domingo, 1 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5190: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (14): O Comando de Agrupamento (II Parte)

1. Mensagem de Fernando Gouveia, ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70, com data de 28 de Outubro de 2009:

Caro Carlos:
Noutra altura e não por aqui, te mandarei um escrito, que te devo aliás. Por aqui, aproveito para referir que acusei com agrado as palavras do Hélder Valério.

Desta vez aí vai a estória O Comando de Agrupamento – 2.ª parte a integrar, se assim o entenderes, na série A Guerra Vista de Bafatá.

Um abraço para cada um.
Fernando Gouveia


A GUERRA VISTA DE BAFATÁ
14 – O Comando de Agrupamento – 2.ª parte
Por Fernando Gouveia

Na 1.ª parte desta estória falei de todo o pessoal do Comando de Agrupamento, à excepção dos Majores. Esta 2.ª parte é-lhes dedicada, como prometido.

Ainda a propósito da caça recordo que ao chegar ao Agrupamento, encontrei apenas um Major, o Major Lameiras, óptima pessoa com quem se podia conversar. Devo a ele ter-me emprestado uma Flaubert de 9mm, de cartuchos, com que fui caçando até vir de férias e levar uma caçadeira a sério.

Fins de 1968. Local junto ao nosso Bar onde tive muitas conversas com o Major Lameiras. Ainda não tinha chegado o Major que mandava pintar tudo de cor-de- rosa velho. Todos os edifícios eram brancos.

Outro Major bastante normal esteve na Secção de Operações muitos meses, a trabalhar na minha sala. Reorganizar todos os arquivos foi a única coisa que fez e bem. O Coronel Felgas não lhe dava espaço.

Por lá, a cumprir 15 dias de prisão, passou um Major que estava a comandar um Destacamento na zona de Nova Lamego, onde era costume o pessoal sair para a tabanca próxima, não pela Porta de Armas, mas por um buraco na rede de arame farpado. Tendo avisado várias vezes, sem sucesso, que não queria tal procedimento, mandou, sem aviso prévio, armadilhar a tal passagem. Resultado: um furriel ficou sem uma perna. Só quinze dias?

O Major Curado não era má pessoa mas talvez por estar muito apanhado pelo clima não podia ver ninguém ao pé dele maltratar um animal nem que fosse um verme rastejante. Ficava muito triste e apelidava o verme de pequeno pagãozito. Outra coisa que o definia era ir a despacho com o Comandante levando numa mão os processos e noutra um macaquinho, mascote do quartel. Considero que era um acto de alguma coragem face ao austero Coronel Felgas

1969. O macaquinho que o Major Curado levava quando ia a despacho com o Coronel Felgas. Note-se que o Major do cor-de-rosa velho já tinha chegado

Passou por lá, durante alguns meses, um Major que, sóbrio, era óptima companhia para conversar, dado que era bastante culto. Porém, todas as semanas apanhava uma bebedeira de caixão à cova. Já se sabia, a coisa repetia-se sempre da mesma maneira. Quando não dormia no quartel, no dia seguinte, pela manhã, lá aparecia uma carrinha civil de caixa aberta, a levar, na dita caixa, o Senhor Major que tinha sido encontrado inconsciente na berma da estrada de Bambadinca, para os lados do Bataclã.

O mais exótico de todos foi um da Secção de Pessoal e Material. Além de outras manias que a seguir enumero, uma prevalecia: Mandava pintar tudo de cor-de-rosa velho. Só escapava o material militar, jeeps, etc.

04-10-1969, dia da despedida do Coronel Hélio Felgas. Um tocador de corá. O cor-de-rosa velho já tinha passado por aqui

Quando lá chegou, na sua Secção havia um calendário com uma figura feminina com um decote um pouco pronunciado (nada demais). De imediato, mandou o Furriel da Secção colar um papel cor-de-rosa velho, de forma a reduzir o decote.
Todas as semanas queria as viaturas (só havia jeeps) na pequena parada, impecavelmente limpas, incluindo os motores a brilhar. Então aparecia para inspeccionar e à sua ordem “abrir capôs” cada condutor abria o da sua viatura, tal como à ordem “fechar capôs” cada condutor o fechava com estrondo. Mas o mais caricato disto tudo é que todas as semanas era empurrado para a parada um jeep avariado, sem conserto, mas com os restos do motor sempre a brilhar

Fins de 1968 . Na pequena parada onde mais tarde o Major do cor-de-rosa velho fazia a inspecção aos jeeps. As paredes ainda eram brancas, note-se.

