sexta-feira, 21 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P977: Antologia (52): A guerra que Portugal quis esquecer (Luís Carvalhido, ao Jornal de Barcelos)

1. Em 2003, nosso camarada Luís Carvalhido, ex-soldado de transmissões da CCS do BART 3873 (Bambadinca, 1972/74), natural e residente em Barcelos, vice-presidente da Associação Portuguesa de Veteranos de Guerra, deu uma entrevista ao Jornal de Barcelos. Essa entervista foi conduzida pelos jornalistas Zita Foinseca e José de Coelho.

2. Por achar que as declarações do Luís Carvalhido (1) deveriam merecer uma mais ampla divulgação - e no mínimo chegar ao conhecimento de todos nós, camaradas e amigos da Guiné - pedi autorização para reproduzir esse trabalho jornalístico no nosso blogue. Aqui vai um excerto da mensagem que enviei ao Jornal de Barcelos:

Sra. Directora do Jornal de Barcelos:

Antes de mais, queira aceitar os meus cumprimentos e as minhas felicitações pelo sítio na Net que é o Jornal de Barcelos ‘on line’… É um grande contributo para a defesa dos legítimos interesses da população e da identidade cultural da região, e de Barcelos em particular.

Venho-lhe pedir autorização para reproduzir, no todo ou em parte, a entrevista de Luís Carvalhido a esse jornal, reproduzida na edição de 9 de Julho de 2003. Na altura, o Luís Carvalhido era vice-presidente da Associação Portuguesa de Veteranos de Guerra.

Sou o webmaster do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, o maior blogue, em língua portuguesa, sobre a experiência da guerra colonial na Guiné-Bissau. Formamos uma tertúlia virtual com mais de cem membros, de que também faz parte o Luís Carvalhido, ex-soldado de transmissões da CCS do BART 3873 (Bambadinca, 1972/74), natural e residente em Barcelos (...).

3. A resposta do jornal veio, ontem, neste termos:

Boa tarde!

Obrigada, primeiramente, pelas palavras que teve a amabilidade de nos endereçar.

Ainda sobre o
Jornal de Barcelos – On Line, que não tem sido actualizado nas últimas semanas por razões de ordem técnica, em breve já irá poderá aceder através de uma versão renovada.


Quanto à reprodução da entrevista em causa, poderá utilizá-la nos moldes que entender desde que mencione a fonte e o autor. Neste caso,
Zita Fonseca e José de Coelho / Jornal de Barcelos.


Com os melhores cumprimentos
Zita Fonseca


4. Aqui vai, então, transcrita com a devida vénia, do repectivo sítio (Jornal de Barcelos), a entrevista do Luís Carvalhido, vice-presidente da Associação Portuguesa de Veteranos de Guerra e membro da nossa tertúlia.

A divulgação desta entrevista (que no essencial não perdeu actualidade e oportunidade) não implica qualquer juízo de valor, a favor ou contra, sobre o conteúdo das perguntas que foram postas ao nosso camarada Luís Carvalhido bem como das suas respostas, nem muito menos sobre a APVG de que ele é dirigente.





"O país quis esquecer a guerra colonial"
Os ex-combatentes da guerra colonial são dezenas de milhar e querem que, finalmente, o país reconheça o serviço que lhe prestaram. Nesta entrevista, Luís Carvalhido (na foto), vice-presidente da Associação Portuguesa de Veteranos de Guerra fala da guerra, do esquecimento e das sequelas que ela deixou numa geração inteira.

Entrevista a Luís Carvalhido
por Zita Fonseca e José de Coelho
Jornal de Barcelos. 9 de Julho de 2003 (com a devida autorização)


Passados quase trinta anos sobre a descolonização, o país começa, finalmente, a encarar os efeitos da guerra colonial sobre uma geração de jovens. Muitos ficaram marcados para sempre porque não há guerras limpas. Não há guerras sem atrocidades. Não se faz a guerra sem matar. E muitos desses jovens de vinte anos- os “meninos das suas mães” que não foram preparados para o mal - vivem ainda amarrados aos seus pesadelos. Ainda hoje, o stress de guerra corrói vidas.

Luís Carvalhido, vice-presidente da APVG onde estão associados mais de 40 mil ex-combatentes, diz que todos quiseram esquecer o Vietname português. Agora, exigem reconhecimento pelos serviços prestados ao país e apoio para quem deles precisa.


