quinta-feira, 8 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9583: Blogpoesia (181): Pois que vivam os poetas, eles e elas, parqueados ou não! ... (Luís Graça)

Revisto, mais  uma e outra vez, para eu poder:


(i) dedicar às duas mulheres que eu amo, a Alice e a Joana (e elas sabem porquê); 


mas também (ii) assinar o livro de ponto neste dia que, infelizmente, ainda continua a ser, perdido ou não o seu sentido original,   o Dia Internacional da Mulher,  8 de março de 2012... LG




Que vivam os/as Poetas do Parque dos Poetas


Poeta é quem tem
Uma estátua do Simões
No Parque dos Poetas

Mas também
As contas em dia
Nos Serviços Municipalizados
De Águas e Saneamento
De Oeiras.
Em questões de género,
Aplique-se, entretanto,
O camartelo
Camarário,
Perdão, o regulamento municipal
Em forma de soneto,
Que manda atribuir quotas
Às senhoras:
- São cotas, senhoras, são cotas!


Para o caso são três, não mais,
Que foi a conta que Deus fez:
Natália, Sophia, Florbela.
- Mas que raio de país é este,
Em que a poesia é coisa de homens!
E onde estão elas, as garças,
Graciosas como as nossas caravelas ?!-
Grita o almoxarife dos SMAS.
As senhoras, meu Deus,
Ficam sempre bem é
Nas quermesses da cidade,
Nos jogos florais,
Nos bazares da caridade,
Nas feiras e mercados,
Na vida e na tela,
Ao télélé,
Nas telenovelas,
Nos lavadouros públicos,
Na vida-de-faz-de-conta,
No passeio das virtudes,
Na despedida dos soldados,
Na partida das naus da Índia,
Nos velórios, funerais e procissões.
Nos comícios.
Nas comixões.


Um século atrás
As nossas queridas poetas
Teriam ficado à porta do parque,
Com botinha de pé alto
E saias de entrefolhos,
Com cliché tirado pelo Joshua Benoliel,
Capa na Ilustração Portuguesa,
E legenda a condizer:
"Não ficam bem as senhoras
Que se metem a doutoras".
Ou: "Freiras e frieiras,
É coçá-las e deixá-las!".



Salvou-se a Natália,
E com ela a honra do gineceu,
Ao trocar a poesia por comida
Que sempre enche a barriga:
"Senhores autarcas, sois a cidade,
E eu a cereja no cimo do bolo serei,
Não há pólis sem o parque
Dos sonhos que vos roubei".





Dantes os poetas, os machos,
De bigode farfalhudo
Ou de pálidas cores andróginas,
Íam para o Olimpo,
Laureados,
Ou para o Aljube,
Agrilhoados,
Ou para o Manicómio
Do Rilhafolhes,
Ferrados e dopados,
Ou para o Tarrafal,
Exilados,
Ou para o Sanatório,
Tuberculizados.
Para a Ilha da Madeira,
Os mais afortunados.
Ou para a Morgue,
Congelados,
Ou até para o Panteão Nacional,
Nacionalizados.
Conforme as vagas que houvesse
E o equilíbrio dos quatro humores
Do Senhor Intendente Geral.


Só a Sophia pediu para voltar,
na inscrição que deixou no Livro Sexto:
"Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto do mar"...

Hoje o poeta,
Ladies and Genlemen,
Não sonha nem dorme
Nos bancos de jardim,
Ocupados pelos sem abrigo,
Os desistentes,
Os repetentes,
Ou como se diz agora
Os infoexcluídos...
Hoje o poeta vai directamente
Para o Parque,
De preferência já morto,
E devidamente estatuado.
O Parque dos Poetas.
Das merendas.
Dos velhinhos
Que dão milho aos pombinhos.
Das criancinhas
Da escola, de bibe
Aos quadradinhos.
Dos desempregados
À espera do subsídio de
Desemprego
Ou do emprego virtual,
Do teletrabalho,
Da chamada do call centre,
E dos frutos da flexibilidade
Organizacional.
E a fazer contas
À puta da vida
Que está pela hora da morte.


Em vão, protestou
O Rosa,
O Ramos, o António,
Adjectivando a liberdade:
Mas que coisa horrorosa
Se ela não fosse liberdade... livre!
O Parque dos Poetas
E dos namorados,
Do arco e do balão
E das quadras
Ao Santo António,
Afrodisíaco,
Milagreiro,
Casamenteiro,
Brigão,
Brejeiro!
  
