Cacimbados – A vida por um fio.
Autor: Manuel Correia de Bastos
Editora: Babel
Pgs.: 192
Preço: 14,00 €
O livro está à venda na FNAC e na Bertrand.
A sessão de apresentação ocorreu na Casa Municipal da Cultura de Coimbra, em 15 Novembro, perante uma assistência de cerca de 100 pessoas.
1. Apresentação pela Dra. Inês Campos (1)
O livro Cacimbados: A vida por um fio, de Manuel Correia Bastos foi lançado pela editora Babel dia 15 de Novembro. Através de uma prosa cativante, onde o humor e a tragédia se cruzam espontaneamente, os Cacimbados transportam-nos 35 anos atrás para a realidade brutal de luta e sobrevivência de milhares portugueses a combater na Guerra Colonial.
Como refere o autor na introdução, “este Portugal com dez milhões de habitantes fez um esforço de guerra em África nove vezes superior ao que os Estados Unidos fizeram no Vietname, com os seus duzentos e cinquenta milhões.”
Narrando alguns episódios de guerra e da vida da sua Companhia posicionada em Mueda, Manuel Bastos reconstrói um tempo e um espaço carregados de acção, que nos prende desde a primeira linha até ao desfecho final. Com as suas palavras permite-nos testemunhar acontecimentos reais que, tendo ocorrido não há muito tempo atrás, pertencem a um momento histórico quase desconhecido das novas gerações.
A obra afirma-se por isso contra uma História que tende a esquecer os 13 anos em que a Guerra se entrosou nas vidas de jovens homens e mulheres, e cujas consequências pairam sobre o Portugal pós-25 de Abril, de um modo circunspecto mas tremendamente poderoso.
Com uma expressividade minuciosa, o autor vai ao encontro do pormenor para transformá-lo num mundo gigantesco de significados, sentimentos e reflexões filosóficas. A história da experiência da Guerra chega-nos através de um soldado capaz de se abstrair dos acontecimentos em curso, da urgência de cada instante, debaixo do fogo ou em campos minados, para ponderar sobre aquilo que o rodeia. Reflecte sobre os outros, camaradas e inimigos, sobre a vida na selva africana, mas sobretudo sobre a condição humana quando se é atirado para o metal e o fogo, que matam sem consciência.
A força repressiva que se impusera aos soldados recrutados, e a ausência do direito de liberdade de escolha, é um facto expresso pelo autor logo nos primeiros textos, quando relata a viagem no navio Niassa, de Lisboa a Moçambique:
“Útil também é avisar a quem isso interessar, que um cidadão que se entrega aos desvelos de uma instituição militar de um país governado por uma minoria de tiranos sem escrúpulos, tem que estar preparado para não poder recorrer às leis que protegem os animais quando são transportados. Digo isto, porque estou certo que se a GNR multou um vizinho meu por transportar mais porcos do que a carga permitida para o seu camião, decerto não deixaria sair o 'Niassa' do Cais de Alcântara.”
Quando os soldados são transportados para a Guerra em África e os motores do navio Niassa param, Manuel recorda-se por momentos que realmente ninguém faz a pergunta mais óbvia: Porquê?
Na época da Guerra Colonial era uma verdade inquestionável para todos esses homens que uma data de terras no continente africano faziam parte de Portugal. Moçambique, Angola, Guiné, São Tomé e Príncipe e Cabo Verde eram terras portuguesas, não eram nações distantes do lado de lá do Equador.
Nessas terras portuguesas viviam milhares de Portugueses iguais aos que viviam nas suas aldeias, vilas ou cidades europeias. Nessas terras encontravam-se milhares de pessoas que falavam português, que possuíam cidadania portuguesa, e que nunca tinham sequer conhecido a metrópole. Assim via o mundo uma geração inteira de jovens homens e mulheres.
No entanto, mesmo em 1973, do lado de lá do Equador, o Furriel Miliciano Bastos começa a questionar a sua relação de pertença com aquelas terras que lhe cabe defender:
“Deito-me de costas no chão a ver subir o fumo do cigarro e sinto a grande bola do mundo debaixo de mim. Lembro-me de que todas as pessoas que amo estão ao contrário do outro lado, vivendo as suas vidas, e lá estão também as pessoas que odeio. Deste lado, no chão está um grupo silencioso de fantasmas preparando-se para passar a noite. Ficámos do lado errado do Equador, as estrelas que nos cobrem não nos conhecem, e a Lua, complacente, ilumina-nos apenas o suficiente para tomarmos consciência da nossa pequenez em confronto com a monumentalidade da vegetação.”
Existia um Portugal grande, com fronteiras delineadas de África à Ásia chinesa, indiana, timorense...Um Portugal pobre, mas gigante. Um Portugal que lhes exigia o pagamento de uma dívida que eles nem sabiam que tinham contraído: a divida da cidadania, a impossibilidade de escolher entre ir ou não ir combater pelas fronteiras dilatadas de um Império gigantesco.
