1. Mensagem de José Câmara, ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73, com data de 14 de Outubro de 2009:
Olá amigo Carlos,
Junto encontrarás mais um pedaço das minhas andanças pelo Palácio. Ali a guerra era diferente. Guardo muitas recordações daquelas imponentes instalações e daquilo que por lá passei.
Foram os pequenos nadas que me fizeram crescer como homem, e me ajudaram a preparar para os piores dias que a seguir chegariam.
Como sempre agradeço que faças os ajustamentos que entenderes necessário para bem do blogue.
Com votos de muita saúde para ti e para todos aqueles que fazem este blogue ser tão grande como o mundo.
Um abraço,
José Câmara
Guerras palacianas
Poucos de nós tivemos a oportunidade de servir, militarmente, no Palácio do Governador da Guiné. Ser Sargento da Guarda implicava muito mais que um servir de farda limpa e luvas brancas. Implicava muita responsabilidade, destreza, rapidez de movimentos e de pensamento, e de muita disciplina.
Nos corredores do Palácio, os Sargentos da Guarda eram surdos quando ouviam, cegos quando viam, e mudos quando tinham voz.
Em causa, para além da segurança do Governador, dos seus familiares e dos seus ajudantes, também estava a segurança daquela imponente instalação, símbolo do poder na Guiné.
Dentro daquelas instalações vivi momentos de angústia de mãos dadas com momentos de muita alegria.
Confesso que nem sempre foi fácil actuar no Palácio. Mas também é verdade que tive a oportunidade de fazer parte e apreciar factos e decisões que, de alguma forma, me fizeram acreditar que havia gente boa, justa e com capacidade de liderança.
Tentarei, dentro do possível, recordar alguns casos, entre muitos outros não menos importantes, que marcaram os meus dias no Palácio. Os casos seguintes, pela sua importância, são aqueles que melhor recordo ou escrevi algo sobre eles.
1 – A Feira de Bissau, a angústia da incerteza
A 19 de Março de 1971 escrevia, desta forma, à minha madrinha de Guerra:
Primeiramente vou dizer-te que a vida por aqui continua a ser a mesma; trabalhando com muita responsabilidade. Estou de folga mas não posso deixar o quartel. Nem eu nem ninguém, pois que entrámos de prevenção, ou se quiseres em estado de alerta. Pode haver um ataque neste próximo fim-de-semana que começa amanhã e que se prolongará até segunda-feira.
Esperamos que não aconteça nada, mas se assim não for, quando receberes esta carta já o saberás.
A razão de tudo isto é a Feira de Bissau. Está em exposição material de guerra apreendido aos turras, artigos das casas comerciais e da indústria, e ainda aspectos da lavoura.
Ontem como estive de serviço ao Palácio, aquilo ficou sob a minha responsabilidade, isto é, a segurança do Pavilhão das Forças Armadas.
Tive a oportunidade de ver tudo aquilo. É giro e é pena que exista guerra na Guiné. Não se pode gozar tudo o que há de bom por aqui que, diga-se em abono de verdade, não é muito, mas que se desenvolveria se acabasse a guerra.
Depois de amanhã volto para lá; vamos a ver se tudo corre bem.
Bissau > Fevereiro de 1971 > José Câmara junto de uma papaieira no jardim do Palácio do Governador
A Feira teve lugar na Praça do Império. Nós, os sargentos da guarda, para além da segurança ao Palácio ainda ficamos com a responsabilidade da guarda e segurança do Pavilhão das Forças Armadas. Estavam expostas várias toneladas de material apreendido ao PAIG. Canhões sem recuo, metralhadoras, espingardas automáticas, granadas, morteiros, RPG’s, e material escolar faziam parte do espólio.
Milhares de pessoas passavam diariamente por aquele Pavilhão. A possibilidade de um ataque directo existia. Aliás fomos postos de sobreaviso. Vivi, naqueles dias, momentos de angústia e de incerteza. Tenho a certeza que os meus camaradas também passaram pelo mesmo. E tinha (mos) razões para isso.
