 3 feridos graves... O fim da comissão.



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Guiné > Zona Sul >  Região de Tombali > Setor de Cacine > Cacoca > CART 1692 (1968/69) > " Um dos nossos condutores, o António Andrade Júnior, que, por opção, 'viviam' em Cameconde. O outro era o Alcides Pereira de Lima (Unimog 404), de quem não sabemos nada".

A CART 640, a que se refere o monumento, foi mobilizada pelo RAP 2, partiu para o TO da Guiné em 25/2/1964 e regressou em 27/1/66. Passou por Bissau, Farim, Sangonha, Cacoca e Bissau. Comandante(s): Cap art Carlos Alberto Matos Gueifão; e cap art José Eduardo Martinho Garcia Leandro.

A ocupação de Cacoca e o início da instalação das NT datam de 24/6/1964. 

Foto (e legenda): © António J. Pereira da Costa (2013). Todos os direitos reservados [Edição e legtendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné > Zona Sul > Região de Tombali > Sangonhá, a sul de Gadamael-Porto > c. 1967/68 > Vista aérea do destacamento, "uma espécie de fortim do faroeste", com um heliporto, uma pista de aviação, barracões e três poilões...  Um sítio desolador...

Na altura estava a chegar uma coluna militar [lado esquerdo]. Foto, provavelmente tirada de uma aeronave DO 27, de autor desconhecido. Proveniência: Álbum fotográfico Guiledje Virtual. Cortesia do nosso saudoso amigo Pepito (1949-2014), cofundador e líder da AD - Acção para o Desenvolvimento (Bissau) até à data da sua morte (em Lisboa). Foto, entretanto, modificada por LG.


Foto (e legenda): © Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados (2007)  




Guiné > Mapa da província >  Escala 1/500 mil (1961) > Detalhe: Posição relativa de Sangonhá e Cacoca, junto à fronteira com a Guiné-Conacri, a sudeste. Estes dois destacamentos e tabancas foram abandonados pela CCAÇ 1621 em 29/7/1968

Infogravura: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2015)


1. O Armando Fonserca, de alcunha o "Alenquer", ex-soldado cond cav, Pel Rec Fox 42 (1962/64), foi dos primeiros militares de cavalaria a chegar à Guiné, quando "oficialmente" ainda não havia guerra. 

Para a nossa historiografia militar, para a CECA - Comissão de Estudo das Campanhas de África, e para a "hagiografia" do PAIGC, a guerra só começa... em 23/1/1963, em Tite; mas não para nós, aqui no blogue,  em 1961 e 1962 já havia  guerra, uma guerra surda e suja, de um lado e do outro, se bem que não haja registo de mortos, entre as NT, nos anos de 1961 e 1962, segundo a CECA. O primeiro comandante do PAIGC a morrer, apanahdo numa "rusga" militar, foi o Vitorino Costa, em meados de 1962.

O Armandino Fonseca teve uma comissão de serviço relativamente tranquila desde que chegou a Bissau, em 28/5/1962, até setembro de 1963...

Permaneceu em Bissau mais de um ano até finais de agosto de 1963, fazendo segurança à cidade e ao aeroporto em Bissalanca. No início de setembro de 1963 até jullho de 1964, vai percorrendo uma boa parte da Guiné. E conhecendo a guerra, pura e dura. Descobre o inimigo mais temido da sua autometralhadora Fox, a mina anticarro.

Ajuda a ocupar e a construir os primeiros aquartelamentos na zona de fronteira, a sudeste, importante corredor de infiltração do PAIGC: Guileje, Ganturé, Sangonhá, Cacoca...

A sua narrativa acaba aqui (*), Já não nos dá pormenores sobre a ocupação e o início da construção do aquartelamento de Cacoca, em 24 de junho de 1964. Em 2/7/1964, o Pel Rec Fox 42, praticamente na véspera do seu regresso à Metrópole, sofre o seu mais duro revés, no Cumbijã (ação IN também não referida no livro da CECA, 2014, na parte respeitante a atividade operacional do ano de 1964).

Eis aqui o relato do "Alenquer" (que vive na Amadora, desde 1965, mas de quem não temos tido notícias mais recentemente):

 
(..) "Seguiram-se os destacamentos de Sangonhá e Cacoca e até aqui embora tenham havido várias emboscadas, e tenham sido descobertas várias minas anticarro, do meu pelotão só eu tinha sido ferido na cara por duas vezes, sempre coisa de pouca gravidade. 

No dia 2 de julho de 1964 foi montada pelo inimigo uma emboscada, onde rebentaram duas minas destruindo por completo uma autometralhadora e um granadeiro, matando dois camaradas nossos e ferindo com muita gravidade mais três, os quais levaram algum tempo para reconstruir os órgãos afectados e ainda hoje sofrem dessas maleitas.

A partir desta data nós ficamos totalmente desanimados e já não fizemos mais nada, até porque já tínhamos ultrapassado o tempo previsto para a nossa comissão. 

Regressámos então para Bissau numa lancha da marinha a fim de aguardar o regresso que teve lugar no dia 21 no Paquete Índia, chegando a Lisboa a 30 de julho.

À chegada esperavam-me os meus familiares que me receberam com toda a alegria e eu mais alegre estava porque em determinadas alturas pensava que já não regressava para os tornar a ver.

Nesse dia não pude seguir com eles visto que ainda tive que ir a Castelo Branco fazer o espólio dos fardamentos que trazia e receber as guias que permitiam passar à vida civil e só no dia 30 regressei.