A sensibilidade do autor permite fazer chegar até nós uma descrição verídica de factos e acontecimentos, assumindo de certo modo o papel de um repórter de guerra. Mas é também uma reflexão profunda, de carácter filosófico e antropológico, sobre o que significa a guerra para um soldado, e ainda mais para um que deixou em Moçambique uma parte física de si e prosseguiu com coragem, a reconstruir a sua vida no novo Portugal que emergia.
Manuel Bastos revela um discernimento capaz de reflectir sobre a sua grande perda: o seu próprio desmembramento numa selva minada. Os textos finais arrastam-nos com imagens poderosas que nos unem à mente do autor, absorvidos pela sua narração dos minutos, dos sentimentos, da dor e do medo atroz e insuperável ao cair numa mina, que lhe desfaz a perna esquerda.
Não existe nada mais que a verdade nas palavras de Bastos, a vida pura e sentida no campo de batalha e a interpretação filosófica de um homem capaz de injectar novos sentidos às realidades mais difíceis de aceitar. Um homem que vive com a coragem de quem dá pleno valor à vida e à integridade da condição humana, e que acima de tudo conhece a obscenidade de todas as guerras. A guerra é para Manuel “obscena” e só deve suscitar em nós um propósito: evitá-la.
Quando lerem o livro, recomendo uma atenção especial às fotografias originais que foram incluídas. Manuel incumbiu-se a si próprio a tarefa de fotografar as operações da sua Companhia e o autor provou ser um excelente fotógrafo. As suas imagens falam tanto como as palavras, transportam-nos para a selva africana e para episódios da guerra de guerrilha com uma veracidade documental.
Acredito que este livro será igualmente um relato valioso para qualquer historiador da Guerra Colonial, redigido em primeira mão por quem viveu a história e foi tremendamente marcado por ela.
Por todas estas razões e pelo simples facto de que ler esta obra é ser tocado por uma prosa muito especial, quase poética, ainda que documental, fico muito feliz pela aposta da Editora Babel nos Cacimbados, e acima de tudo muito feliz por ter tido o prazer de conhecer a obra e a pessoa de Manuel Bastos.
Deixo-vos com votos de uma boa leitura.
2. O improviso do Manuel Bastos
Este livro que agora vos apresentamos, este pequeno livro, precisou de muita coisa para ser feito. Precisou de uma guerra, de uma revolução para terminar a guerra, precisou de mortos, feridos e traumatizados. Precisou de cerca de um milhão de portugueses em armas, o que fez de Portugal um dos países mais belicistas do mundo, provavelmente logo a seguir a Israel. Alguns desses ex-combatentes encontram-se aqui, os meus companheiros da mata e das picadas de Mueda. Eles são os protagonistas deste livro, às vezes com os seus nomes verdadeiros, às vezes com nomes fictícios. Sem eles este livro não teria sido feito.
2. O improviso do Manuel Bastos
Este livro que agora vos apresentamos, este pequeno livro, precisou de muita coisa para ser feito. Precisou de uma guerra, de uma revolução para terminar a guerra, precisou de mortos, feridos e traumatizados. Precisou de cerca de um milhão de portugueses em armas, o que fez de Portugal um dos países mais belicistas do mundo, provavelmente logo a seguir a Israel. Alguns desses ex-combatentes encontram-se aqui, os meus companheiros da mata e das picadas de Mueda. Eles são os protagonistas deste livro, às vezes com os seus nomes verdadeiros, às vezes com nomes fictícios. Sem eles este livro não teria sido feito.
Manuel Bastos
Este livro não existiria se não tivesse existido, também, uma primeira leitora, a mulher de todos os meus dias, aquela que primeiro me disse: "Estas palavras merecem ser publicadas." Alguém que possui o dom especial e muito raro de conseguir ver beleza nas coisas que os outros fazem, o que é uma forma de generosidade. Na verdade, para encontrarmos beleza no mundo, temos que possuir beleza dentro de nós. Também como ela, a Inês Campos tem esse dom. Encontrou as minhas palavras na Internet e transformou-as numa obra literária. É a ela também que se deve este livro.
É evidente que depois precisamos de pessoas que consigam concretizar o sonho que as palavras transportam, para isso precisamos de um editor – que pertence àquele grupo de pessoas sem as quais, tudo o que nós conhecemos, automóveis, computadores, catedrais, ou livros, nunca existiriam, eles é que concretizam os sonhos alheios; é também uma forma de generosidade – sem ele também, este livro não existiria.
Mas este livro que usa as minhas palavras… Ou melhor: as palavras que eu utilizo, as palavras não são minhas, as palavras não têm dono. Eu imagino-me como um simples apanhador de palavras, eu apanho-as por aí e depois tento, como neste livro tentei, espero que encontrem isso; tento desenhar a impossível forma dos sentimentos e dos afectos. Gosto de me imaginar como uma criança que apanha conchas à beira mar e com elas faz construções na areia, ou como uma velha senhora que apanha rosas no seu jardim e faz centros de mesa, ou… talvez melhor ainda um camponês que apanha seixos no seu quintal para limpar o terreno e para enfeitar a beira do caminho. É isso só que eu sou, um apanhador de palavras, por isso é preciso que haja pessoas assim, que descubram beleza nessas palavras.