A 24 de Março de 1971 escrevia o seguinte:
Falando da situação militar, infelizmente, tivemos cinco baixas durante a semana em toda a Guiné. Segundo os comunicado das Forças Armadas, as nossas tropas abateram 21 terroristas e apreenderams 14 toneladas de material.
Na Feira, de que falei na última carta, prenderam-se 3 terroristas armados… mas, sem barulhos. O demais vai decorrendo normalmente.
A situação da minha Companhia continua estacionária. isto é, não se sabe nada quanto à sua ida definitiva para o interior. Entretanto veio mais um Pelotão do mato e amanhã segue outro para lá.
Segundo o que escrevi, é evidente que a apreensão dos três terroristas (era a linguagem que se usava ao tempo e seria descabido ser politicamente correcto neste escrito), foi feita sem grande alarido. Também é evidente que abordo o assunto muito superficialmente. Duas razões contribuíram para isso: sempre fui bastante comedido naquilo que escrevia para as coisas que me diziam respeito, e porque parte da minha responsabilidade como sargento da guarda era manter descrição sobre tudo aquilo que dizia respeito ao meu trabalho.
2 – Um Major de Cavalaria que perdeu o freio… ou como um capitão me protegeu
O acesso ao Palácio era feito pelo pórtico principal cuja guarda estava a cargo da Polícia Militar, e ainda pelo portão de serviço lateral também com guarda da Polícia Militar. Essas entradas, bem como os postos de sentinela ao fundo do jardim estavam providos de intercomunicadores ligados directamente ao gabinete do sargento da guarda.
Independentemente do posto de cada um, todas as forças de segurança, incluindo a Polícia Militar, a PSP e o tratador do cão-guarda, respondiam directamente ao sargento da guarda que, por sua vez, respondia ao Ajudante de Campo do Governador, na altura um capitão.
Todas as forças de segurança tinham ao seu dispor o calendário de regras a obedecer. Ao sargento da guarda correspondia lembrá-las diariamente e ter a certeza de que eram cumpridas à risca.
Entre as regras a cumprir escrupulosamente estava o acesso ao Palácio. Só entravam nas instalações, incluindo os jardins, as pessoas na posse de cartões passados pelos serviços de apoio ao Palácio. Pelo menos devia ser assim.
Os cartões tinham duas cores diferentes: o cartão verde dava acesso livre ao Palácio por parte do seu possuidor, depois de devidamente identificado quer por conhecimento próprio dos sentinelas ou de documento identificador com fotografia; o cartão amarelo (se bem me lembro era essa a cor) tinha as mesmas regras de identificação que o cartão verde, porém, os possuidores desse cartão tinham de ser acompanhados por uma praça da Guarda até ao sítio a visitar. Normalmente, o guarda era autorizado a ausentar-se a partir do momento em que os serviços de apoio tomavam contacto directo com o visitante.
Bissau > Fevereiro de 1971 – José Câmara no jardim do Palácio. Podem observar-se as belas moradias que circundavam o Jardim.
Num Domingo, pelo anoitecer, o presidente da Câmara Municipal de Bissau, um Major de Cavalaria, foi ao Palácio a pedido, segundo ele, do General Spínola. Ao chegar ao portão lateral, o sentinela de serviço reconheceu o Major. No cumprimento do seu dever, pediu-lhe o cartão de trânsito que o Major não tinha na sua posse.
Perante esse contratempo, o sentinela chamou-me através do intercomunicador, expondo o que se estava a passar. De imediato, dirigi-me ao portão lateral, onde me apercebi que o Major estava bastante alterado com o facto de ter sido impedido de entrar. Cumprimentei o Major após a identificação por conhecimento directo do sentinela. Expliquei-lhe o que se passava em relação ao cumprimento das regras de segurança, e que eu próprio o levaria até junto do nosso General, depois de consultar o gabinete de apoio.
Perante as minhas explicações, o Major teve uma reacção de todo inesperada, quando respondeu com as seguintes palavras:
- Ouça furriel, eu nunca teria a coragem de passar por cima das ordens de um sargento da guarda ou de um merda da Polícia Militar.
