quinta-feira, 24 de março de 2011

Guiné 63/74 - P7994: Contraponto (Alberto Branquinho) (25): Memórias

1. Mensagem do nosso camarada Alberto Branquinho (ex-Alf Mil de Op Esp da CART 1689, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 22 de Março de 2011:

Caríssimo Carlos Vinhal
Junto vai o texto para o CONTRAPONTO (25), intitulado "Memórias".

Com um abraço do
Alberto Branquinho


CONTRAPONTO (25)

MEMÓRIAS

«Paro na “Vela Latina” e tomo um café... e um pastel de nata» - pensou.
Arrumou o carro. Aliviou o nó da gravata. Hesitou entre deixar a pasta no carro ou levar a pasta.
Colocou a pasta no porta-bagagens e, com o casaco sobre os ombros, encaminhou-se para a cafetaria, evitando os pequenos grupos de turistas, que, calmamente, sob o sol de Julho, aguardavam as indicações dos guias.

Sentou-se na esplanada, saboreou demoradamente o pastel de nata, observando os pardais que, assustadiços, debicavam gulosamente, os restos em cima de uma mesa, que acabava de ser abandonada.
Porque tinha, ainda, muito tempo. dirigia-se lentamente para o carro, quando lhe surgiu a ideia de ir ao Monumento aos Combatentes do Ultramar, ali perto, junto à Torre de Belém, para verificar se constava o nome de um soldado africano que pertencera à sua Companhia. Alguém lhe tinha telefonado, pedindo para fazer essa verificação. Parou e ficou a tentar recordar o nome completo. Não conseguia. Verificando as listagens dos anos de 1967, 1968 e l969, se constasse, iria recordar-se.

À medida que caminhava para o Monumento, deu consigo a dizer baixinho: « Mamadu..., Mamadu..., Mamadu... ». O resto do nome não saltava à memória. «Vou ver ano a ano todos os Mamadus e, se lá estiver, lembro-me concerteza».

Chegou. Estava nesse momento a decorrer o render das duas sentinelas permanentes ao Monumento. Por respeito pelos mortos vestiu o casaco e compôs a gravata. Seguiu olhando sobre a esquerda, até que deparou com o ano de 1967. Procurou a letra M. Leu a lista dos MM. Não estava ali. Procurava já o ano de 1968, quando, atrás de si, uma voz o interpelou:

- Você está à procura de nome de alguém ?

Voltou-se. Era um homem alto, com cerca de sessenta anos, que trazia pela mão uma garota de quatro ou cinco anos.

- Sim.

- E em que ano morreu ?

- Ora essa é que é a dificuldade. Ou em 67, que já vi e não está. Ou em 68 ou 69.

- E você estava lá ?

- Sim.

- Três anos ? Não pode ser. Só se você foi voluntário.

- Não. Foi do fim de 67 até princípios de 69.

- Ah ! E qual era o nome ?

- Esse é outro problema. Não me lembro do nome todo. Mamadu qualquer-coisa. Mas se o vir, lembro-me.

- Então você também esteve na Guiné ?

- Sim.

- Eu estive lá em 70 / 71. Nos páras. Mesmo agora, às vezes, ainda salto. Então você o que era? Furriel?

- Não. Alferes.

- Eh pá, o meu alferes morreu com uma rajada no peito. E eu quando o vi naquele estado, saltei para cima dele, quer dizer, com um pé de cada lado, a disparar, a disparar para a mata. Então, comecei aos berros:

- Cabrões, cabrões (era para a minha malta ), dêem aqui uma ajuda.

Vieram tês ou quatro, a rastejar, porque o fogo era muito forte e protegeram-no com o corpo. E vai nisto, vejo a ramagem do poilão a mexer, a mexer, dei um salto para trás, agachei-me e comecei a disparar de rajada. Caíu de lá um cabrão de um turra, que, quando caíu no chão, parecia que tinha molas. Levantou-se logo e desapareceu, aos zigue-zagues, no capim. Foi o cabrão que disparou lá de cima e...

- Oh homem, oiça. Todos nós tivemos as nossas guerras, todos nós tivemos as nossas histórias. Tenha calma. – disse o ex-alferes para o homem, que falava descontroladamente, com duas bolas de saliva nos cantos da boca. Ajoelhava-se, deitava-se, fazendo menção de estar a disparar e, esbracejando, berrando em várias direcções.

A garota, que o acompanhava, chorava, sentada e encostada ao muro do Monumento. Deixou cair o chapéu e foi aninhar-se nos degraus da escada de acesso a uma porta que está, mais ou menos, no centro do Monumento, chorando mais e mais.

- E vai o alferes, já a falar muito baixinho, diz-me assim:

- Vocês deixem-me e sigam… Saiam daqui. E eu disse-lhe:

- Não senhor, se formos daqui, vamos todos. Eu ainda não tinha dito isto e vai um dos meus camaradas, que estavam ali ao pé, esticou-se ao comprido, ficou de costas, que até parecia um saco de batatas, com a cabeça aberta e os miolos espalhados no chão. Os cabrões rebentaram-lhe com a caixa dos pirolitos. E vai, eu arrastei o meu alferes para uma vala que havia ali, assim de rastos e ainda lhe falei ao ouvido para lhe dar alma, mas já estava sem pinga de sangue. Foi-se. Você alguma vez...