Nesse dia tinha então todos os meus familiares e amigos à minha espera e começou aí uma nova vida". (...)



Guiné > Bissau > Cemitério Municipal > Talhão dos Combatentes Portugueses > s/d > 

Fonte: CECA (2001)


Os dois camaradas nossos, do Pel Rec Fox 42, terão sido os dois primeiros militares  de unidades de específicias de cavalaria (EREC / Pel Rec),  a morrer no CTIG, em 2/7/1964, no Cumbijã. 

Os seus corpos tiveram destinos diferentes, devido provavelmenmte à condição socioeconómica das respetivas famílias:

  • o 1º cabo AM Panhard Vitorino António Costa, natural de Monchique, ficou inumado no cemitério de Bissau, no talhão dos antigos combatentes portugueses, campa nº 956,
  • o sold AM Panhard José Carlos Firme Pires, natural de Lisboa, foi inumado no cemitério de Dois Portos, Torres Vedras.

Fonte: Excertos de: Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 8.º Volume; Mortos em Campanha; Tomo II; Guiné; Livro I; 1.ª Edição; Lisboa (2001), pp. 65/66.


No final de 1964, o CTIG dispunha já de um total estimado de 15150 militares ( incluindo tropas do recrutamento local):  eram 9650 em 1963 e serão  já 17100 em 1965. O número de mortos já ascendiam a 129 (em 1964) (contra 51 no ano anterior).

Fonte: Excertos de: Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II; Guiné; Livro III; 1.ª Edição; Lisboa (2015), pp. 359.



Guiné > Regão de Tombali > c. agosto de 1968 > Sangonhá destruída. Aqui está a prova do que restou de Sangonhá. Esta foto tem Direitos de Autor. Foi tirada com uma CANON

Foto (e legenda): © Mário Gspar (2015). Todos os direitos reservados (Edição:: L.G.).






Guiné > Carta da província >  Escala 1/500 mil (1961) > Detalhe: Posição relativa de Sangonhá,  Cacoca e Cameconde, junto à fronteira com a Guiné-Conacri, a sudeste.  

Infogravura: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2015)

Guiné 61/74 - P27365: Humor de caserna (218): Análise interpretativa da história de Fernandino Vigário, "O jovem alferes graduado capelão, cheio de sangue na guelra, que queria ensinar o padre nosso ao...Vigário"



Cartoon: adaptação e edição por Chat Português (GPT-5 Thinking mini). Disponível em https://gptonline.ai/. Imagem original: Fernandino Vigário  / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné  (2012)



1. Análise interpretativa da história “Um Alferes Capelão que queria ensinar o Padre Nosso... ao Vigário”, da autoria de Fernandino Vigário (*)

A narrativa do Fernandino Vigário, membro da nossa Tabancas Grande, insere-se num contexto histórico e cultural muito particular,  a Guerra Colonial Portuguesa, mais concretamente na então Guiné Portuguesa, no primeiro semestre de 1969. 

Apesar de decorrer num cenário de guerra (embora nos arredores de Bissau, na época uma zona  relativamente tranquilam a caminho de Safim, onde o capelão ia dizer a missa dominical),    o tom da história é ligeiro e humorístico, integrando-se, de acordo com o editor LG, na série “Humor de caserna”, género em que o quotidiano militar é visto com ironia, brejeirice e humanidade. 

Afinal, o humor ajuda a "climatizar os pesadelos". E até o absurdo das situações-limite, como o universo concentracionário dos quartéis, o isolamento no mato,  a guerra, a violência, a brutalidade, a morte.


(i) Contexto histórico e humano

Trata-se de uma pequena história do quotidiano de um soldado condutor,  onde apesar de tudo a guerra (operações, patrulhamentos, emboscadas, minas, etc.) fica entre parênteses. 

Era um quotidiano onde  havia também  lugar para  momentos de descontração,  convivência, "desopilanço", enfim,   episódios banais que serviam para aliviar o peso da guerra e a claustrofobia do arame farpado. Bissau  era um oásis de paz para quem vinha do mato... Chamavam-lhe, justa ou injustamente, a "guerra do ar condicionado", o "bem-bom"...

O protagonista, Fernandino Vigário, é um soldado condutor auto, da CCS / BCAÇ 1911 (1967/69),  conduz um jipe, enfim, uma função que o coloca frequentemente em contacto com figuras da hierarquia, como o alferes capelão (ou alferes graduado capelão), responsável por prestar assistência religiosa às tropas. 

Está em fim de comissão, à espera de regresayr à Metrópole (o que aconteceria em finais de maio de 1969, segundo informação do editor LG). É, portanto, um veterano, um "velhinho", em contraste com o capelão que, tudo o indica, é um "periquito", acabado de chegar da metrópole, e ainda desambientado. Ou seja, "não apanhado do clima".

O relato é uma memória pessoal, contada muitos anos depois (mais de 40), num tom simples, oral, quase confessional, revelando a vontade do autor de preservar a autenticidade da experiência vivida. 

Ele próprio reconhece que não escreve para acusar ou diabolizar ninguém,  nem para exaltar ou santificar, mas apenas para deixar um registo humano e bem-disposto. Tinha algumas dúvidas se devia / podia ou não ser publicado no blogue (não fosse interpretá-lo mal, os leitores, seus antigos camaradas).


(ii) O humor e a ironia

O cerne da história reside no contraste irónico entre o papel religioso do capelão e o seu comportamento, digamos,  “mundano”. 

