sábado, 10 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9594: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (11): A PIDE/DGS, a repressão estudantil em Lisboa, Portugal e o Futuro...

1. Um diário de guerra, para mais escrito como este com base em documentos pessoais da época, e publicado,  sem censuras nem rasuras, em 2007, é um "livro aberto", um documento com maior ou menor interesse em termos de informação e conhecimento  sobre o autor e a sua circunstância, neste caso o Teatro de Operações da Guiné, entre meados de 1972 e as vésperas do 25 de abril de 1974, visto por um alferes miliciano, não operacional, de um CAOP (Comando de Agrupamento Operacional), ligeiramente mais velho do que a generalidade dos milicianos (que integravam as unidades combatentes), e para mais com formação universitária. 

No seu diário, o António Graça de Abreu (nascido em 1947, no Porto, ex-Alf Mil do CAOP1, 1972/74) dá-nos notícias do que se passa nas guarnições onde esteve (Canchungo, Mansoa, Cufar) assim como das informações, classificadas, a que tem acesso privilegiado, sobre o IN e sobre as NT... 

Falámos também dele, das suas preferências,  dos seus gostos, dos seus amores, das suas leituras... Falá-nos da metropóle e do que lá se passa, da repressão estudantil, dos seus sonhos e projetos futuros...  Fala-nos também da PIDE/DGS, do seu papel, e da relutância que alguns de nós tinham em relacionar-se com os seus agentes no TO da Guiné... Enfim, fala-nos dos tempos que estão a mudar e inquieta-o, também, o futuro da sua/nossa querida pátria, a propósito da publicação do livro do gen António Spínola, Portugal e o Futuro... 

Com a devida vénia, ficam aqui mais alguns excertos do seu Diário da Guiné, 1972/74, de que temos um ficheiro em word, o mesmo que serviu de base à edição do seu livro Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp) (*). (LG)

___________________

(…) Canchungo, 13 de Julho de 1972


Recebi carta do Bolhé da Silva, um dos meus alunos de Português nas aulas para adultos que dei quase até embarcar para a Guiné na Cooperativa Vis, no bairro do Bosque, Amadora. Escrevera para lá um aerograma perguntando como haviam corrido os exames. Estes meus ex-alunos de Português são quase todos alentejanos e operários da Sorefame. Voltaram a estudar para concluir o ciclo. Fiquei satisfeito por saber que a maioria deles dispensou às orais.

O meu trabalho e o dos outros professores, todos a dar aulas sem ganhar um tostão, não foi em vão. Tive gosto em ensinar, em aprender. Mas continuo convencido que vim parar à Guiné por causa destas aulas. Há dois meses a PIDE/DGS foi visitar a Cooperativa – que creio ter relações clandestinas com o Partido Comunista –  e pediu o nome e profissão de todos os professores dos cursos do Ciclo Preparatório. Três semanas depois, já com quase dois anos de tropa em Portugal, fui estranhamente mobilizado para a Guiné.

[ Nota de rodapé: A polícia política seguia os meus passos desde Outubro de 1967. É curioso o meu processo consultado só agora em 2006: Arquivo Nacional da Torre do Tombo, PIDE/DGS, Procº. 9175 C7 (2) – NT 7555.]

(...) Teixeira Pinto ou Canchungo, 26 de Julho de 1972

Abro muito os olhos e os ouvidos, meto tudo dentro de mim, falo pouquíssimo, quase não reajo, não demonstro nada. Mas sinto que em Portugal é que o PAIGC vai ganhar a guerra, aqui não a perde e no terreno não a consegue ganhar.

No labor quotidiano no Comando de Operações, passam pelas minhas mãos documentos fundamentais para se entender a guerra na Guiné. Chegam de Bissau e são as informações diárias e semanais, os relatórios mensais de operações com todos os dados, bombardeamentos, flagelações, ataques, emboscadas, os números dos milhares de quilos de bombas lançadas pelos nossos aviões, o número de mortos e feridos, NT e IN, dias, horas, particularidades dos ataques, etc.

Esta documentação tem a classificação de confidencial e secreta. Vêm também as informações da PIDE/DGS com dados sobre a movimentação dos guerrilheiros, natureza dos acampamentos IN e outros elementos. Um exemplo, pela PIDE de Canchungo soubemos que neste momento estão dentro da Guiné sete jornalistas de nacionalidade checa, búlgara e russa. Entraram, vindos do Senegal, pela fronteira junto a S. Domingos, uns oitenta quilómetros a norte daqui.