Jornal de Barcelos - Para que serve a Associação Portuguesa de Veteranos de Guerra?
Luís Carvalhido - Serve para defender os interesses dos ex-combatentes. Ao longo do tempo, sobretudo no fim da guerra colonial, houve uma tentativa por parte do poder político, do poder civil, de esquecer ou tentar esquecer o que tinha sido a guerra colonial. Presumo que houve uma tentativa de confundir colonialismo com dever pátrio. Houve uma necessidade de esquecer esta intervenção querendo-se misturar tudo no mesmo saco, querendo desvirtuar o papel dos jovens portugueses chamados à força para defender uma parcela de terreno que nos tinham ensinado ao longo da vida que era nossa. Durante alguns anos conseguiu-se confundir a opinião pública.
Houve também uma tentativa enorme de esquecer por parte das famílias porque aquilo as fazia relembrar coisas más. Isto, associado à força da nossa idade, fazia com que não sentíssemos os efeitos dessa guerra. As pessoas andaram mais ou menos esquecidas durante algum tempo.
Entretanto, o tempo foi correndo e algumas doenças só começaram a aparecer após alguns anos. Sobretudo os fenómenos de stress pós-traumático que se começaram a manifestar mais intensamente a partir dos 40 anos. Isso pôs em evidência as necessidades de algumas pessoas que se começaram a agrupar no sentido de tentar lembrar essas necessidades e, sobretudo, aquilo que nos era de direito e que era relembrar aquilo que tínhamos sido.
Ao contrário do que muita gente tentou demonstrar, nós não fomos o produto duma geração colonialista. Nós fomos uma geração excelente porque cumprimos exactamente o que nos tinha sido dito. E cumprimo-lo de tal maneira que presumo que nenhum povo dos países mais desenvolvidos seria capaz de o fazer naquelas condições. Nós resistimos ao terror, à falta de comida e perante um inimigo que estava no seu próprio território e melhor equipado e resistimos à falta de ensinamentos.

Por isso, esta Associação tem por objectivo fazer relembrar todo o passado que foi esquecido. E para quê? Exactamente para fazer prevalecer os nossos direitos que passam, fundamentalmente, pela criação do estatuto de veteranos de guerra. Esse estatuto deverá definir o que é um veterano de guerra e aquilo a que tem direito na sociedade enquanto elemento que deu um alto contributo para a nação. Os ex-combatentes têm entre 50 e 65 anos. Queremos estabelecer parcerias com a Segurança Social para criar lares de terceira idade, centros de dia e serviços de apoio domiciliário.

JB - O que é que pretendem que o Estado vos reconheça?

LC - Queremos um estatuto próprio que, depois, nos conferirá um conjunto de pormenores a estudar em relação àquilo que são as nossas necessidades. Este estatuto conduzirá, seguramente, à contagem do tempo do serviço militar em África acrescido de cem por cento. Ou seja: que para efeitos de reforma esse tempo conte a dobrar. Isto já é uma garantia (está a ser trabalhado no Arquivo Geral do Exército). Tivemos o compromisso do senhor ministro da Defesa de que em Janeiro isto ficaria pronto a ser regulamentado e a entrar em acção. Esta tem sido uma das nossas lutas que, finalmente, se está a concretizar.
Estamos, ainda, a lutar pela concretização efectiva da rede nacional de apoio para que todos os ex-combatentes possam ser encaminhados através dos médicos de família e dos serviços psiquiátricos dos hospitais, para os hospitais militares. É outra promessa que foi feita, já existem os modelos para serem preenchidos e alguns já estão colocados nas administrações regionais de saúde. Entretanto, por falta de articulação com os serviços, alguns médicos ainda estão um bocado renitentes até porque lhes dá algum trabalho. Por isso ainda não está funcionar muito bem, mas temos a promessa do senhor secretário de Estado de que isto vai ser posto em prática.
Tão ou mais importante, é a pretensão de conseguirmos a reforma aos 55 anos para os indivíduos que estiveram no teatro das operações. Defendemos isto porque alguns estudos apontam que um indivíduo que tenha estado numa zona de guerra sofre um decréscimo de vida saudável de cerca de cinco a 15 anos. Sabemos que pelo momento económico que o país atravessa, isso é difícil, mas vamos continuar a pôr esta questão em cima da mesa porque, afinal de contas, somos mandatários duma vontade de milhares e milhares de pessoas. Estivemos há dias com o senhor secretário de Estado dos Combatentes que nos pareceu razoavelmente sensibilizado para o fenómeno.