O “jovem alferes capelão”, “cheio de sangue na guelra”, deixa transparecer a sua juventude e impulsos humanos,  elogiando de maneira desabrida,  para não  dizer  algo machista ou marialva (que era a cultura dominante na "caserna"),  mulheres cabo-verdianas, que passam na estrada. O vigor ou  entusiasmo com que o faz, choca o soldado Vigário, habituado a ver o clero com respeito, reverência, distância e reserva moral.

Há aqui uma dupla camada humorística:

  • por um lado, o apelido do soldado (“Vigário”) presta-se ao trocadilho, ao jogo de palavras com o termo eclesiástico (“vigário” = padre);
  • por outro, o próprio título, muito bem escolhido pelo autor (“Um Alferes Capelão que queria ensinar o Padre Nosso... ao Vigário")  é uma inversão cómica e simbólica: o padre que quer ensinar o “Padre-Nosso” a alguém chamado Vigário,  é, no fundo, o que menos parece cumprir o papel do “pastor" ou "guardião da doutrina e da moral".

Este jogo linguístico é típico do humor popular português, fundado na ironia, brejeirice e  irreverência, sem ultrapassar o limite do respeito, nem extravasar para a boçalidade.

(iii) O  retrato do capelão e a dimensão moral

Apesar do tom jocoso, ou até pícaro,  há uma dimensão moral implícita. O narrador não pretende “denegrir” a Igreja Católica, Apostólica Romana (com a qual de resto se identifica), como faz questão de sublinhar no "post scriptum" (PS).  Pelo contrário , parece querer humanizar e até desculpar  a figura ou as "bocas foleiras" do capelão (afinal "bastante jovem, devia ter a minha idade ou pouco mais").

 Em traços muito breves, mostra-nos um padre jovem, impulsivo e até mesmo algo ingénuo, que de algum modo quer "acamaradar" e "ser cúmplice" com o soldado que o conduz no jipe, utilizando a linguagem de caserna, para se pôr ao seu nível, talvez de maneira tosca e contraproducente. 

O paradoxo da situação é que o condutor está a levar o capelão, num domingo de manhã, até ao próximo quartel, Safim, onde irá dizer missa,  o "santo sacrifício da missa".  A viagem, relativamente curta (cerca de 20 km) deveria ser de recolhimento e contenção verbal, no entender do narrador.

O autor, Fernandino Vigário,  revela que, mesmo no contexto militar e religioso, as pessoas são falíveis, influenciáveis, permeáveis às tentações  do mundo, expostas à vida que gira à sua volta. Mais: são capazes de transgressão, ou muito simplesmente de "brincar com coisas sérias"... E, para mais, em África, em que todos os sentidos estão  à flor da pele, face a exuberância de cores, formas (a começar pelo corpo feminino), cheiros, sabores, ruídos, etc.

A reação do soldado é reveladora do seu carácter ponderado, respeitador, crente, senáo memso conservador: ele sente o desconforto da situação e do diálogo com o seu superior hierárquico,  mas não confronta o capelão que tem galões de alferes e que o pode teoricamente  "punir" (disciplinarmente falando)... Pelo contrário, responde-lhe com modéstia, ironia e diplomacia, mostrando-se fiel à hierarquia e à ética. 

É esse contraste, entre o alferes capelão, irreverente, "desbocado", e o soldado sereno, educado e contido, que sustenta a comicidade e o significado moral da narrativa.  Afinal, ele é que é o "Vigário" ( de apelido),  o que surpreende o capelão que, em tom brusco e deselegante, o interpela: " Vigário ou vigarista?!"...

(iv) Estilo e tom narrativo


A linguagem é coloquial, direta e oralizada, aproximando o leitor da voz do próprio narrador. O uso de expressões populares como:

  • “palonço”, 
  • “falava pelos cotovelos”,
  • "gaja boa", 
  • "jeitosa"
  •  "uff!", 
  •  “que brasa!”
  • "o gato comeu-te a língua"...

 reforça a autenticidade e o sabor local da história, projetando-a na tradição portuguesa das  conversas e anedotas de caserna.

O "post-scriptum" (PS) introduz uma nota reflexiva e conciliadora, típica de quem, ao olhar para o passado, o faz com compreensão e benevolência. A anedota deixa de ser apenas um episódio engraçado e passa a ser também um testemunho de humildade, tolerância,. reconciliação e humanidade:

(...) "Sou católico praticante, e nada me move contra a igreja e os padres, antes pelo contrário, porque sempre os respeitei e,  ao contar esta história, não pretendo denegrir nem esta, nem os padres, e estou convicto que aquele jovem capelão tenha dado um bom padre, para mim aqueles comentários sobre mulheres eram fruto da sua juventude." (...) (*)


(v) Síntese interpretativa

Em suma, esta história pode ser lida em três planos:

  • Histórico:  testemunho de uma vivência concreta da Guerra Colonial;
  • Humorístico:  episódio leve que satiriza as hierarquias e os comportamentos ( "Bem prega frei Tomás:  faz o que ele diz mas não o que ele faz");
  • Humano e moral:  reflexão sobre a juventude, a autoridade e a tolerância.

Mais do que uma simples “história brejeira”, o texto é um retrato vivo do quotidiano dos militares portugueses na Guiné: um microcosmo onde a fé, o humor, a informalidade e  a humanidade coexistem no meio da adversidade.