Mas este livro não está completo, é um objecto físico só. Precisa de um leitor, é por isso que vocês, e eu vos lanço este apelo: alguns já o adquiriram; que o divulguem. Sem um leitor não há livro nenhum, nem há autor, só os leitores farão de mim um escritor, ainda não sou um escritor. Quando vocês lerem, quando alguém ler e convencerem o meu editor que talvez valha a pena editar mais algum. É preciso lerem este, foi para isso que os chamámos aqui, e para o divulgarem na medida que vos for possível.
Mas este livro não tem interesse nenhum se não tiver ao menos um ensinamento, por modesto que seja, e eu quero acreditar que tem. Este livro pode servir de alguma forma para que os nossos filhos arranjem uma maneira qualquer para evitar que os nossos netos vão para a guerra. Porque a guerra só tem uma virtude, só uma: a guerra pode ser evitada.
Este livro não existiria se não tivesse existido, também, uma primeira leitora, a mulher de todos os meus dias, aquela que primeiro me disse: "Estas palavras merecem ser publicadas." Alguém que possui o dom especial e muito raro de conseguir ver beleza nas coisas que os outros fazem, o que é uma forma de generosidade. Na verdade, para encontrarmos beleza no mundo, temos que possuir beleza dentro de nós. Também como ela, a Inês Campos tem esse dom. Encontrou as minhas palavras na Internet e transformou-as numa obra literária. É a ela também que se deve este livro.
É evidente que depois precisamos de pessoas que consigam concretizar o sonho que as palavras transportam, para isso precisamos de um editor – que pertence àquele grupo de pessoas sem as quais, tudo o que nós conhecemos, automóveis, computadores, catedrais, ou livros, nunca existiriam, eles é que concretizam os sonhos alheios; é também uma forma de generosidade – sem ele também, este livro não existiria.
Mas este livro que usa as minhas palavras… Ou melhor: as palavras que eu utilizo, as palavras não são minhas, as palavras não têm dono. Eu imagino-me como um simples apanhador de palavras, eu apanho-as por aí e depois tento, como neste livro tentei, espero que encontrem isso; tento desenhar a impossível forma dos sentimentos e dos afectos. Gosto de me imaginar como uma criança que apanha conchas à beira mar e com elas faz construções na areia, ou como uma velha senhora que apanha rosas no seu jardim e faz centros de mesa, ou… talvez melhor ainda um camponês que apanha seixos no seu quintal para limpar o terreno e para enfeitar a beira do caminho. É isso só que eu sou, um apanhador de palavras, por isso é preciso que haja pessoas assim, que descubram beleza nessas palavras.
Mas este livro não está completo, é um objecto físico só. Precisa de um leitor, é por isso que vocês, e eu vos lanço este apelo: alguns já o adquiriram; que o divulguem. Sem um leitor não há livro nenhum, nem há autor, só os leitores farão de mim um escritor, ainda não sou um escritor. Quando vocês lerem, quando alguém ler e convencerem o meu editor que talvez valha a pena editar mais algum. É preciso lerem este, foi para isso que os chamámos aqui, e para o divulgarem na medida que vos for possível.
Mas este livro não tem interesse nenhum se não tiver ao menos um ensinamento, por modesto que seja, e eu quero acreditar que tem. Este livro pode servir de alguma forma para que os nossos filhos arranjem uma maneira qualquer para evitar que os nossos netos vão para a guerra. Porque a guerra só tem uma virtude, só uma: a guerra pode ser evitada.
Cerca de uma centena de Camaradas e Amigos assistiram à apresentação.
Fotos: Cacimbo (2008) (Com a devida vénia..)
3. Comentário de VB:
Os nossos duplos parabéns ao nosso camarada Manuel Correia Bastos, membro da nossa Tabanca Grande: (i) pela publicação do seu livro, que é uma acto de coragem, de partilha, de camaradagem; (ii) pelo seu blogue, o Cacimbo, que faz cinco anos de existência, e é seguramente o mais antigo dos blogues dedicados à guerra colonial. O Bastos foi Fur Mil da CART 3503/BART 3876, esteve em Mueda, em 1972, quatro meses (de Fevereiro a Junho). Foi evacuado devido a ferimentos por mina antipessoal.
__________
Notas de vb:
1. Inês Campos é Jornalista e mestre em Relações Internacionais. Actualmente faz parte da equipa da Editora 7Dias 6Noites e da Babel, tendo sido responsável pela proposta de edição do livro “Cacimbados: A Vida por um Fio” de Manuel Correia Bastos.
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