Finalmente, começa a ser reconhecido que nós existimos, que fomos especiais, que nós servimos.

JB - O país foi ingrato para convosco?
LC - O país foi ingrato! O país não teve a capacidade de reconhecer isso e fez uma coisa ao contrário que foi tentar ocultar. Quando um povo não é capaz de reconhecer o seu próprio mérito, mesmo na adversidade, fraco é este povo ou fraco é quem o lidera. Actualmente, as coisas estão a vir ao de cima, o movimento está a crescer. A prova disso é esta Associação que é a maior com 40 mil membros, mas há outras com alguns milhares. Isso quer dizer que este movimento não vai parar. Isto assumiu proporções de bola de neve.

JB - As consequências mais visíveis da guerra colonial eram, para além dos mortos, os soldados que voltavam estropiados. Nos outros, as consequências não se viam, a não ser às vezes, quando a família de algum comentava que veio de África...
LC - Que veio marado, cacimbado, ninguém o pode aturar.

JB - Isto eram coisas que as famílias viviam dentro das quatro paredes e passavam despercebidas. Agora, a ideia que se começa a implantar é que as consequências psicológicas da guerra têm uma dimensão muito grande.
LC - Enorme. Há dois tipos de feridos e de feridas. Há os chamados deficientes das forças armadas, que estão à vista, e há os deficientes encobertos. E a própria família, sendo vítima do sistema - e o sistema era de encobrimento - tinha de acobertar os seus doentes suportando tudo à luz do modelo duma pretensa família católica. Ou seja, se o marido era um stressado, um indivíduo cacimbado como se diz na gíria, batia na mulher ela, porque era uma boa católica, tinha de aguentar. Se o marido batia nos filhos pedia-lhes que tivessem paciência. Durante muito anos foi assim. Finalmente, há cerca de meia dúzia de anos, fruto das lutas de pessoas mais atentas, está reconhecido o stress pós-traumático de guerra. Isto veio ajudar a quebrar os tabus. Começou a encarar-se com naturalidade a possibilidade de cada um transmitir ao seu psiquiatra ou psicólogo um fenómeno que estava associado a efeitos recorrentes.

À luz dos anos volvidos, penso que comecei a ter stress de guerra quando tinha 14 anos e vi a minha mãe chorar por um vizinho que tinha morrido em Angola e passado um ano morreu outro. Isto ia-nos preparando e amputando a mente, de tal maneira que já estávamos a entrar em sintonia com o tal stress. Depois, sabendo que alguns colegas nossos que tinham mais dinheiro podiam escapar a esta carga emocional fugindo para o estrangeiro, fomos colocados na recruta.
Na altura éramos todos meninos de nossa mãe. Não tínhamos sido ensinados a fazer mal, não tínhamos, sequer, sido ensinados a resistir ao mal. Na recruta fomos muitas vezes despersonalizados até ao mais pequeno pormenor. Os oficiais tentavam preparar homens para uma guerra - não sei se da melhor ou da pior maneira - e o que é certo é que o faziam duma forma que agredia sistematicamente o indivíduo. Isto aumentava o tal stress, mas havia outros.
Fazíamos a recruta, a especialidade e ficávamos já com outro stress que era ficar à espera dos dez dias fatídicos. Sempre que nos ofereciam dez dias de férias sabíamos que era o caminho para a guerra. E depois perguntávamos: eu vou para a Spinolândia? A Spinolândia era a Guiné, porque estava lá o Spínola, e a Guiné era um Vietname. Era o terror de quem tinha 20 anos.
Depois era a preparação espiritual para dizer à nossa mãe - porque nós éramos os meninos das nossas mães - que íamos embora, que íamos morrer. Saíamos daqui e passado pouco tempo éramos postos no território dito inimigo. A diferença da cor tinha efeitos. Nós sabíamos que o inimigo era negro mas, por falta de experiência, não sabíamos onde estava esse inimigo. Numa aldeia não sabíamos se um indivíduo era um simples aldeão ou se por trás estava - e isso acontecia vulgarmente - um homem do PAIGC. Todos estes fenómenos iam aumentando a dose de stress e depois chegava o que era considerado o final e que era ver um companheiro, com quem tínhamos passado tanto tempo e vivido tantas coisas, chegar numa maca sem uma perna, sem um braço ou sem vida.