O meu major P. não gosta muito do Sr. Costa, o agente da PIDE/DGS em Canchungo, que tem uma vivenda aqui na avenida. O major diz que o Costa, para mostrar serviço, de vez em quando inventa factos e notícias. Parece-me bem possível. Estive em casa dele a semana passada e, no desempenho de funções, tive de lhe apertar a mão. Coisas impensáveis em Lisboa. (…)

Dia 3 de Agosto vai ser data quente na Guiné. É o aniversário do PAIGC e por isso estão planeadas para esse dia diversas acções de guerrilha, encontrando-se Canchungo no rol das terras a atacar. A informação chegou pela PIDE/DGS de Bissau.

No caso de um ataque, já estive a preparar a minha defesa. Como não sou operacional, fico no meu aposento (se estiver lá no momento da flagelação!) e vou para o pequeno quarto de banho que é interior e tem paredes duplas de tijolos. O problema é o tecto que é de lusalite e não resiste a um impacto, de cima para baixo, de um foguetão ou granadas de grande calibre, mas o quarto de banho resiste ao resto. E é altamente improvável que o fogo do IN vá logo acertar nos três metros quadrados de telhado do meu quarto de banho.

Ainda estou virgem quanto a flagelações, emboscadas, bombardeamentos. Vou perder a virgindade em breve, tenho a certeza.

(…) Canchungo, 5 de Agosto de 1972

Canchungo não foi atacada, a informação do tipo da PIDE/DGS de Bissau era falsa.

Mas foram outros aquartelamentos NT. Leio os relatórios quotidianos das acções na Guiné e vejo os lugares onde os militares portugueses levaram (e deram) porrada. Os guerrilheiros fazem o que têm a fazer, eu compreendo, é a luta deles. Mas também é verdade que não gosto de ver as NT serem flageladas. Eu estou deste lado da barricada, com os homens iguais a mim expatriados nesta pequena África suja e quente. São meus amigos, é a minha gente. Não merecemos ser atacados, nenhum de nós merece sofrer, morrer por uma causa que quase ninguém sente.

(...) Mansoa, 1 de Maio de 1973

Não sei quem é que disse que “cada português traz um polícia dentro de si”. E além dos polícias “dentro” existem muitos “fora”, à nossa volta. (…)

Mansoa, 8 de Maio de 1973

Leio na Presse, um boletim informativo para militares que nos chega de Bissau, que houve zaragatas entre estudantes e polícia na Cidade Universitária, em Lisboa. Desta vez os polícias não foram nada meigos, dispararam mesmo mas, segundo a Presse, dispararam para o ar. Curioso terem atingido um estudante que voava. (…)

(...) Cufar, 22 de Fevereiro de 1974

Regressei no Nordatlas, na viagem certinha até cá abaixo. Tudo calmo em Cufar. No nordeste da Guiné, em Copá junto à fronteira, é que tudo vai mal. Mal para as NT, bem para o IN. Ouvi falar num ataque com cem foguetões, valha-lhes Deus! Começa a ser insustentável aguentar Copá.

Em Portugal as coisas também aquecem, com manifestações contra a carestia de vida organizadas pelos maoístas do MRPP. Houve pancadaria da grossa, três polícias feridos, um deles levou uma pedrada na cabeça. O povo não anda bom.

Em Bissau rebentou uma bomba no quartel-general. E que dizer do novo livro de António de Spínola Portugal e o Futuro? O antigo Caco Baldé, meu ex-comandante-em-chefe, propõe soluções federalistas para a resolução dos conflitos do Ultramar. O livro vai ter sucesso entre os liberais, o grupo do Balsemão e do Expresso, e também entre alguma da Oposição. Abençoadamente, agitará os espíritos de muitos portugueses.

O Marcello Caetano começa a ficar exasperado. No essencial, o mestre de Direito limitou-se a dar continuidade à política de Salazar e não sabe, ou esqueceu-se, como diz o Bob Dylan que “the times, they are a’changin”. O general Spínola aponta caminhos enviesados, é verdade, mas indica possíveis saídas para o pântano fétido em que vivemos.

Que futuro para Portugal? (…)
_________________

Nota do editor: 

(*) Vd. último poste da série > 25 de fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9531: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (10): As vozes da nova música popular portuguesa (incluindo o Zeca Afonso) que chegavam ao CAOP1 através das ondas hertzianas da rádio

5 comentários:

Antº Rosinha disse...