- Oh homem, tenha calma. Olhe a a sua neta - neta, não é? – que está ali a chorar, coitadinha.

O ex-paraquedista olhou na direcção da garota sem manifestar qualquer peocupação e tentava continuar a ser ouvido, espumando da boca e com os braços hirtos e esticados para a frente, como que empunhando uma arma.

- Mas você já viu...

- Oh homem, todos nós tivemos as nossas histórias que nos marcaram...

- Mas você que...

O ex-alferes deixou-o a falar só e aproximou-se da criança, que continuava a chorar, sentada num dos degraus, tapando o rosto com as mãos. Pôs-se de cócoras e tentou tocar-lhe. Ela, chorando sempre, berrou:

- Não!

O ex-paraquedista aproximou-se, de lenço aberto nas mãos, tomou-a ao colo, limpando-lhe as lágrimas. O ex-alferes apanhou o chapéu e pô-lo na cabeça da garota. Então encaminhou-se para a listagem dos mortos do ano de 1968, mas, perturbado, não encontrava os nomes com M. Respirou fundo, olhou sobre a direita e procurou de novo:

- Mamadu... Mamadu... ». Lá estava.

O homem aproximava-se, com a neta ao colo, que berrava:

- Quero ir para casa. Vamos embora.

- Está bem, Tânia, vamos já. Você já encontrou o nome ?

- Sim, está aqui.

E colocou um dedo em cima.

- Olhe, o meu alferes está aqui... 1971... 1971... É este. Não o conhecia ?

- Não. Era miliciano ?

- Não sei.

- Era difícil eu conhecê-lo. Devia ser mais novo uns três anos.

- Já viu como o número de mortos aumentou em 71, 72 e 73 ?

A criança berrava desesperada:

- Vamos embora! Vamos!

- É verdade. Nunca tinha notado isso.

- Eu gostava de falar consigo sobre isso do meu alferes, do falecido e outras coisas.

- Pois. Todos nós passámos os nossos maus bocados, mas eu, agora, tenho que ir. Tenho que fazer.

Estendeu-lhe a mão. O outro demorou largos segundos a consumar o cumprimento de despedida.

- Adeus, Tânia.

Tentou passar-lhe com a mão na cabeça, mas a garota, chorosa, evitou-o.

Foto © Hugo Moura Ferreira (2007). Direitos reservados.

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Cerca de quinze anos mais tarde, um casal de namorados passeava em frente à Torre de Belém, quando o rapaz olhou na direcção do Monumento aos Combatentes do Ultramar, que o sol de Primavera iluminava, fazendo brilhar o mármore.

- Olha. O que é aquilo ? Vamos lá ver.

- Não.

- Porquê ?

- Não. Se queres, vai tu. Eu não vou.

- Está bem. Mas porque é que não queres vir, Tânia ?

- Eu já conheço. Fui lá muitas vezes com o meu avô.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 2 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7886: Contraponto (Alberto Branquinho) (24): Fronteira portuguesa? Ainda?

9 comentários:

José Marcelino Martins disse...

Caro Branquinho!

Gostei da estória, como de todas as outras que escreves.
Calculo o trauma da Tânia, mesmo passados tantos anos.
É isto. É o stress que atinge todos aqueles que passaram momentos difíceis, e a família acaba por apanhar por tabela.
Choca e faz pensar!
Será que a todos?

Creio que sim, até à PT, que não deixa passar a oportunidade de fazer publicidade, deixando bem patente a sua marca. Até quis ser o patrocinador do encontro dos combatentes. Será que sonhei ou é mesmo verdade?

Luís Graça disse...

1. Se aquelas pedras, se aquele muro falasse, Alberto... Mas falam, falam mesmo!... Não é sítio de grandes aglomerações, mesmo aos fins de semana e feriados, que os mortos incomodam os vivos...

No entanto, há sempre alguém em silêncio recolhido, de pescoço esticado e dedo em riste, tentando. como tu, identificar um nome, um ano, uma estação do calvário...

2. Acabei de passar por lá perto, este fim de tarde, vim da Fundação Champalimaud, implantada num espaço nobre da cidade e do estuário do Tejo (o nosso, por enquanto, o nosso Tejo, fabuloso), e cujos espaços exteriores são felizmente públicos... A cidade e país, espero, vão ganhar um grande centro de investigação clínica e biomédica... Para já temos um novo restaurante, café e esplanada à beira rio, com vista sobre o Forte do Bom Sucesso, a Torre de Belém, a Ponte 25 de Abril, o Cristo Rei, o rio, o estuário, o mar... Café Darwin... Merece uma visita... ao fim da tarde. Não se espalhem em consumos, que a bica custa um aéreo e meio e um lanche à Darwin ou uma tostita oito ou nove aéreos... Os pequenos luxos pagam-se. Mas ponham o Darwin (e a Fundação Champalimaud) no vosso roteiro lisboeta...