Porque a Poesia
Quando nasce não é
Para todos,
Terá já dito um estrangeirado,
O Conde de Oeiras
E futuro Marquês de Pombal
(Volta, Marquês, que estás perdoado!).
Homens de letras
Ou de cânones,
Os poetas lusitanos,
Míopes, nos seus fatos

Puídos e castanhos,
Cinzentões.
Só o Jorge Sena
Era engenheiro.
Naval. No papel.
Não consta que
Tivesse construido ou reparado
Embarcações.
O Torga, clínico.
O Régio, místico.
O O'Neil, publicitário,
E claro
O David Mourão-Ferreira,
Doutor de letras,
Universitário,
De capa e batina,
Mas que também escreveu fado.
E que fado!
E o Pessoa, esse, coitado,
Era escriturário comercial.
Marçanos,
Cabouqueiros,
Coveiros,
Limpa-chaminés,
Cantoneiros de limpeza,
Calafates,
Estivadores,
Mineiros,
Calceteiros,
Picheleiros
Almocreves,
Pescadores,
Barbeiros-sangradores,
Construtores civis
Ou outra gente
Dos ofícios mecânicos.
Não há nenhum,
Que se saiba,
Que conste da lista imortal.
Dos poetas imortais
Do Parque do Isaltino.


Minto: há o Alberto Caeiro,
Guardador de rebanhos.
Mas esse não vi lá,
Porque é proibido pisar a relva
E pastar. E sonhar.
E sobretudo apascentar.
Guardador de rebanhos,
Ruminador de pensamentos,
À porta da capital,
Parece mal,
Destoa.
Não dá,
Já não é para turista.
Não rima com coisa boa,
Não rima com Lisboa.
Não casa com a modernice
Da Oeiras futurista.


Quem não viu nada,
Nem assinaria o consentimento informado
Mas que riria
Até às lágrimas,
Se o pernil não tivesse já esticado,
Seria
O caixa d'óculos do O'Neil,
Agora príncipe
Do Reino da Dinamarca.
Imagino-o,
De Ombro na Ombreira,
Polidor de esquinas,
Desnalgando as gajas,
Mesmo não sendo trolha
Da construção
Nem nunca tendo ido
Para o trabalho
De lancheira na mão.
Ou de lancheira na mão
Para o trabalho,
Trocando a mão direita
E a esquerda,
A lancheira e a mão,
Baralhando e dando letras,
Subindo e descendo a Avenida
Da Liberdade
À espera talvez de uma outra vida,
Mais segura,
Ou da dita,
Que só era de nome,
Reza a história,
Por causa da Ditadura,
De má catadura,
De má memória.


Mas que pode a palavra, etérea,
De um poeta,
Surrealista, anarca,
Dizem que genial,
Mas mais que morto
E enterrado,
Contra a palavra, de pedra e cal,
De um senhor autarca,
No seu feudo, no seu horto, no seu olival?



Alguém roubou
Uma pérola do colar
Da Florbela,
Flor sofrida,
Tão excessiva em vida
Como na morte.
Alguma ninfomaníaca
Da tribo gótica,
Algum admirador secreto,
Coleccionador,
Adolescente,
Voyeurista,
Turista,
Visionário,
Cleptómano,
Antiquário,
Violador,
Sexista,
Misógino,
Detective,
Homem aranha.
Ou quiçá
Algum promotor
(I)mobiliário,
O próprio dono da obra,
O empreiteiro,
O engenheiro,
O trolha,
O arquitecto paisagista,
O ajudante do escultor,
O fiscal,
O fisco,
O contabilista,
A mulher da limpeza,
O guarda municipal,
Eu sei lá!,
O homem do lixo
Ou até o morto-vivo da guerra colonial.

Por mim, confesso,
Gostaria de ter sido
Um simples Conservador
Do Registo Predial
Como o Pessanha.
E de ter escrito,
Não a fria Clépsidra,
Mas o Caleidoscópio
Lusotropical
Em mangas de alpaca,
Na Foz do Rio das Pérolas.
Gostaria de ter sido poeta-funcionário,
Da autarquia local,
Ou do ministério da eternidade,
Com cama, mesa e roupa lavada,
Uma tença, mesada ou salário,
E ajudas de custo para poder sonhar
E ter tempo e vagar.
Gostaria de ter feito (e dito)
Um soneto,
Desenhado a letra gótica,
À mão,
À moda antiga,
Com punhos de renda,
Em papel azul, selado.
E de ter tido tempo
Para fumar ópio,
Na época das monções,
Em Macau.
E de imaginar
O eclipse total
Do Império Colonial,
Como um baralho de cartas monumental,
A desmoronar-se,
Do Minho a Timor.
Gostaria ainda de ter sido
Laureado
Pelo Prémio do SNI
Do António Ferro.
Gostaria sobretudo
De ter datilografado,
Em Courier, fonte 12,
Sem o mais pequeno erro
Nem rasura,
O Sentimento de um Ocidental
E de o ter posto no meu currículo
Existencial:
"Nas nossas ruas, ao anoitecer
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer".


