Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sábado, 21 de julho de 2007
Guiné 63/74 - P1980: Blogoterapia (26): Os nossos fantasmas, os nossos Quirafos (Virgínio Briote / Torcato Mendonça/Luís Graça)
Guiné-Bissau > Instalações da AD - Acção para o Desenvolvimento > Julho de 2007 > O Paulo Malu, antigo comandante do PAIGC, hoje coronel, e quadro superior da Direcção-Geral de Alfândegas. Foi ele que comandou, em 17 de Abril de 1972, o grupo IN que montou e executou a terrível emboscada contra os militares da CART 3490 (Saltinho, 1972/74) que escoltavam um grupo de civis afectos à construção de uma estrada (Quirafo-Foz do Cantoro).
Segundo o Pepito, o Paulo Malu (apelido provalmente mancanha) é um homem afável, mas que na altura da entrevista não estava na melhor forma, em termos de saúde. No decorrer da entrevista, o Pepito apurou que os guerrilheiros do PAIGC estavam convencidos que a abertura da picada tinha como objectivo levar as NT a tentar a reconquista de Madina do Boé (abandonada em Fevereiro de 1969, alguns dias depois de Mejo, Gandembel e Balana). Recorde-se, por outro lado, que foi o Malu quem levou o nosso camarada Batista, que foi feito prisioneiro, até Conacri, à presença de Amílcar Cabral (LG).
Foto: © Pepito/ AD - Acção para o Desenvolvimento (Bissau) (2007). Direitos reservados.
1. Mensagem do co-editor Virgínio Briote:
Caro Torcato,
Olha, coube-me a mim tratar o assunto Quirafo. Da alma saem-nos sentimentos, contraditórios muitas vezes, aos tropeções às vezes, como lava a espichar para o céu. O contacto com a atmosfera arrefece-a, quando começa a cair, alguma já está pedra. Desculpa esta analogia, num sentido muito figurado. Como já tens dito, Torcato, estou a alinhar palavras umas às outras, sem necessidade de as repensar, sei que as compreendes muito para além delas. A perda de camaradas doeu-nos, como só alguém que por situações destas tenha passado.
Na minha guerra, entre 65 e 66, pessoalmente fui um tipo cheio de sorte. Entrei em várias situações de fogo e, sem estar com a preocupação da estatística, mais de 90%, foram por nós causadas. Mesmo assim, embora com vários feridos, tive um morto no meu grupo. Por uma azelhice dupla, da minha responsabilidade.
O soldado A. A. Maria da Silva (em 1º plano, em Set. 65), com a comissão terminada há mais de 15 dias, depois de várias insistências dele e do chefe de equipa, acabei por permitir que ele alinhasse na op Hermínia (a 1ª heliportagem de assalto na Guiné) e assinei-lhe a sentença de morte. A 2ª responsabilidade é de ordem operacional.
No fogo cruzado que se seguiu depois da largada dos helis (imagem retirada de filme da heliportagem de assalto, op Hermínia, 6 Março 66, Jabadá), dei instruções à equipa de que ele fazia parte para fazer uma manobra, abrir em linha a frente de ataque, para permitir que duas equipas entrassem no acampamento. Foi nesta acção que o António A. Maria da Silva foi atingido por uma única bala. No coração. Passaram-se anos e anos, e ainda hoje é um caso que me atormenta.
A Guiné envolveu-nos, cobriu-nos com uma manta, estivemos abrigados com uma capa com mais que uma face. Aconteceu-nos de tudo, matámos, devastámos populações, cobrimos de napalm tabancas inteiras. No mesmo dia, outro pelotão na mesma área, construía abrigos, tapava com chapas de zinco casas esventradas, atendia crianças, adultos, velhos, distribuía quinino, tirava crianças da barriga das mães, e sabes tão bem como eu que elas quando resolviam parir, parece que combinavam, tratavam de pôr as crianças cá fora quase ao mesmo tempo.
Amámos aquelas terras de uma forma, que às vezes penso, exagero meu, claro, que as amamos mais do que muitos guineense. Mas isto já são exageros meus. A partir de Set de 74, oficialmente, a vida dos guineense a eles diz respeito, ponto final.
Torcato, paro aqui.
Um abraço,
vb
2. Resposta do Torcato Mendonça:
Virgínio Briote
Vou ser rápido; não tenho qualquer problema com Quirafo e, menos ainda, com o actual Coronel Paulo Malu. Fez o trabalho dele e eu fiz o meu. Passei uma vez pelo menos por Quirafo, se tivesse dado de caras com alguém do IN, procurava disparar primeiro.