Fotos e legendas: © Fernando Gouveia (2009). Direitos reservados.


Em determinada altura deram ao Comandante um bode. Como tal situação tinha que passar previamente por ele, antes de o entregar ao Coronel Felgas, mandou comprar, na cidade, uma fita cor-de-rosa velho para fazer um laço que foi colocado nos cornos do bicho… Podem crer que foi autêntico, como autêntica foi a situação que segue.

Numa outra vez, um qualquer Chefe de Tabanca, ofereceu ao Comandante uma galinha. O nosso Major mandou providenciar um galinheiro para a ave, e quando ela começou a pôr ovos, mandou o furriel constituir um livro para registo (à carga) dos ovos que iam sendo postos. No livro podia ler-se: Dia (data hora) - um ovo; Dia (…) - um ovo; Dia (…) - um ovo (partido)…

Finalmente, pairou por lá outro Major que já referi noutra estória, de tão baixo carácter, que não merece qualquer outra referência.

A próxima estória será, como já referi, sobre os amores entre um furriel e a Rosinha, filha de um comerciante metropolitano.

Até para a semana camaradas
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 25 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5159: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (13): O Comando de Agrupamento (I Parte)

4 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro Fernando Belo

Pois, o prometido é cumprido!
Lá vieram então as histórias dos Majores...
Conforme pode ser facilmente apercebido, as situações geradoras de stresse que resultavam no que designávamos por "apanhados do clima", atingiam todos, em maior ou menos grau conforme as capacidades e resistências mentais de cada um.
E assim se foram criando as vontades... ou melhor, a falta delas...

Um abraço
Hélder S.

Hélder Valério disse...

Amigo Fernando Gouveia

Mil perdões pela troca do nome que só agora dei conta.
Realmente o cérebro às vezes prega-nos cada partida....
Como podes perceber, tinha acabado de fazer um comentário motivado por uma observação do José Belo e sem dar por isso, ao dirigir-me a ti, lá saiu o Fernando seguido dum "Belo".
Espero que me desculpes, nem que seja só por esta vez!
Um abraço
Hélder S.

MANUEL MAIA disse...

CARO FERNANDO GOUVEIA,

QUANTO MAIS CASOS DESSE TIPO SURGEM,COM CRITICAS AOS ALFERES QUE CONVIVIAM COM ESSA ESPÉCIE
ESTRANHA QUE ERAM OS FURRIEIS E COM "STRESSADOS DE PINK" MAIS ME CONVENÇO QUE AFINAL A MINHA GUERRA FOI MELHOR QUE A VOSSA...

A MINHA GUERRA NÃO TINHA HORÁRIO DE TRABALHO,ESTAVA SEMPRE ABERTA,E NELA SÓ CABIAM DOIS TIPOS DE GURRILHEIROS,NÓS E ELES...

NÃO HAVIA NEM SALAMALEQUES,NEM SEQUER CONTINÊNCIAS,OU DAQUELES
CRUZAMENTOS PERIGOSOS
COM PSEUDO OPERACIONAIS,OU DE PACOTILHA,COMO ESSA GENTE MUITO AMARELADA...

DE CERTEZA CERTEZINHA QUE NUNCA ME ENTENDERIA NUMA GUERRA DE PINTURAS COR DE ROSA...
ELE HÁ COISAS...

MAS PARA DIZERES QUE NÃO ERA MAU DIABO,COMO SERIAM OS OUTROS...
FOI GENTE DESSA QUE "PERDEU A GUERRA"... E NUNCA OS MILICIANOS, QUE DE SOLDADO A CAPITÃO,ESTAVAM IMBUÍDOS DO MESMO ESPÍRITO DE SACRIFÍCIO.
UM ABRAÇO
MANUEL MAIA

Anónimo disse...

A história do major cor-de-rosa-velho está muitíssimo bem contada pelo Fernando Gouveia. Imagino-a transposta para um filme americano (os realizadores americanos é que sabem apanhar estes "tiques" da tropa). Seria uma cena de antologia ver os jipes alinhados, os condutores também devidamente fardados, barbeados e asseados, em sentido, o major a passar a revista (o realizador exageraria: o major passaria algodão nos jipes para ver se estavam verdadeiramente limpos). Uma cena em total silêncio, mas a câmara percorreria os edifícios, mostrando os mirones, nas janelas, divertidos com a cena. Por fim, o barulho dos capôs a fechar.
Quem, certamente, não se divertia com a cena eram os condutores.
Parabéns.
Um abraço,
Carlos Cordeiro