Queridos/as poetas:
Em Lisboa
Nem poesia má nem prosa boa,
Dizem os críticos encartados,
Mas prefiro aquele verso,
Mais rasca,
Mais proleta,
Que evoca os construtores da cidade,
Tão bravos quanto boçais,
Às vezes até engraçados,
Vistosos nos seus fatos-macacos,
E que engrossavam as estatísticas
Dos acidentes de trabalho
Mortais:
"Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga, os mestres carpinteiros".


Poeta maior da nossa modernidade menor,
Cesário, o Verde,
Não alcançou o Século
Da energia nuclear.
Da viagem à lua.
Do desastre de Cheche, no Corubal
Dos amanhãs que o outro galo cantaria.
Da Festa do Avante.
Do cimento armado.
Do motor de explosão.
Dos tsunamis revolucionários.
Das alegrias dos futebóis.
Do triunfo da ecologia
E da googlização.
Da bomba que brilhou
Mais do que mil sóis
Em Hiroshima, meu amor.
O Século dos chips
E do chispe de porco liofilizado.
Do Spínola, prussiano,
De monóculo e bengalim
Nas bolanhas da Guiné.
Da farsa da história.
Da caixinha que mudou o mundo.
E que mundo!,
Basta puxar o autoclismo
E fazer glu-glu,
Par ires parar aos buracos negros
Do admirável mundo novo virtual.
O Século, e que século!,
O dos vestidos de fru-fru.
Da aspirina e da farinha Amparo.
Da Lili e do Caneco.
Do Taylor e do Ford on the road.
Do terror de Tianannmen.
Da Nossa Senhora de Fátima de Felgueiras.
Do Luís Moita aos microfones da Emissora Nacional:
- Rapazes, não cantem o fado!
O século dos comícios da Fonte Luminosa
Ou do povão do garrafão
No Pontal do Portugal sacroprofano.
O século do Portugal de Salazar,
Prometendo eleições tão livres
Quanto a livre Inglaterra.
E do O'Neil e do Ruy Belo.
E do Millenium BCP.
O Portugal do maneta.
E o Portugal futuro.


Resta-me a Flor Bela,
Chorando a morte de Apeles,
Seu querido mano,
Oficial da Aviação Naval,
Quando os marinheiros tinham asas
E o Tejo das caravelas era um imenso porta-hidroaviões.

Cheguei a meio da vida já cansada
De tanto caminhar! Já me perdi!
Dum estranho país que nunca vi
Sou neste mundo imenso a exilada.


Tanto tenho aprendido e não sei nada.
E as torres de marfim que construí
Em trágica loucura as destruí
Por minhas próprias mãos de malfadada!


Se eu sempre fui assim este Mar Morto:
Mar sem marés, sem vagas e sem porto
Onde velas de sonhos se rasgaram!


Caravelas doiradas a bailar...
Ai quem me dera as que eu deitei ao Mar!
As que eu lancei à vida, e não voltaram!...


Cesário não conheceu a Amália,
Nem a Soror Saudade,
Nem a Mariza que canta a Florbela Espanca,
Nem as mulheres desta Lisboa que eu amo.
Não conheceu o Sá,
Talvez só o Mário,
Não o Soares, mas o Carneiro,
O Sá-Carneiro a fazer o pino.
Não figura por isso
No Parque do Isaltino.


[Há uma outra versão, de 6 de abril de 2008, aqui, em Luís Graça > Blogpoesia]
___________________

Nota do editor:

Último poste da série > 8 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9579: Blogpoesia (180): No Dia Internacional da Mulher, A um modelo de mulher (Felismina Costa)

10 comentários:

Zé Teixeira disse...

Lindo! As tuas mulheres inspiram-te
Abraço para ti e para elas.
Zé Teixeira

Luís Graça disse...

O Parque dos Poetas é um projecto da Câmara Municipal de Oeiras que pretende homenagear a cultura portuguesa.

Foi inaugurado em Junho de 2003, proporcionando um espaço de lazer, de cultura e de desporto, procurando cruzar a poesia e a arte dos jardins.