Sempre, mas sempre, respeitei os homens que do outro lado estavam. Cumprimentei militarmente o Comandante Braimadicô quando, depois de ele ter servido de guia na Lança Afiada, o acompanhei ao helicóptero. Não sou racista. Detesto o que se está a passar em África e noutras Países. Li a reportagem da Única do Expresso, sobre Angola. Dias antes tinha longamente falado (ouvido) alguém a falar de Angola e não só. Não confundo o Povo Guineense, mesmo outros Povos com certos dirigentes, certos políticos, certos detentores de efémero poder. Mas para isso basta olhar para o meu País…
Vim de África e procurei recordar o menos possível…mas certos estímulos, certos acontecimentos punham-me lá. Revolta ouvir os relatos do médico F. Nobre, do Darfur, do…do… por isso fico … ou reajo como posso. Não foi agora o caso. Isto foi uma simples mensagem para um Homem que admiro muito o seu trabalho. Anexo o texto (2). Só que fui ou podia ser entendido como menos elegante…rude, boçal e ter dado, do meu passado de militar uma visão diferente.
Atenção: não esqueço e nunca perdoo as atitudes nojentas… fuzilar amigos meus, não! Desculpo ou aceito porquê? Ainda estou deformado? Talvez! Sou, nesse aspecto, o mesmo militar desse tempo.
Fico super satisfeito com o Doutoramento do L. Amado, em saber do Simpósio e do trabalho da AD, de novas em que me dizem que certos homens e mulheres venceram… V B, para mim só há uma raça, a Humana! E continuava… já li o Livro do Mário Vicente, escrevi-lhe um cartão a agradecer o envio, o texto, o dizer que a guerra é a maior estupidez do homem e que, em ambos os lados, há sentimentos de medo, amor e outros em partilha de vidas interrompidas.
Nós temos o problema do Stress… isso tem que ser tratado já. Passou tanto tempo, tanta promessa. Continua-se a sofrer, a morrer, a viver abafados em álcool ou drogas. Já se falou nisso aqui… não me repito.
Por um Portugal e uma Guiné melhores. Lutemos por isso e façamos terapia, blogoterapia, recordando, aqui, o momento passado, o poilão, a estória vivida nos nossos verdes anos… Tenho que parar…
Faço CC, só por esquecimento não, ao nosso Camarada LG… Fui militar… talvez, neste espaço, ainda seja…
Um abraço
Torcato Mendonça
____________
Notas de v.b.:
(1) Vd. posts de:
17 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1962: Blogoterapia (25): Os Quirafos do nosso Passado (Torcato Mendonça / Virgínio Briote)
12 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1947: O Coronel Paulo Malu, ex-comandante do PAIGC, fala-nos da terrível emboscada do Quirafo (Pepito / Paulo Santiago)
(2) Eis a mensagem que o Torcato mandou ao Luís Graça, numa primeira reação, epidérmica, ao Post 1947:
O tipo está de sentinela?
O passado, a memória, o não saber esquecer e menos perdoar. Disse no 1º escrito e, ainda hoje, certamente por má formação minha… é-me difícil… parece que está a olhar quem já partiu. Ou é prémio?
Desculpa, meu Caro Luis, esta deformação. Já não tenho idade, saúde e força para vestir o camuflado. Fica a vontade… disparate meu!
A memória, o ajuste de contas com certo passado. Fico no meu exílio doirado, escolhido e, para me distrair neste final de tarde, vou passear o cão Labrador arraçado, filho de Pluta, sua mãe e, em homenagem a ela, ficou Pluto.
Um abraço,
Torcato Mendonça
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1 comentário:
De ANTONIO ROSINHA
Torcato e Briote, quase chega a ser egoismo da nossa parte, aqui nesta tertúlia, lastimarmo-nos das nossas "feridas", se olharmos com atenção para aquela terra, onde a guerra continuou indefenidamente.
Quando as balas que sobraram aos comandantes do lado de lá, serviram para se irem matando lentamente uns aos outros.
Quando os Caboverdeanos terminaram com o PAIGC para transformar em PAICV, em 14 de Novembro de 1980, aquele povo humilde, num pequeno hiato de liberdade, tanto falou nos militares portugueses, que correu um boato que o Spinola se ia deslocar a Bissau...Que o Comandante NINO, teve que desmentir no rádio que o "ka oijo"
nunca voltaria a Bissau.
O carinho com que o povo humilde se lembrava dos cabos, soldados...dava para lavar a alma de quantos por lá passaram.
Agora da nossa parte, temos que ajudar no que se possa, a fazer com que aquela terra permaneça um país, livre e independente, e a falar português e crioulo, seria esta uma pequena recompensa pelo que lá se passou. Para isso temos que apoiar no que se possa homens como Pepito, Fernando Casimiro, e alguns velhos comandantes do PAIGC, pois aquela terra ainda sofre de muitas "complicaçôes".
Luis e V, Briote, se este comentário estiver dentro do contexto... um abraço para todos Antº Rosinha
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