Quando regressámos à Metrópole, o que se presumia ser natural era não sermos despejados em Lisboa a pontapé e "vão-se embora para onde quiserem, arranjem-se!". Presumo que isto é uma dívida enorme do país para com os seus filhos, para com aqueles que o serviram. Não nos deram o apoio psicológico necessário para a integração porque estivemos ausentes 25, 27 ou 28 meses num meio completamente distinto, debaixo duma pressão contínua, debaixo dum ambiente hostil, passando fome, sede, contraindo doenças, sem dormir, sempre à espera do nosso dia. Devíamos ter tido uma recepção condigna que, no mínimo, passaria por algum apoio médico à chegada...

JB - Davam uns comprimidos a quem queria...
LC - Os comprimidos que nos davam eram os chamados LM para a dor de cabeça e anti-paludismo, mais nada. Eram os comprimidos que tomávamos lá todos os dias contra as várias febres. Mas o que era essencial era saber o que cada um precisava. E cada um de nós precisava de coisas, só que não havia condições para exigências e havia uma tentativa enorme de fugir ao que tínhamos deixado para trás. Todos nós estávamos a tentar fugir. E de tal maneira que ainda hoje muitos não querem falar desses fenómenos. Presumo que, mais tarde ou mais cedo, quando se conseguir implementar uma boa rede de apoio a esta gente... As pessoas têm ainda muitos males guardados, não querem falar. Os psiquiatras dizem que cada vez aparecem pessoas com problemas recorrentes. Há estes e há dez mil ou doze mil mortos.


JB - Algum dia se saberá, de facto, quantos morreram?

LC - O Estado português ao longo do tempo tentou, penso que intencionalmente, dizer que tínhamos nove mil a dez mil mortos. O número que e parece mais correcto aponta para treze mil. A questão é que temos milhares de paraplégicos, amputados e temos esses mortos. Isso é representativo do que somos. E quanto mais não seja, acredito que pelos mortos e pelos outros, pelos que não dormem, por aqueles que batem na mulher, pelos que batem nos filhos.
E aqui ponho um parêntesis que é importante: há algum tempo alguém se lembrou de dizer que quando morrer o último ex-combatente acabam as associações. Não estou de acordo. Sabem porquê? Porque neste momento já temos uma geração de stressados que são os filhos dos stressados de guerra. Esses também têm de ser acompanhados e apoiados pelas entidades deste país. Isto existo porque somos um produto dos nossos pais - embora em toda a gente que foi combatente seja um stressado - e já há, filhos de ex-combatentes marcados pela violência familiar. Isto é duma dimensão enorme.


Zita Fonseca e José de Coelho. 9 de Julho de 2003


__________

Nota de L.G.:

(1) O Luís Carvalhido entrou na nossa tertúlia em Abrild e 2005, foi logo dos primneiros, por mão do seu amigo, camarada de guerra e de trabalho, o Sousa de Castro. Aqui fica um execrtro da mensagem que ele me enviou em 21 de Abril de 2005, já transcrita na página respeitante à tertúlia:

Companheiro: Permite-me que te chame companheiro e amigo. Não me conheces, mas tal como muitos milhares de Portugueses falamos uma linguagem mais comum que a própria linguagem de Camões. Vivemos Africa e sentimos o frio das noites de medos disfarçados no fumo do tabaco e no paladar acre da cola. (...) Pisei os mesmos caminhos que tu, num triângulo que ia do portinho do Xime, até ao interior do Xitole. Decerto que não estarás admirado se te disser que te chamo companheiro porque também tu deves conhecer de cor e salteado a localização das tabancas de Bambadinca, onde eu passei cerca de vinte e sete meses.

Deixa-me voltar um pouco atrás, para te dizer como é que cheguei até ti. Para além de estar socialmente ligado à Associação Portuguesa dos Veteranos de Guerra (isto é outra história, que dava outro livro, ou outros livros) , sou amigo do António Castro, meu amigo e companheiro de armas na Guiné. Com ele mantenho contactos diários e através dele tomei conhecimento da tua existência e das muitas coisas que temos em comum (...).

E digo-te isto sobretudo porque nessa altura eu tinha um olhar de menino rebelde. Olhar de quem vê e não acredita. Olhar de quem sabe que tem que ser, mas que não fica calado. Olhar de menino ingénuo, mas muito selvagem. Olhar de quem brinca com coisas sérias, não se detendo com os medos comuns. Medo de morrer sim, medo de afrontar nunca. Perdoa-me, porque quando começo nunca mais acabo. África é imensa, África é linda, África é inesquecível, a guerra colonial é uma nódoa que tem quer ser exorcizada.

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