Tem jardins, alamedas, parque infantil, fontes, parque de merendas, anfiteatro ao ar livre, entre outras possibilidades a descobrir.

Estão representados na primeira fase os seguintes poetas: Carlos de Oliveira, Camilo Pessanha, Teixeira de Pascoaes, Mário de Sá-Carneiro, Florbela Espanca, José Gomes Ferreira, José Régio, Vitorino Nemésio, Miguel Torga, Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner Andresen, Natália Correia, Eugénio de Andrade, Manuel Alegre, Fernando Pessoa, Alexandre O'Neill, António Ramos Rosa, David Mourão-Ferreira, António Gedeão e Ruy Belo.

Em Abril de 2010 foram iniciadas as obras da 2ª fase do Parque dos Poetas, que se espera concluída em 2012. Esta 2ª fase acrescenta mais 15 hectares aos actuais 12, totalizando 27.

Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Parque_dos_Poetas

Torcato Mendonca disse...

......Cantoneiros de limpeza,
Calafates,
Estivadores,
Mineiros,
Calceteiros,
Picheleiros,
Almocreves,
Pescadores,
Barbeiros-sangradores,
Construtores civis
Ou outra gente
Dos ofícios mecânicos.
Não há nenhum,
Que se saiba,
Que conste da lista imortal.
Dos poetas imortais
Do Parque do Isaltino........nem o Aleixo que era Cauteleiro e Crítico Social.............

Luís Graça disse...

Grande poeta é o povo... analfabeto.

Nas quadras que a gente vê,
quase sempre o mais bonito
está guardado pr'a quem lê
o que lá não está escrito.

manuelmaia disse...

Caro Luís,

Parabéns pela bela poesia/homenagem à mulher.
Soberba!

Anónimo disse...

"Os poemas são pequenas lanternas de bolso na escuridão.Por vezes,um relâmpago cai sobre uma delas". (Ylva Egghorm/Sverige)

Luís Graça disse...

Não resisto a deixar aqui esta do "caixa d'óculos do O'Neil"


QUE VERGONHA, RAPAZES!


Que vergonha, rapazes! Nós práqui,
caídos na cerveja ou no uísque,
a enrolar a conversa no “diz que”
e a desnalgar a fêmea (“Vist’? Viii!”)

Que miséria, meus filhos! Tão sem jeito
é esta videirunha à portuguesa,
que às vezes me sorgo no meu leito
e vejo entrar quarta invasão francesa.

Desejo recalcado, com certeza...
Mas logo desço à rua, encontro o Roque
(“O Roque abre-lhe a porta, nunca toque!”)
e desabafo: - Ó Roque, com franqueza:


Você nunca quis ver outros países?
em queria, Snr. O’Neill! E... as varizes?
____________

De Ombro na Ombreira (1969)

Luís Graça disse...

Não resisto a deixar aqui esta do "caixa d'óculos do O'Neil"


QUE VERGONHA, RAPAZES!


Que vergonha, rapazes! Nós práqui,
caídos na cerveja ou no uísque,
a enrolar a conversa no “diz que”
e a desnalgar a fêmea (“Vist’? Viii!”)
Que miséria, meus filhos! Tão sem jeito
é esta videirunha à portuguesa,
que às vezes me soergo no meu leito
e vejo entrar quarta invasão francesa.
Desejo recalcado, com certeza...
Mas logo desço à rua, encontro o Roque
(“O Roque abre-lhe a porta, nunca toque!”)
e desabafo: - Ó Roque, com franqueza:
Você nunca quis ver outros países?
-Bem queria, Snr. O’Neill! E... as varizes?

Alexandre O'Neil (1924-1986)
De Ombro na Ombreira (1969)

Anónimo disse...

Caro Luís Graça

Para já, não resisto a dizer, que também não resistia a referir O´Neil neste apontamento.

Valha-nos a poesia, o nosso humor, às vezes negro...porque é preciso, e a força para enfrentar o dia seguinte.

É preciso dizer!
É preciso falar, para que o espírito desanuvie, e possamos depois, escrever as coisas belas...

Obrigada por tudo!

Um beijo da

Felismina

Hélder Valério disse...

Caro Luís

Como já escreveste em vários comentários, sendo o mais recente que li no poema do Juvenal, por aqui têm passado inúmeros poemas, com bastante qualidade, pelo menos assim os entendemos, e que isso deverá ser motivo para provocar, mais cedo ou mais tarde, uma edição dessa colectânea.
Presumo que mais difícil do que encontrar ou arranjar quem possa promover tal documento será a escolha do que conterá....

Abraço
Hélder S.