António G. de Abreu, escreves parecendo mais um repórter de guerra do que um militar.

Mas só quero comentar o livro de Spínola, que apesar da censura já tinhas conhecimento do conteúdo com a tua idade de Alf. milº.

É que a seguir ao 26 de Abril é que vi pela primeira vez esse livro e toda a gente comprou o livro.

E, quando no serviço onde eu trabalhava em Angola, a malta se preparava com sofreguidão saber o que o General queria dizer, veio o nosso chefe de secretaria, um cincoentão que noutros tempos foi sargento na India e em Angola, portanto muito viajado e cultura colonial, disse que não valia a pena ler.

E disse-nos que possuía um livro antigo no fundo de um baú e que Spínola apenas tinha copiado o que esse livro dizia.

E só eu aqui, no Luís Graça, pela segunda ou terceira vez digo o que nunca se lê em Portugal, que todas as ideias expressas pelo Spínola, em 1973, já vinte anos antes tinha escrito o mesmo, outro general, Norton de Matos.

Sabes António a única diferença do livro de um general para o outro? apenas os títulos dos capítulos, em que no Norton de Matos dava-lhe um número e Spínola dava-lhe um nome.

E, Spínola precisava mais palavras que Norton, para dizer a mesma coisa.

Passados anos tentei encontrar o dono desse livro mas já me atendeu a viúva e desisti de chegar ao livro.

Na internet não encontro referência a esse livro e nunca se refere nada semelhante ao que afirmo.

Esse dono do livro tinha-o escondido porque estava proibido pela censura.

Só aí, por causa desse antigo sargento, comecei a ligar coisas, e a pensar em coisas que nunca pensei dar importância.

António G. de Abreu, aprecio o que relatavas, e como o fazias.

Cumprimentos

Luís Graça disse...

A canção é de 1964...Aqui vai a letra, em inglês

Fonte: http://www.bobdylan.com/songs/the-times-they-are-a-changin



The Times They Are A-Changin'

Come gather ’round people
Wherever you roam
And admit that the waters
Around you have grown
And accept it that soon
You’ll be drenched to the bone
If your time to you is worth savin’
Then you better start swimmin’ or you’ll sink like a stone
For the times they are a-changin’

Come writers and critics
Who prophesize with your pen
And keep your eyes wide
The chance won’t come again
And don’t speak too soon
For the wheel’s still in spin
And there’s no tellin’ who that it’s namin’
For the loser now will be later to win
For the times they are a-changin’

Come senators, congressmen
Please heed the call
Don’t stand in the doorway
Don’t block up the hall
For he that gets hurt
Will be he who has stalled
There’s a battle outside and it is ragin’
It’ll soon shake your windows and rattle your walls
For the times they are a-changin’

Come mothers and fathers
Throughout the land
And don’t criticize
What you can’t understand
Your sons and your daughters
Are beyond your command
Your old road is rapidly agin’
Please get out of the new one if you can’t lend your hand
For the times they are a-changin’

The line it is drawn
The curse it is cast
The slow one now
Will later be fast
As the present now
Will later be past
The order is rapidly fadin’
And the first one now will later be last
For the times they are a-changin’

Copyright © 1963, 1964 by Warner Bros. Inc.; renewed 1991, 1992 by Special Rider Music

Hélder Valério disse...

Caros camaradas

Como já disse de outras vezes, acho estas páginas do "Diário do António" muito interessantes, muito educativas, muito elucidativas.
Também como já escrevi achei isso logo na altura em que comprei e li o livro, em Fevereiro ou Março de 2007, e agora cada vez mais.
É notável o que se aprende com elas, quer seja sobre o seu conteúdo em si mesmo, quer do ponto de vista da aprendizagem da evolução do pensamento, do diferente modo de 'ver' as mesmas coisas.

Abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

To ensure the seller actually has the game and not trying to pull a trick there should be a picture and
this should not be a picture file or stock photo. This is another
way to increase the level of intensity within the game, now that you can have at most sixteen players playing
side by side or competing against one another. The information gathered to compile the list of top 10 worst cities for auto theft was taken from NICB.



Also visit my blog post ... gta 5 cheats

Anónimo disse...

You cannot control your troops once they have been deployed.
This is based on their relatively great weapons or power.
It's very refreshing when directors know what they want, but at the same time, are open to
listening to other opinions.

My blog: how to get free gems in clash of clans