Resumo final:

A história de Fernandino Vigário revela-se uma crónica de costumes do tempo da Guerra Colonial,  divertida, humana e sem malícia (nem anticlericalismo...),  onde o autor transforma um encontro algo insólito num episódio de humor e reflexão moral sobre a condição humana, que é comum aos dois protagonistas, mesmo quando escondida sob a farda, de um, ou  sob a batina, de outro. (De qualquer modo, era  mais provável que o alferes graduado capelão fosse vestido de camuflado e com os seus galões dourados, contrariamente ao que o "cartoon", de traço classicizante,  deixa ver).

 Pesquisa: LG + Chat Português (GPT-5 Thinking mini). Disponível em https://gptonline.ai/.

(Condensação, revisão / fixação de texto: LG)
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Nota do editor LG:

(*) Último poste da série > 29 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27362: Humor de caserna (217): O jovem alferes graduado capelão, cheio de sangue na guelra, que queria ensinar o padre nosso ao...Vigário (Fernandino Vigário, ex-sold cond auto, CCS/BCAÇ 1911, Teixeira Pinto, Pelundo, Có e Jolmete 1967/69)

( O título original é  "Um Alferes Capelão que queria ensinar o Pai-Nosso ao Vigário".)

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27364: Historiografia da presença portuguesa em África (501): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa, 1946 (59) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Abril de 2025:

Queridos amigos,
O Governador anunciara na receção que lhe fora feita pelo Conselho de Governo, que iria fazer o plano de ação governativa com a cooperação de muitos, mas trazia um ideário bem talhado, já nele trabalhara em Lisboa: acabar obras públicas em execução, dinamizar outras, contava com o apoio técnico do Gabinete de Urbanização Colonial; impunha-se criar uma política de saúde, fazer escolas, infraestruturas de diferente tipo, estradas, pontes, o maior número possível de caminhos viáveis; e rever a dinamização agrícola. E podemos constatar que se envolveu numa política cultural que não tinha precedentes: o museu, o centro cultural, o boletim cultural, os homens das Letras e das Ciências que virão até à Guiné. Por isso, se entendeu que se deviam citar alguns parágrafos do que ele escreveu em 1946, nunca esconde que tem pouco tempo pela frente, o que é verdade, estará poucos anos na Guiné, pôs em definitivo a colónia no mapa.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial da Colónia da Guiné, 1946 (59)


Mário Beja Santos

À semelhança do que acontecera em 1945, repetem-se as autorizações de abertura de linhas de crédito, não se podem fazer omeletes sem ovos; o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa vai estar à venda, o governador aplica-se em planos agrícolas, desde a orizicultura aos apoios à zootecnia; entra em vigor o código da estrada da colónia da Guiné, no final do ano o Boletim Oficial publica o Regulamento dos Serviços de Saúde da Colónia da Guiné, é a Portaria n.º 165, Suplemento ao n.º 52 do Boletim Oficial n.º 21, de 30 de dezembro. Aparecem estabelecidos os serviços centrais, locais, a rede sanitária geral, bem como os estabelecimentos e serviços especiais. Tenha-se atenção ao artigo 41, referente à prestação da assistência:
“A assistência médica, cirúrgica e farmacêutica será sempre gratuita: aos indígenas que não estejam ao serviço de particulares; aos indigentes; ao pessoal missionário; às praças de pré do Exército e da Armada, bem como às pessoas de família exclusivamente a seu cargo; aos internados em estabelecimentos de deficiência; aos presos e detidos nas cadeias, presídios e colónias penais.”
Pelo Diploma legislativo n.º 1:337-A, suplemento ao n.º 52 do Boletim Oficial n.º 23, de 30 de dezembro: têm direito a assistência médica, cirúrgica, obstétrica e estomatológica gratuitas, além daqueles a quem o regulamento de saúde da colónia já as concede, todos os funcionários públicos civis e militarem em ativo serviço, contratados e assalariados e os aposentados e reformados e as suas famílias, quando os proventos do agregado familiar a cuja convivência pertençam, sejam inferiores a 20 mil escudos anuais.

Voltando atrás, ao Boletim Oficial n.º 12, de 25 de março desse ano, o governador encarrega Fausto Duarte, Secretário da Comissão Municipal de Bolama de preparar o anuário da Guiné Portuguesa, deverá entregar o original até ao fim do mês de outubro desse ano, ficando os serviços públicos obrigados a fornecer a este organizador os elementos não confidenciais. No Suplemento ao n.º 41, do Boletim Oficial n.º 16, com data de 16 de outubro, publica-se o decreto n.º 35:686, prende-se com a necessidade de melhorar as condições de vida das Praças reformadas dos extintos quadros coloniais residentes na metrópole, pelo que fica autorizado o governador da colónia da Guiné a abrir créditos especiais.

Mas nada melhor que pôr Sarmento Rodrigues no discurso direto. Numa mensagem enviada à Revista da Marinha, no seu número dedicado ao V Centenário da Descoberta da Guiné, com data de 31 de janeiro de 1946, escreve o seguinte:
“Falar na Guiné Portuguesa é dizer aos portugueses que não a conheçam que a dois passos de Lisboa todos poderiam encontrar a mais pitoresca, a mais variada, a mais prometedora das terras portuguesas de África.
Na verdade, em nenhuma outra parte do Império se poderia encontrar uma tal profusão de raças, de crenças, de costumes, de trajos, do que na Guiné. Desde os Felupes, bravios, honestos e sóbrios, aos Balantas, ladrões sentimentais, trabalhadores, foliões e bêbados; aos Bijagós cheios de pitoresco; e aos Fulas e Mandingas que trazem consigo as vestes, tradições e traços do mundo árabe; desde as idílicas várzeas onde se criam milhares de toneladas de arroz, aos milhões de palmeiras emaranhadas que dão à paisagem aspetos de beleza incomparável; das montanhas de amendoim que se erguem em toda a parte na época das colheitas, à labuta incansável dos transportes fluviais; da saia de malha de canais e rios que recortam o litoral e sulcam as terras, às numerosas ilhas e às solidões continentais do Gabu; das chuvas diluvianas, aos calores ardentes e às frescas brisas do fim do ano; das mulheres airosas e homens ativos…”