Não foram as palavras que me ofenderam. Foi a forma como foram proferidas. No semblante do Major percebi um sorriso de escárnio, depreciativo.
Reagi ao insulto. Passei à situação de sentido. As minhas palavras saíram secas, cortantes, e foram sensivelmente estas:
- V. Exa. com as suas palavras, desautorizou-se a entrar neste Palácio sem o seu cartão de acesso. Este Soldado, este merda como lhe chamou, não esqueça é um sentinela. Cumpre ordens. Quanto a este furriel e sargento da guarda que aqui está, tenho a certeza que preferia não sê-lo. Boa Noite!
Para o Polícia Militar disse:
- Sentinela, o nosso Major não entra aqui sem o seu cartão de acesso.
Uma continência ao Major, um passo à retaguarda, meia-volta e... dou de caras com um alferes dos serviços de apoio ao Palácio, e que estava, precisamente, à espera do Major. Tinha presenciado parte do drama e ouvido o final da conversa. Abanou a cabeça e disse-me:
- Estás à pega. Sabes o que te vai acontecer?!
Pedi para o acompanhar até ao gabinete de apoio. Lá estava o capitão, o Ajudante de Campo do General, e a quem contei o sucedido e que foi, de imediato, corroborado pelo alferes. O capitão veio até junto de mim, pôs um braço por cima dos meus ombros e deu-me um pequeno aperto de camaradagem, de amizade. Tal qual o meu pai me fizera muitas vezes.
Naquele gesto senti que estava protegido.
Mesmo assim guardei, durante muito tempo, um pequeno relatório sobre este incidente. Tinha que estar preparado para qualquer acção disciplinar. Que nunca aconteceu!
José Câmara
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 29 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5030: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (7): Servir Bissau: uma contenda inglória onde o pesadelo e o ronco se misturavam
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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3 comentários:
Boa noite, meu Furriel
Excelente história
Cumprimento-te e faço-te a minha continência.
As guerras palacianas não eram para brincadeiras.Num instante estava-se bem e a seguir "comia-se" uma porrada!
Já agora como se chamava o Capitão?
Um abraço
JERO C.Caç. 675
Caro Jero,
Obrigado pelo comentário.
Sinto-me honrado com o tratamento vindo de um camarada que, ao longo das suas historias, tem demonstrado uma grande nobreza de caracter.
Não tenho problema nenhum em retribuir a continência. Faço-o com prazer.
Camaradas,
Muitos anos se passaram desde o domingo da história. João Almeida Bruno foi o nome que mais martelou no meu suconsciente. Hoje recebi a confirmação.
Como assim?
Num email particular pedi ajuda ao próprio Jero, que contactou o nosso Virginio Briote que, por sua vez, contactou o Sr. General Almeida Bruno.
Segundo o nosso camarada Virginio Briote o General ainda se lembra da história.
E assim se fez história. Porque a vontade destes dois camaradas, a quem muito agradeço, permitiram encaixar as pedras no devido lugar.
E mais. Continuo a conhecer novos amigos.Porque o blogue é grande.
E o meu abraço também,
José Câmara
... que,
o ajudante-de-campo do general Spínola, em Jul70-Jul72, era o capitão de cavalaria Lourenço de Carvalho Fernandes Tomás (o qual em 64-65, ainda tenente, comandou por breve período a CCav488 em Jumbembem – contemporânea da CCac675 em Binta –, e, logo a seguir, promovido ao posto imediato, a CCav704 que «em 11Mar65 assumiu a responsabilidade do subsector de Bajocunda, então criado com um destacamento em Copá»... ).
Quanto ao supra citado major de cavalaria «que perdeu o freio»: José Eduardo Matos Guerra, enquanto capitão, em 26Out65-27Jul67 comandou em Santa Luzia, a [ m... da ] CPM1489 e dois anos depois, no QG/Amura, foi chefe-adjunto da Secção de Reorganização e Defesa das Populações, seguindo-se a chefia da Repartição de Reordenamento e Autodefesa Territorial; promovido a major, em 16Mar71 empossado presidente do município de Bissau, cargo que exerceu até meados de 1973 (aquando do s/regresso à Metrópole).
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