segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3465: O meu enquadramento sócio-político-financeiro, religioso e académico na Guerra do Ultramar (II). António Matos.

No BII 18, a formar a CCaç 2790

BII 18, Ponta Delgada, S. Miguel, Açores. Os então asp of mil Marques Pinto e António Matos (1).
Ano de 1970. Verão. É-me dado um bilhete de avião na TAP para os Açores. Foi o meu baptismo de voo. Destino: Ponta Delgada – Arrifes – BII 18. Missão: formação da Companhia Independente 2790 Paralelamente, outros camaradas iam aparecendo e aquela permanência de 3 meses tornou-se extremamente agradável. Juntámo-nos alguns alferes (recordo o Urze Pires, o Marques Pinto e eu) e alugámos uma casa no centro da cidade.
Os dias eram passados em instrução mas sobejava-nos tempo para uma vida civil prazenteira. A vida social era intensa e o assédio das moças gaiteiras na expectativa de "pescarem" um continental era medonho! Valeu-me ser já um homem comprometido e cumpridor das promessas deixadas em Lisboa.... Com o primeiro vencimento comprei um ainda hoje belíssimo relógio Ómega Seamaster! Custou 3.500$00!!!! (menos de 20 €). O meu gosto pela actividade física recebia eco da parte dos soldados que se prontificavam a longos crosses desde os Arrifes até à cidade e volta. Com a Mauser às costas!
Mas nem tudo foram favas contadas! A minha grande dificuldade foi a que constatei de imediato ao tentar perceber aquela gente. As viagens de GMC no fim do dia de instrução para a cidade eram um verdadeiro suplício de tradução! Aos poucos fomos limando essa "questão de pormenor" e no final já era um verdadeiro açoriano...
Desenfianço antes do embarque
Chega o mês anterior à partida. Sem dizer água vai, meti-me na SATA até Stª Maria (na altura a TAP ainda não voava para Ponta Delgada) e daí apanhei o TAP vindo de Boston para Lisboa. Ia "desenfiado"! Sei que criei muita perplexidade ao tenente-coronel Mexia Leitão (comandante do BII 18) com esta "deserção" e a dúvida sobre uma não-comparência ao embarque esteve-lhe na ideia. Dois dias antes do levantar ferro do Carvalho Araújo, apareci em Ponta Delgada e nessa noite fui ao cinema ao Teatro Micaelense. Pontuava no 1º balcão a fina-flor açoriana e o Tenente-Coronel também lá estava. Foi notório o alívio que transpareceu na sua cara e lembro-me do abraço afectuoso que me dispensou. No fundo percebi o seu sentimento de camaradagem em não ter participado de mim na expectativa de que eu voltaria. Por acaso voltei. Por acaso, pois houve tentativas de aliciamento para fazer as malas e dar o salto. Foi numa altura em que estavam vários tenentes nas companhias vindos como antigos oficiais da GNR. Na C.Caç 2790 tínhamos o tenente Lucas e na 2789, o tenente Freitas. O primeiro cedo abalou para a Suécia. O segundo não conseguiu arregimentar pessoal para o acompanhar na acção. Recordo uma noite que passámos no cais de embarque de Ponta Delgada a congeminar a fuga para as Flores e daí "pedir boleia" à Força Aérea Francesa que, julgo, teria por lá uma sucursal... Não foi patriotismo nenhum! Foi mera incompatibilidade com a minha estrutura de vida que não me deu forças para tal. Tive, isso sim, o desejo de ter a experiência vivida de ter estado numa guerra e sobreviver. Hoje, e uma vez que consegui superar essa dificuldade, continuo a agradecer a oportunidade que tive e faço dela muitos paralelismos para a minha vida do dia-a-dia, regra geral com bons resultados.
Chegou, enfim, o embarque Como alferes miliciano e no ultramar, se a memória me não atraiçoa, auferia de um salário de 5.500$00 (27,5 € - hoje não compro uma camisa!).
Na medida em que não pagávamos as balas nem os estragos que provocávamos no capim e pouco havia onde gastar dinheiro, era-nos permitida uma poupança na Metrópole que se alimentava, mensalmente, de uma transferência de parte daquele valor. Tabaco, whisky, pequenos rádios que se adquiriam nas idas a Bissau, uma ou outra máquina fotográfica, um jantarzinho melhorado e outros pequenos nadas (...) seriam as desculpas para "derreter" os escudos remanescentes. Era, pois, uma vida sem problemas de créditos mal parados e não me apercebi nunca de situações delicadas motivadas por falta de dinheiro.