Aquando da exposição que fez, na 2.ª Conferência de Administradores, em 4 de dezembro, revela de novo a fibra do seu caráter:
“Nós não queremos obras de violência. O que for feito sê-lo-á sob uma ideia de justiça e de consistência. Nunca será demais pôr em relevo os transcendentes benefícios que os trabalhos já feitos dos ouriques de Bissau, Cacheu e Mansoa trouxeram à Guiné.
Valorização das terras, combate à miséria e à vadiagem, moralização da mentalidade dos indígenas – paralelamente à demonstração que o Governo faz da sua verdadeiramente paternal atitude, que não envolver prepotência e não exclui a firmeza.
Nós não viemos cá para passar a vida e deixar uma herança que nos sirva de escárnio. Por isso, temos de pôr completamente de parte a ideia de enganar para agradar. Agrade-se, mas com provas evidentes de trabalho feito. Não só feito, como bem feito.
Já por vezes tenho dito que ao chegar à Guiné me pareceu que tudo ruía em redor de mim. Era uma pressão em parte exata – porque os prédios caíam ou exigiam demolição: as secretarias de Canchungo e S. Domingos, a igreja de Farim, a ponte de Bubaque, etc., etc. – dizia, impressão em parte exata, mas também influência pelo grande trabalho de obras inacabadas, umas pela sequência natural dos trabalhos e pelas dificuldades da guerra, outras abandonadas, não se sabe porquê. Esforcei-me por descobrir as feridas primeiro, curá-las depois.
Nada de estatísticas rosadamente falsas, nem problemas a que se volte a cara para não os não resolver. É preciso que tudo seja são e posto à luz clara do dia.”


Discursando sobre o papel que cabe ao Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, dirá o seguinte:
“Este Centro, de âmbito ilimitado, desprende-se da luta de interesses económicos, tão dominante nesta época e nesta terra, para marcar a existência, e também a superioridade, do espiritual.
As suas diretrizes estão traçadas. Mas desejaria especialmente referir-me a um aspeto particular, de importância primária. É ao superior interesse que espero que lhes mereça o estudo do que diga respeito aos valores indígenas, das suas artes primitivas, das suas línguas, costumes e tradições, de tudo que possa registar uma existência, uma personalidade que o tempo fatalmente destruirá. O Boletim Cultural, cujo terceiro número acaba de chegar, é uma prova, e bem eloquente, do que há de valores dispersos pela província. A Guiné Portuguesa deixou de estar isolada no Sudão, na África, no Globo. Entrou em comunhão com o Mundo Português.”


E despeço-me com as palavras que ele enviou ao Jornal da Marinha Mercante para o seu número comemorativo do V Centenário da Descoberta da Guiné:
“Não é ela (a Guiné) ainda o que poderá vir a ser. Sofre de vários males, que espero do tempo e do juízo dos homens ver sarados. Ainda persiste, em apreciável escala, a miragem dos negócios simples e rápidos. É uma sobrevivência dos tempos ingratos em que o colono era cercado de inimigos, fruto do clima e das gentes rebeldes.
Não devemos deixar de frisar que não é pequena, podendo mesmo considerar-se das mais valiosas dentro das nossas colónias, a iniciativa de trabalho dos indígenas.”

Notícia da visita à Guiné do Subsecretário de Estado das Colónias
Sarmento Rodrigues na Ilha Roxa com as autoridades locais
Em Bubaque com o régulo Gen-Gen
Bolama, cerimónia do Juramento de Bandeira
Encontrei há dias o Dr. João Loureiro, responsável pela publicação do acervo dos bilhetes-postais de todo o Império, devo-lhe a atenção pessoal por me ter oferecido livros da Guiné, já referenciado no nosso blogue. Deu-me notícia das ofertas que está a fazer à Sociedade de Geografia de Lisboa e lembrou-me que entregara um livrinho feito por um juiz natural do Estado da Índia que estivera em Bissau, devia-se-lhe a planta da Praça de S. José de Bissau, é o desenho original, depois republicado em inúmeras edições de outros autores. Mordido pela curiosidade, pedi para ler a obra e fotografar a planta original, é esta.

(Continua)

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Nota do editor

Último post da série de 22 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27341: Historiografia da presença portuguesa em África (501): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa, finais de 1945 (58) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P27363: Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci... (Jaime Silva, ex-alf mil pqdt, BCP 21,Angola, 1970/72) (1): A minha (im)possibilidade de desertar


Figura 6 > Regresso de uma operação no Norte de Angola - Montes Mil e Vinte. Resultado: um soldado morto do 3º pelotão. (Arquivo de Jaime Silva) (Fonte: Jaime Bonifácio Marques da Silva, "Não esquecemos os jovens militares do concelho da Lourinhã mortos na guerra colonial" (Lourinhã: Câmara Municipal de Lourinhã, 2025, 235 pp., ISBN: 978-989-95787-9-1), pág,. 751 (*)





Figura 1 > Estudo prévio para monumento em memória dos combatentes da guerra colonial (2005), Arq. Augusto Vasconcelos  (Fafe) (Fonte: Silva,  op. cit, 2025, pág. 7)



1. Com a devida vénia e autorização do autor, Jaime Bonifácio Marques da Silva (antigo alf mil pqdt, 1º CCP / BCP 21, Angola, 1970/72, conterrâneo do nosso editor LG; membro da Tabanca Tabanca desde 21/1/2024, com c. 120 referências no nosso blogue), passamos a criar uma nova série "Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci..."

