domingo, 23 de janeiro de 2011

Guiné 63/74 - P7659: Notas de leitura (193): Entre o Paraíso e o Inferno, de Abel Jesus Carreira Rei (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Janeiro de 2011:

Queridos amigos,
O livro do Abel Rei merece reflexão. É, sem ambiguidades, uma colectânea de notas que começam por ser diárias e depois, com a exaustão e os muitos silêncios, se vai arrastando à procura do alívio do termo da comissão.
O Abel Rei viveu quase sempre entre o Enxalé, Porto Gole e Bissá, procede a um registo dos acontecimentos e, muitos anos mais tarde, dá-lhes um toque de rigor em consonância com a história da CART 1661.
Para mim, abriu-me o olhar sobre aquele Enxalé com quem Missirá devia ter estado em permanente ligação, quando ali vivi as relações estavam simplesmente cortadas, Missirá ficara na dependência de Bambadinca, por uma decisão do Estado Maior dois quartéis com o mesmíssimo inimigo ficaram de costas voltadas.
Paradoxos da secretaria e do saber dos oficiais do ar condicionado.

Um abraço do
Mário


De Fá até Bissá, passando por Porto Gole e Enxalé

Beja Santos

“Entre o Paraíso e o Inferno” de Abel Jesus Carreira Rei, é um testemunho que se tem de tomar a sério no quadro da literatura memorial da guerra da Guiné. É um diário, e pelo que o autor nos oferece, dificilmente retocado das notas que foi tomando, da linguagem que se falava podemos dizer que é um documento sincero e singelo, é um testemunho da vida da CART 1661, que esteve no Leste nos anos de 1967 e 1968. Está lá praticamente o essencial de quem desvela as descobertas, a aprendizagem/adaptação aos infortúnios, a importância da correspondência, as amizades, as injustiças, as flagelações, a solidão, as saudades.

Diz tudo o que era a nossa viagem para a Guiné, a chegada a Fá, onde tudo parecia tão harmonioso, excepto o calor. A tensão pelo correio da família que não chega, depois a alegria das primeiras cartas e dos jornais locais. A primeira operação no Xime, onde estava a CCaç 1550. Tudo correu bem. Depois são colocados no Enxalé, substituindo a CCaç 1439. Começa a descobrir que todas aquelas dificuldades não tinham sido comunicadas, sente-se tratado como carne para canhão. Roubam-lhe coisas, marcam-lhe consultas médicas para as quais nunca será chamado, monta a emboscada em Mato de Cão e depois é colocado em Porto Gole. Refere que um dos pelotões da sua CART foi colocado em Missirá, mas nunca se falará desse destacamento, pelo que reza o seu diário nunca ali permanecerá, se bem que adiante fale em Finete, em Madina e até operações com o Pel Caç Nat 52. Adoece ou esmorece.

Sem perceber lá muito bem o que andavam a fazer, voltam a fazer uma operação no Xime e regressam a Fá. Depois voltam ao Xime para a Operação Guindaste, na zona do Buruntoni onde será destruída uma casa de mato. Temo-lo depois de regresso ao Enxalé e a Porto Gole. É promovido a 1º cabo e dão-lhe a intendência de comprar e distribuir os víveres. A comida é péssima, mas será muito pior quando for para o recém-criado aquartelamento de Bissá, um ermo entre Mansoa e Porto Gole, irá ser um autêntico bombo de festa até vir a ser desactivado como tantas outras experiências de fixação de quartéis em locais sem praticamente população que justificasse a quadrícula. Em Abril desse ano de 1967 começam as tragédias: um ataque a Bissá de que resultaram 7 mortos e 5 feridos, morreu o capitão de 2ª linha Abna Na Onça.