3. Uma história forte, Alberto, com o teu estilo inconfundível, na linha do teu livro de contos ("short stories"), Cambança. Ficamos à espera do Cambança II.

Anónimo disse...

Branquinho Camarigo, dizer que a história que nos contas está muito bem concebida é curto, óbvio e repetitivo, pois todas as tuas produções possuem a marca da qualidade.

Resta-me, talvez falar alto comigo e perguntar-me:

1. Que chato era o pára ou que sorte teve o pára que encontrou alguém para o ouvir, ou os camaradas já não têm paciência uns com os outros?

2. A netinha que chorava, fazia-o porquê? Pelos berros do avô, pela violência da história, porque estava farta de a ouvir, porque...

3. A neta namoradeira não será a neta ou o neto de todos os avôs combatentes?
Por favor não me venham com mais histórias da guerra...estou farta!.

Será que nós combatentes não somos ignorados por toda a sociedade e que a nossa própria família está farta das nossas histórias?

Será que a ânsia com que muitos de nós procura o nosso Blogue, o convívio da sua companhia,os almoços das Tabancas,não terá nada a ver com o veho pára?

Um abraço amigo do,

Vasco A. R. da Gama

Torcato Mendonca disse...

História com a qualidade do Branquinho. Gosto.

Agora este comentário do Vasco da Gama é pertinente.
Reli e, não pensando em voz alta disse. então Torcato?
E esta heim?

Abraço os dois T.

Anónimo disse...

Um dia, já há anos, a jantar em casa de amigos, encontrei uma senhora mais velha que quando soube, ali, que eu tinha sido páraquedista em África, regozijou-se, manifestou algumas opiniões simpáticas ou divertidas sobre 'tudo aquilo' e a certa altura, para minha surpresa que nunca a tinha visto, declarou que tinha sido enfermeira páraquedista. Fiquei muito surpreendido porque julgava conhecer todas as enfermeiras, tanto de cursos de páraquedismo anteriores ao meu, como seria presumivelmente o caso vista a diferença de idades, como mesmo as de alguns dos cursos seguintes e não me lembrava daquela.
Admiti que pudéssemos ter 'andado desencontrados' nas idas e vindas; era frequente mas o facto de nunca, nunca! ter havido uma enfermeira com o nome daquela senhora confirmou o que me custava a admitir - ela estava a inventar. Para cúmulo e confirmação do meu receio e porque a conversa lhe deu o ensejo, a certa alturae porque alguem falou 'nele', na terceira pessoa, a senhora declarou que se lembrava muito bem de um tenente com esse nome-apelido, 'Um homem alto e seco, conheço-o muito bem...', acrescentou a ilustrar. Dispensei-me de dizer que era eu, naquela casa, naquele jantar, familiarmente designado pelo nome próprio...


Na Guiné morreram em combate dois Alferes páraquedistas mas nenhum em 1970-71: o Alf. Armindo Calado, morreu em JUL69 no Bachile e o Alf. João Abreu, morreu em MAR72 em Ganjauará.


Esta narrativa, Branquinho, 'é gira' e está alinhada com ligeireza, sem leviandade; é comovente e fará reflectir sobre muita coisa pertinente mas! pode ser ficção ou devaneio do narrador e sendo derrotista, por parecer destacar o sentido aparentemente trágico de uma condição propalada como injusta, dela relevo, em contrapartida e apenas para reequilibrar propensões comuns, a descrição do tal páraquedista relativamente à acção que teve e ao homem que caiu da árvore.


SNogueira

Anónimo disse...

Caro Branquinho

A tua história está muito interessante. É para fazer reflectir, percebe-se, e pode-se pegar por muitos aspectos.

Aliás, nestes comentários anteriores, está bem patente a multiplicidade de questões que suscita: as observações do JMartins, as considerações do LGraça, as várias interrogações do VGama, o que não chega a dizer o TMendoça, o que revela e releva o SNogueira...

Está bem de ver que por detrás da tua história está de facto um conjunto enorme de temas a 'esmiuçar'.

Vamos dar tempo ao tempo...

Abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

Caro Branquinho

O que relatas dá para pensar e julgo ser a realidade que nos rodeia.

Ao fim e ao cabo só entende, é quem por lá passou...

Um abraço,

Jorge Rosales

Fernando Gouveia disse...

Alberto:

Já o disse e repito: Gosto de todas as tuas estórias. Esta é mais uma. Julgo que o tal Cambança II será inevitável.

Um abraço.
Fernando Gouveia

Anónimo disse...

Caro Alberto Branquinho,

é tudo isso que faz a incompreensão dos que não fizeram a guerra.

Talvez a Tânia tenha sofrido tanto ou mais que o avô.

Respeito a Tãnia.

Há outros indiferentes que chamam colonialistas ao avô da Tânia.

Porquê? Não é!?

Mário Fitas