Foi condecorado com a medalha de Cruz de Guerra de 3* Classe,

A série que vamos agora iniciar, tem o seu nome.  Iremos publicar cerca de 15 postes, com excertos das pp. 75-98 do seu livro, correspondentes ao Capítulo Dois:



Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci...  

1. A minha (im)possibilidade de desertar


por Jaime Silva


Neste ponto do texto pretendo contar experiências e aspetos marcantes do meu percurso na guerra colonial, enquadrando-o na minha circunstância cultural, social e local até chegar às portas da guerra em Angola.


Jaime Silva
Da ideia à concretização final deste meu trabalho permeiam já vários anos. A ideia nasce da experiência pessoal, da dureza da vida e da guerra em Angola. Experiência que, num primeiro momento, se revestiu de solidão, na tentativa de esquecimento da guerra para anos mais tarde, se abrir a algo que fizesse jus e reconhecimento sobre uma geração que merece sair do esquecimento individual e coletivo. Assim, fui participando em várias iniciativas e empenhando-me em pequenos contributos.

Porém, só há cerca de uma década, com o regresso à minha terra natal, Lourinhã, começa a fervilhar a ideia de fazer um trabalho que revisitasse e recuperasse para a memória coletiva os meus conterrâneos que combateram e morreram pela pátria que os chamou e obrigou a fazer a guerra. Com efeito, sofreram e perderam a vida às mãos de uma guerra injusta e de uma nação que os votou ao esquecimento. Participei na guerra, durante dois anos e meio e, como alferes miliciano, comandei um pelotão de soldados e sargentos, integrado nas tropas paraquedistas, sempre no “gastalho”.

Como combatente lourinhanense, sobrevivente de uma guerra a que não pude fugir, sinto-me agora mobilizado para contribuir para a reposição da história desta injusta guerra. Partilho com muitos outros e outras, o dever de memória às vítimas desta, particularmente, de todos os que nela pereceram. Esta é a razão do meu testemunho no contexto deste livro.

Voltando à minha circunstância, direi apenas que nasci e cresci num Portugal de obscurantismo bafiento e de “pobreza descarada e generalizada” (Tavares, citado Sousa, 2024: 09); vim à luz do dia, no mês de julho, do ano de 1946, numa aldeia de trabalhadores rurais, pertencente ao concelho da Lourinhã. 

A realidade escolar desse tempo era de uma grande percentagem de crianças que não terminava a 4.ª classe (vindo, muitas deles a concluí-la, mais tarde, na tropa). Muito menos tinham oportunidade de pensar em continuar os seus estudos.

Neste contexto de miséria alargada, também no concelho da Lourinhã, calhou-me, na minha sorte, ter tido a oportunidade de ir para o seminário. Foi nos finais da década de 50. Tinha doze anos, quando transpus o portão de acesso a uma casa desconhecida. 

Nos primeiros tempos, senti-me completamente desenraizado, vivendo num ambiente de dilemas, semelhantes aos tão bem retratados por Vergílio Ferreira na sua obra, "Manhã Submersa", e, depois, por Lauro António, no filme com o mesmo nome. 

No verão de 1968, abandono o seminário. Era um jovem de 22 anos, politicamente ignorante, mas com uma certeza - teria, imediatamente, que cumprir o serviço militar obrigatório.

Relatarei, nesta parte do trabalho, vários momentos marcantes que vivi na guerra sendo que, estes e outros são uma recordação penosa, continuam a fazer, quotidianamente, parte da minha guerra. (...)
___________

Nota de JS/LG:
 . 
(#) O termo "gastalho", na gíria dos paraquedistas portugueses durante a guerra colonial em Angola (1961/75), é equivalente a porrada, mato, situação de dificuldade, combate intenso ou local perigoso, onde as tropas pára-quedistas muitas vezes combatiam; o vocáculo ainda náo foi grafado nos nossos dicionários com esta aceção (Fonte: JS/LG + assistente de IA / Gemini).


1. Eu não esqueci: a minha (im)possibilidade de desertar



Eu não esqueci que, em finais de setembro de 1968, no período entre a inspeção militar e a incorporação na EPI (Escola Prática de Infantaria) em Mafra, um dia, já perto da meia noite, sou desafiado pelo meu amigo José Manuel Dionísio a desertar para França, “a salto”.

Nem sequer pude pensar nem concretizar essa possibilidade, porque não tive 10 contos  para pagar ao “passador”. O episódio passou-se mais ou menos assim:

− Jaime, eu vou desertar, não quero ir para África para morrer na guerra. Vamos cinco, a “salto”, e tenho um lugar para ti, no táxi. Se quiseres, tens uma hora para ir a casa. Traz uma mala pequena com roupa e dez contos para pagar ao passador. Temos de atravessar os Pirenéus "a salto".

Olhei para o meu amigo e respondi-lhe:

−  Ó Zé Manel, onde é que eu tenho dez contos?!

−  Então, vai o Vítor em teu lugar.