Anda estonteado com tanto serviço, são colunas, reforços e a compra da comida. Já aprendeu muita coisa, inclusive sabe que existe o macaréu, descobre que há inúmeras desavenças e intrigas entre militares acantonados, vai estando atento à vida das populações autóctones, desde as mulheres a apanharem caranguejos à beira rio até à compra das vacas. E chegou a vez de ir até Bissá que ele escreve assim:

“Destacamento composto por oito casernas-abrigos, vedado com arame farpado e iluminado com petromaxes. Está cercado por tabancas cujos habitantes são de raça balanta, das quais foram queimadas as mais próximas, para melhor defesa do mesmo. Fica rodeado de bolanhas a nascente, sul e poente, e matas pelo norte – o ponto mais perigoso, e pelo qual os turras têm possibilidades de nos atacar. É composto por um grupo de combate e duas secções de polícia administrativa”.

Começou o tempo de grão-de-bico e chouriço, as colunas são um tormento, perigo é o que mais há. Depois volta a Porto Gole, o aquartelamento é sistematicamente flagelado. Circula entre o Enxalé e Porto Gole, em Setembro regressa a Bissá, o quartel degradara-se profundamente. Habitua-se a ver os mortos, a trazer as urnas, a assistir a rebentamentos das minas. Bissá é verdadeiramente um infermo. Os meses arrastam-se, as flagelações não param, todas as colunas passam a tomar a dimensão de operações. Aliás, a CART 1661 participa em operações na região, com outras companhias bem como com tropas nativas. Em Fevereiro de 1968 vai de férias até Bissau, o pré que recebe não dá para férias na metrópole. Quando regressa a Porto Gole, apercebe-se que a situação em Bissau endureceu. A regularidade com que escrevera ao longo de 1967 o seu diário, perdeu-se, é um homem entristecido e, como escreve assiduamente, cansado e sem forças. Quem o lê, apercebe-se que é um homem com estrutura religiosa, está atento ao meio, lê e ouve música, deixa notícias no seu registo de que tudo aquilo é uma estranha guerra em que as populações estão concentradas e em que o inimigo, a despeito de revezes, regressa, tem sempre a iniciativa, cada vez que se vai até ele descobre-se que tem mecanismos de vigilância e detecção junto das suas bases que impede a sua fácil tomada.

A despeito de incorrecções e imprecisões, é um documento humano que um dia os historiadores irão tomar em conta no estudo desta região do Leste, perto do Geba, outrora muito povoada e onde o PAIGC se apropriou dos pontos ermos no Oio e arredores, flagelando e intimidando de 1963 em diante.

É uma prosa cativante quem foi juntando notas, escreve sem jactância nem alardes, fala dos mosquitos como dos maus tratos como do derramamento de sangue, parece conformado, suspira por voltar para a família. É por isso, por não se trata de prosa reconstituída, que tem um inegável mérito.

Contactei há tempos o primeiro comandante da CART 1661 o capitão miliciano Luís Vassalo Namorado Rosa, hoje um dos mais prestigiados arquitectos portugueses, pedi-lhe o seu testemunho para o blogue, já respondeu que qualquer dia nos dará notícias. Vamos aguardar por essas surpresas.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 22 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7654: Notas de leitura (192): A História da CART 1802 (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Anónimo disse...

Camarigos

Apenas um esclarecimento, quanto ao inferno de BISSÁ, aliás idêntico a muitos infernos que por lá existiram.
Se este destacamento foi abandonado, foi-o por pouco tempo, já que, a unidade que rendeu a CART 1661, foi a CART2411 em 07NOV68 e já tinha colocado 1 Pel em BISSÁ a partir de 22SET68. Nesta época, Porto Gole e Enxalé pertenciam ao Sector de MANSOA.
Claro que continuou a ser um inferno, talvez mais atenuado quando do meu ano em MANSOA.

Abraços
Jorge Picado

Jorge Narciso disse...

Este destacamento (Bissá) estava, como diz o Jorge Picado, de facto activo em 69 e 70, pois algumas vezes lá fui fazer abastecimentos de heli.
Era dos "buracos" mais medonhos que "conheci" na Guiné.
Assisti uma vez, aterrado em Porto Gole, à chegada duma guarnição acabada de ser rendida em Bissá.
Olhando para o ar e postura daqueles homens, mais parecia que estavam a desembarcar em Nova Yorque (lembro-me de o comentar com o Piloto) tal o sentimento de "libertação" que deles emanava.

Jorge Narciso