domingo, 11 de outubro de 2009

Guiné 63/74 – P5095: Estórias do Fernando Chapouto (Fernando Silvério Chapouto) (9): As minhas memórias da Guiné 1965/67 – Rotinas perigosas III

1. Esta é a 9ª fracção das memórias do nosso Camarada Fernando Chapouto, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCAÇ 1426, que entre 1965 e 1967, esteve em Geba, Camamudo, Banjara e Cantacunda. A série é iniciada nos postes P4877, P4890, P4924, P4948, P4995, P5027, P5047 e P5056.

AS MINHAS MEMÓRIAS DA GUINÉ - 1965/67

ROTINAS PERIGOSAS III

Em início de Setembro a Companhia mudou para Camamudo/Cantacunda, eu fiquei em Camamudo, para passar mais dois meses de descanso bem merecidos.

Em Camamudo, o tempo era passado a jogar à bola, ir à caça, visitar as belas bajudas nas Tabancas e patrulhando o sector, com a finalidade de verificar, junto das populações, se haviam avistado alguém desconhecido por ali e se necessitavam de alguma coisa.

À vinda trazíamos umas galinhas para o pessoal comer, se estas dessem para preparar uma refeição para o pessoal todo, caso contrário destinavam-se a petisco. Como petisco sempre nos proporcionavam o acompanhamento com umas cervejas.

Em Novembro, voltamos novamente para o sacrifício de Banjara, onde, psicologicamente, era penosa a estadia, não pelos ataques do IN (pois felizmente nunca se lembraram de “aparecer” enquanto fizemos as nossas estadias nestas paragens), mas sim pelo isolamento do resto do mundo e pela fome que passávamos.

Os géneros alimentares só chegavam de mês a mês. Quando chegava uma coluna antes da passagem de um mês, já sabíamos que tínhamos em perspectiva mais uma operação, que regra geral se destinavam à procura, na nossa ZO (com prioridade para a região de Sinchã Jobel), de novas Tabancas construídas sobre o domínio do IN e, pela habitual rotina de verificação do estado de coisas (se tudo estava como dantes).

Nos finais de Novembro, fomos reforçados por um pelotão da CCAÇ 1588 e mais uns “periquitos” recém-chegados da Metrópole, que foram logo mandados para Banajra (capital do Oio).

Todos nos entrosamos e convivemos bem, sabendo à partida que estávamos metidos no mesmo barco e só com o sacrifício e a calma de todos, acabaríamos por sair bem daquele complicado conflito.

A prova de que tudo rolava bem, é que todo este pessoal novo rapidamente se adaptou ao modo de vida, ali no meio do mato, isolados de tudo.

Chegou mais um Natal novamente em Banjara, estávamos perto do final do mês e como sempre nestas ocasiões, praticamente já não haviam géneros alimentares, restando-nos apenas o pão e a sopa rançosa (devido à banha de porco com que a cozinhavam) e, à qual, era preciso acrescentar sumo de limão para se enganar o paladar e, assim, se poder tragar.

Um dia antes do Natal, tivemos uma surpresa agradável, pois vimos a avioneta de reabastecimento a sobrevoar Banjara e, esta, sempre era o prenúncio que íamos ter carne para o tacho.

O problema é que o pessoal da avioneta não se aventurava a descer muito perto do solo, visto ser muito perigoso ao tornar-se um alvo fácil para o IN, e, sendo assim, deixavam cair o correio e a carne, que se desfazia toda no impacto com o chão.

Naturalmente, era melhor do que nada e passamos então mais um Natal melhorado, em relação dias restantes.

Chegou a passagem de ano, numa noite linda onde o luar brilhava. Muita cerveja e whisky deslizou pelas gargantas abaixo. Nem precisávamos de copos pois todos bebiam pelas garrafas. Cantávamos o fado e tudo o que vinha à mente. A certo momento, já era o whisky que cantava e não nós.

Por volta da meia-noite o alferes do outro pelotão veio cá fora mandar calar o pessoal. Eu como era o “periquito” mais antigo, já muito tarimbado na Guiné e farto desta irritante e inesperada situação (que ainda hoje não esqueci), exclamei virado para ele: - «“Periquito” vai dormir e fazer companhia ao Alferes Soeiro.» - que era o meu comandante de pelotão.
Então ele avançou para nós, continuando a mandar-nos calar.

O pessoal dele foi-se embora, mas eu estava ali, em pleno convívio com o meu pessoal, e continuei a beber mais algumas cervejas até cair para o lado. Ainda hoje não sei como fui para à cama, se fui levado por alguém, se fui a pé ou a rastejar.

Esta foi a segunda vez que fiquei etilizado, mas desta vez fiquei pior do que da primeira, não sei se foi pelo festejo do dia em questão, se o fiz para esquecer a tristeza de estar mais um ano longe da mulher e do filho (que nem sequer ainda conhecia), ou por tudo junto.

Sempre pensei que um dia as saudades chegariam e teria que as evitar.

No dia a seguir era a rendição, quando acordei fui tomar um banho para refrescar a os pensamentos e tomar um café.

Perguntei aos furriéis se estavam com medo do alferes e ninguém me respondeu.

Até que entram na sala os alferes, dando-nos os bons dias, ao que nós retorquimos do mesmo modo. Todos se sentam à mesa sem qualquer comentário ao que se havia passado.

Levantei-me e chamei à parte o meu alferes, contando-lhe os acontecimentos da véspera.

O meu alferes disse-me simplesmente: “Não passe cartão!

Fui então preparar a mochila e enrolar o colchão, porque, de dois em dois meses, éramos como os ciganos, mobília as costas e arrancar para outras bandas.

Banjara (Dezembro de 1966) O alferes e o furriel da CCAÇ 1588 (reforço à minha Companhia), em cima do meu abrigo subterrâneo

(Continua)

Um forte abraço do,
Fernando Chapouto
Fur Mil Op Esp/Ranger da CCAÇ 1426

Foto: © Fernando Chapouto (2009). Direitos reservados.
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Nota de MR:

Vd. postes anteriores desta série, do mesmo autor, em:

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