Ele saiu a correr… E eu fiquei!...

(Continua)
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Fonte: Excertos de: Jaime Bonifácio Marques da Silva, "Não esquecemos os jovens militares do concelho da Lourinhã mortos na guerra colonial" (Lourinhã: Câmara Municipal de Lourinhã, 2025, 235 pp., ISBN: 978-989-95787-9-1), pp. 75-79.

(Revisão / fixação de texto, negritos, LG)~

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Notas do editor LG:

(*) Vd. postes de 

23 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26949: Notas de leitura (1811): O livro do Jaime Bonifácio Marques da Silva, "Não esquecemos os jovens militares do concelho da Lourinhã mortos na guerra colonial" (2025) (235 pp.) - Parte I: apresentação de Luís Graça

Guiné 61/74 - P27362: Humor de caserna (217): O jovem alferes graduado capelão, cheio de sangue na guelra, que queria ensinar o padre nosso ao...Vigário (Fernandino Vigário, ex-sold cond auto, CCS/BCAÇ 1911, Teixeira Pinto, Pelundo, Có e Jolmete, 1967/69)



Guiné > Região do Cacheu Teixeira Pinto (?)  CCS / BCAÇ 1911 (1967/69) O sold cond auto Fernandino Vigário, no seu jipe


Guiné >  Bissau > Café Bento / 5ª Rep (?) > s/d (c. 1967/69) >  "
Malta amiga, maiatos, num café de Bissau: a partir da esquerda:  (i) 1.º cabo op cripto/QG Domingos; (ii) Sousa, da CCAÇ 1743; (iii)  um militar náo identificado; (iv)  1.º cabo escriturário/QG;  e (v) eu, Fernandino Vigário
 

Fotos (e legendas): © Fernandino Vigário  (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O Fernandino Vigário foi soldado condutor auto,  CCS / BCAÇ 1911 (Teixeira Pinto, Pelundo, Có e Jolmete, mai 1967/ mai 69); é membro da Tabanca Grande desde 
112/12/2011; é autor da série "As Minhas Memórias" (de que infelizmente só se publicaram dois postes); é maiato, natural e residente em Nogueira da Maia, cidade da Maia, distrito do Porto.

Tem muita a honra no seu apelido, Vigário. E já aqui publicámos , em 2012, uma história divertida, que se passou com um alferes graduado capelão, num domingo, em que ele foi dizer missa a Safim e outros destacamentos do setor de Bissau, onde havia pelotões do BCAÇ 1911. O Vigário foi destacado para levar o capelão.

 Em mensagem enviada do nosso coeditor Carlos Vinhal, com data de  2 de janeiro de 2012, o Vigário deu os seguintes elementos importantes para se perceber o texto e o contexto:

(...) Aproveito para enviar uma história passada comigo e um alferes capelão que, creio, estava no QG/,CTIG, não sei o seu nome nem o conhecia. 

Entre missas e funerais eu conheci vários, havia um que, se não estou em erro, com o posto de tenente,  corpo franzino mas espírito de oficial militar, não dava grande confiança aos soldados.

Vai também duas fotos, uma sou eu no jipe, a outra sou eu mais três amigos e vizinhos da Maia que estavam no QG. O outro elemento não faço a mínima ideia quem seja. (...)

A história passa-se no 1º semestre de 1969, talvez no final do 1º trimestre / princípio do 2º trimestre. O Vigário regressa  à metrtópole, com o seu batalhão, em maio de 1969, juntamente com o capeláo, Abel Gonçalves, que ele conhecia. Por exclusão de partes, o protagionista da história não podia ser o padre Abel Gonçalves, já falecido (em 2019),   figura popular entre o pessoal do  BCAÇ 1911. 

Nessa altura, o capelão-chefe, que estava no QG/CTIG, em Santa Lusia. seria o padre Manuel Joaquim da Silva Capitão (17/1/1968 - 3/3/1970) que veio render o padre Bártolo Paiva Pereira (1966/68) (*).

Mas não é relevante tentar descobrir quem terá sido o "jovem alferes capelão", cheio de sangue na guelra, que queria dar uma lição ... ao Vigário. É mais uma história brejeira que fica bem na série "Humor de caserna" (**).



Um Alferes Capelão que queria ensinar o Padre Nosso...  ao Vigário

por Fernandino Vigário


Estou de volta, e às voltas com a minha memória: como não tenho nada escrito,  vou tentar reconstituir uma história passada comigo e um alferes capelão. Hesitei se a devo contar ou não, mas resolvi contar,  nem que seja para ficar em arquivo.

Eu, Fernandino Vigário, ex-soldado condutor auto, estava em Bissau no quartel conhecido por "600". Já no fim da comissão, numa manhã de domingo (não me recorda a data, mas deve ter sido num dos primeiros meses de 1969), fui escalado para transportar um alferes capelão, ainda bastante jovem,  a três ou quatro destacamentos limítrofes de Bissau, Safim e outros, onde estavam destacados Pelotões de Companhias do meu BCAÇ 1911.

Transportar um capelão, para ir celebrar a Eucaristia aos ditos destacamentos, foi serviço que eu fiz várias vezes, e nem sempre foi o mesmo. 

O que aconteceu nesse domingo, com um bastante jovem, devia ter a minha idade ou pouco mais, que eu não o conhecia, nem nunca soube o nome porque só fiz um único serviço com ele.

Nesse domingo de manhã, depois de darmos os bons dias e trocarmos algumas palavras de circunstância, iniciámos a viagem que nos iria levar aos ditos destacamentos. 