Sistematicamente eu dispensava (em carácter rotativo) uns quantos soldados de alinharem em operações numa tentativa de criar um ambiente menos tenso e de, as deslocações a Bissau que a maioria aproveitava para fazer, servirem para "aliviar a tensão" acumulada. As diferenciações académicas não eram demasiado críticas uma vez que o pelotão era constituído por homens de grau de conhecimentos semelhantes e os debates culturais não tinham, pura e simplesmente, lugar. Na caserna, a revista Corin Tellado era disputada a murro entre os soldados e havia mesmo um capitão que se perfilava na tentativa de conseguir o empréstimo do último número...
uma missão impossível
A iliteracia absoluta era propriedade de um soldado do meu pelotão que, numa determinada época, e após ter percebido que atribuir a missão de escrita e posterior leitura dos aerogramas para a namorada a outro magala era motivo de grande chacota na caserna, me promoveu a seu confidente. Esse soldado, a seu pedido e com a anuência do furriel Benigno Abreu, passou a ter aulas que lhe permitiriam desenhar as letras e ler. Veio mais tarde a perceber-se que sofria duma espécie de dislexia curiosa: conseguia conhecer as letras, conseguia juntá-las e constituir as sílabas, mas não conseguia juntar as sílabas para a formação final da palavra.
Ficou conhecida a seguinte peripécia: (Estava-se no estudo da letra "P". O livro de instrução primária mostrava a figura dum pato) O Abreu perguntava: oh Zebedeu (nome fictício), que letra é esta?
Zebedeu – É um "p", meu furriel! Abreu – Boa! E esta? Zebedeu – É um "a", meu furriel! Abreu – Então um "p" e um "a", como se lê? Zebedeu – Um "p" e um "a" lê-se pa, meu furriel! Abreu – Fantástico! E esta outra letra, como se chama? Zebedeu – É um "t", meu furriel! Abreu – E esta? Zebedeu – É um "o", meu furriel! Abreu – Muito bem, e como se lê um "t" e um "o"? Zebedeu – Um "t" e um "o" lê-se to, meu furriel! Abreu – Mas o "o" no fim da palavra lê-se.... Zebedeu – Lê-se "u". Abreu – Muito bem, Zebedeu, então já sabemos que um "p" e um "a" se lê pa; já sabemos que um "t" e um "o" se lê tu; então como se lê tudo? Zebedeu – "bufa", meu furriel! Escusado será dizer que a espontaneidade da gargalhada geral soou a uma só voz e ficámos na convicção de que o "Zebedeu" estava a gozar connosco. Não era, de facto, a situação, e só mais tarde vim a saber da existência dessa anomalia chamada de incapacidade de juntura silábica ou intervocabular. Já na vida civil, num jantar de confraternização, consegui localizar o "Zebedeu" e recordámos esta e outras situações e compreendi a grandeza humana que nos permite ser realmente AMIGOS. A minha companhia em geral e o meu pelotão em particular, era constituído maioritariamente por homens açorianos. Só os oficiais, os sargentos e os cabos especialistas é que eram metropolitanos (mais tarde os reforços de rendição individual também eram da Metrópole). O cariz religioso era, portanto, elevado. O capelão do batalhão, Padre Antero, irmão marista, homem calmo, sabedor, culto, simpático e amigo, cuidou das suas almas e confidenciou-os tendo angariado a generosidade daqueles corações. Esteve presente nos momentos difíceis e era um refúgio espiritual que particularmente tenho pena de não ter explorado. Muitos anos mais tarde, também o localizei e pedi-lhe que viesse celebrar a missa de bodas de ouro do casamento dos meus Pais, o que concordou e dirigiu palavras agradabilíssimas ao cruzar recordações do tempo da Guiné... Os meus Pais gostaram imenso e os restantes participantes na cerimónia/festa congratularam-se em conhecê-lo também. Fim deste capítulo
António
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Notas:

1. António Matos, ex-Alf Mil da CCaç 2790, Bula 1970/72

2. Artigo anterior em

2 comentários:

Anónimo disse...

Meu camarada e xará
Só uma pequena achega ao teu belo texto. Quando dizes que, por causa do suplício da tradução, no final já eras um verdadeiro açoriano, devias ter dito micaelense porque nas outras ilhas a pronuncia é bem diferente.
Abraço Henrique Matos

António Matos disse...

Tens toda a razão camarada Henrique Matos ! De facto, os coriscos é que eram endiabrados a falar !! Os de Stª Maria, por exemplo, não apresentavam qualquer problema no entendimento, certo ? De qualquer forma, aqui fica um grande abraço para os micaelenses que porventura leiam este texto pois recordo com grande simpatia os tempos ( 3 mêses ) que lá passei e onde foi irrepreensível o carinho que nos era dispensado.
António Matos