O capelão, além de jovem, era simpático e extrovertido, falava pelos cotovelos, e para espanto meu, ainda na estrada de Santa  Luzia,  ao cruzarmos com uma mulher ainda jovem, cabo-verdiana, por sinal bem jeitosa, atira a seguinte frase:

 
−  Ena,  pá! Que gaja boa. Uff, que brasa!

Percorridas mais umas dezenas de metros, e de novo ao avistar outra mulher cabo-verdiana, repete os comentários. Eu, perante este cenário e vindo de um padre, olhei-o de soslaio, meio petrificado e a pensar no que é que viria a seguir. Seria aquilo verdade?

Como eu falava pouco, na verdade sou um pouco introvertido e reservado, havia também a hierarquia, alferes e soldado, a separar-nos, o capelão resolve puxar por mim.

−  Então, condutor, não dizes nada, o gato comeu-te a língua ?!... Pra começar diz-me lá o teu nome?!

− Fernandino Vigário, meu Capelão, mas todos me tratam por Vigário.

−  Vigário? Oh, pá, mas és Vigário ou és vigarista?!

Hesitei um pouco, mas logo respondi:

−  Meu Capelão, eu sou Vigário de nome, mas sei que há por aí uns Vigários com obras feitas. Olhe, alguns até vieram parar a Bissau.

−  Pois é, condutor, para quem falava pouco já estás a falar de mais, eu vou ter que te ensinar o Pai-Nosso.

Tive que me fazer um pouco palonço, não senti a rigidez militar e respondi:

−  Meu Capelão, não é necessário! Eu na minha parvónia aprendi a Doutrina toda, foi o meu pai que me ensinou. Até fiz a comunhão solene!

−  O teu pai ensinou-te a Doutrina mas foi às avessas, agora quem te vai ensinar sou eu.

−  Meu Capelão, peço desculpa se o ofendi, mas não vejo onde o tenha feito, e longe de mim ofender quem quer que seja.

−  Bem condutor, aceito as tuas desculpas e não se fala mais nisso, afinal hoje é Domingo, é o dia do Senhor, e de ouvir a Santa missa.

PS - Sou católico praticante, e nada me move contra a igreja e os padres, antes pelo contrário, porque sempre os respeitei e,  ao contar esta história, não pretendo denegrir nem esta, nem os padres, e estou convicto que aquele jovem capelão tenha dado um bom padre, para mim aqueles comentários sobre mulheres eram fruto da sua juventude.

(Revisão/ fixação de texto, título: CV / L G)

 
2. Comentário do editor LG:

Fernandino, uma corrida de jipe, a caminho da missa, não dá para se ter grandes conversas e conhecer em profundidade as pessoas, muito menos um capelão (que é antes de tudo... um senhor oficial, militar, fardado, homem...). Havia, nessa época, uma atitude algo reverencial mas também ambivalente, para não dizer,  hipócrita,  em relação ao clero. 

Mas achei interessante as tuas observações e o teu humor, brincando com o teu apelido, Vigário...

"Ensinar o Padre Nosso ao Vigário" é , afinal, um dos  muitos, nossos, fabulosos provérbios populares... Tem muito que se lhe diga... Acho que se podem fazer várias leituras da tua pequena história...Mas deixemos isso aos leitores.

 O provérbio popular "Ensinar o padre nosso ao Vigário" significa tentar ensinar algo a alguém que já é "catedrático na matéria", tem autoridade, é especialista, sabe muito do assunto.

É usado, pois,  para descrever uma situação em que uma pessoa, muitas vezes com menos experiência, traquejo ou conhecimento, presume instruir outra que tem muito mais  autoridade na matéria em questão.

Neste caso, não é preciso recordar que o "Padre Nosso" (ou o Pai Nosso) é a oração mais básica e elementar do cristianismo, todo a gente a sabe de cor, do tempo da catequese (aqueles que foram batisados e andaram na catequese). 

O Vigário (padre adjunto a um pároco, "substituto do prior", do latim "vicarius", "aquele que age em lugar de outro"), sendo  um sacerdote católico, tem a obrigaçáo saber e ensinar o "padre nosso".  Portanto, tentar "ensinar o padre nosso ao vigário"  é uma ação completamente desnecessária, despropositada, redundante e até presunçosa.

A expressão é usada coloquialmente,   de forma crítica ou humorística, quando alguém está a dar conselhos óbvios ou a tentar explicar algo a quem claramente domina o tema. Em suma, é também uma crítica ironica à presunção ou ingenuidade de  tentar ensinar algo a quem já é mestre ou perito no assunto.

 Expressões equivalentes: "Ensinar a missa ao padre.", "Querer ensinar o peixe a nadar"; "Ensinar o gato a caçar ratos"; "Ensinar o pescador a pescar"; "Descobrir a pólvora".

PS - Vígário também pode querer dizer, no Brasil e nalgumas regiões de Portugal," a pessoa que mostra manha ou esperteza para enganar outrem" (vd. a expressão "conto-do-vigário").  A nossa língua é tramada, Fernandino ( e não Fernandinho)...

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Notas do editor LG:

(*) Vd. poste de 17 de setembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19023: Os nossos capelães militares (9): segundo os dados disponíveis, serviram no CTIG 113 capelães, 90% pertenciam ao Exército, e eram na sua grande maioria oriundos do clero secular ou diocesano. Houve ainda 7 franciscanos, 3 jesuitas, 2 salesianos e 1 dominicano.