sexta-feira, 27 de abril de 2012

Guiné 63/74 - P9814: Notas de leitura (355): Manuel Pinto de Andrade, Amílcar Cabral e o PAIGC (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 19 de Março de 2012:

Queridos amigos,
O intuito é deixar registado tudo quanto se escreveu que se prende com os acontecimentos guineenses e a guerra em que participámos.
Mário Pinto de Andrade é uma das raras figuras de pensamento profundo ligado a uma obra teórica, podemos juntá-lo a Amílcar Cabral, Viriato da Cruz e Eduardo Mondlane, não vejo, contingência das minhas limitações, outros nomes que possam ser postos na primeira linha do pensamento e da ação anticolonial “A geração de Cabral” é um texto muito belo, uma elegia proferida escassas semanas depois do desaparecimento do fundador do PAIGC; o segundo texto é mais comedido e expende conceitos já amplamente difundidos sobre a originalidade do pensamento de Cabral. Valem como documentos históricos de 1973 e 1974.

Um abraço do
Mário


Mário Pinto de Andrade, Amílcar Cabral e o PAIGC

Beja Santos 

Graças à indefectível estima de António Duarte Silva, que está sempre disponível para abrir mão do seu baú de preciosidades, acabo de ler dois textos de Mário Pinto de Andrade em que evoca, no primeiro caso, a geração de Cabral, e, no outro caso uma comunicação sobre a natureza da guerra em curso na Guiné-Bissau. São documentos que hoje não trazem grandes novidades ao leitor, historiadores como o próprio António Duarte Silva, ou Julião Soares Sousa ou Leopoldo Amado referem-nos pela sua importância e significado. O primeiro está datado de 1973, precisamente em 8 de Fevereiro (atenda-se que Cabral fora assassinado em 20 de Janeiro), trata-se de uma palestra proferida na Escola-Piloto do PAIGC em Conacri e o segundo versa uma comunicação feita por Andrade no 24.º Congresso Internacional de Sociologia, que se realizou em Argel em Março de 1974 e com o título “Aspetos de sociologia da guerra do povo na Guiné-Bissau: alguns conceitos da estratégia revolucionária de Amílcar Cabral”.

Em “A geração de Cabral”, o dirigente do MPLA e que manteve uma relação constante de profunda estima e companheirismo com Cabral, debruçou-se sobre os tempos de Lisboa, quando os estudantes africanos, no pós-guerra partilharam anseios e expetativas para a criação de condições que levassem à organização de movimentos independentistas. A sua elegia começa em 1948 e ele recorda: “Lembro-me perfeitamente: o acaso quis que alguns camaradas angolanos, que faziam os seus estudos em Lisboa, habitassem num bairro (o bairro da Ajuda) onde estava situado o Instituto Superior de Agronomia”. Descreve os principais acontecimentos políticos internos, a vida e os estudos universitários e as preocupações da africanidade, todos eles começam a definir e a sua identidade de estudantes africanos em repúdio pela permanente referência dos manuais portugueses falarem em civilização superior, omitindo sempre o conhecimento da cultura e da identidade de cada uma das colónias. Era um grupo de que faziam parte Marcelino dos Santos, Agostinho Neto, Eduardo Mondlane, Francisco Tenreiro e Vasco Cabral. Aludiu depois à tentativa de introduzirem uma nova dinâmica na Casa dos Estudantes do Império, diligência que não teve sucesso. Todos eles seguiam o que se passava com a revolução chinesa, comentavam os sucessos da URSS, a tomada de posições dos negros nos EUA, liam Jorge Amado e poetas como Nicolás Guillén.

Não tendo tido sucesso com a Casa dos Estudantes do Império, dirigiram-se para outra organização, a Casa de África, aqui se constituiu uma vida de debates e reuniões, foi aqui que nasceu o Centro de Estudos Africanos, em 1951. E escreve: “Pedimos a uma família de S. Tomé, que tinha um grande salão (lembro-me perfeitamente na rua em que essa casa se situava – era na rua Actor Vale, n.º 37), que nos possibilitasse a realização das nossas reuniões. O Centro de Estudos Africanos era o centro das nossas conversas sobre África: aí estudávamos a geografia, a história, a literatura, as nossas línguas, os nossos problemas políticos”. Depois Cabral foi trabalhar no recenseamento agrícola na Guiné, em finais de 1952. Em 1953, ouve uma revolta em S. Tomé que teve como resultado um massacre de mais de 1000 pessoas numa população de 60 mil. O Centro de Estudos Africanos denunciou esse massacre. Cabral seguiu para Angola onde contribuiu para fundar o MPLA, porém antes tinha também trabalhado para a formação do PLUA – Partida da Luta Unida dos Povos Africanos de Angola. Em 1957, Cabral encontra-se com outros amigos em paris para estudar o desenvolvimento da luta nas colónias portuguesas, vem depois a Lisboa e fundou com outros o MAC – Movimento Anticolonialista.

Para Mário de Andrade, neste período Cabral era um verdadeiro emissário da evolução para onde quer que se deslocasse. A elegia prossegue com o surto de independências em África e a partida de Cabral para o norte de África e depois para Conacri. E assim termina: “Camaradas, quando a morte nos surpreender, quando desaparecerem aqueles patriotas da primeira hora, lembrem-se que a geração de Cabral não viveu inutilmente. Ela lutou duramente para criar as condições que permitissem aos homens viverem livres nas nossas terras”. A conferência proferida em Argel passa em revista a guerrilha, a lição vietnamita e a análise das condições históricas do colonialismo português. O que, no pensar de Andrade, garantiu sucesso da luta na Guiné foi em primeiro lugar a capacidade de Cabral a adaptar os conceitos teóricos repondo-os numa lógica da sociedade guineense. Recorda como esses conceitos heterodoxos foram apresentados na Conferência Tricontinental de Havana em que Cabral, para escândalo de alguns, reformulou o conceito da luta de classes, de cultura nacional, da essência do partido dirigente, pondo em paridade a luta de libertação com o fator cultural. Tornava-se flagrante o revisionismo do pensamento de Lenine, mas Cabral foi habilidoso na referência: “Toda a luta é uma experiência nova, qualquer que seja a soma de conhecimentos teóricos ou de experiências práticas que lhe digam respeito. Toda a luta implica um certo grau de empirismo, mas não é necessário inventar o que já o foi; é preciso criar nas condições concretas com que a luta é confrontada. Ainda aí, a lição de Lenine é pertinente: ele tinha horror tanto ao empirismo cego como aos dogmas (…) Para criar, numa luta, é preciso conduzi-la, é necessário desenvolver todos os esforços e aceitar os sacrifícios necessários. A luta não é feita de palavras, mas pela ação quotidiana, organizada e disciplinada, de todos os elementos válidos. A atividade múltipla desenvolvida por Lenine no decurso de uma longa luta é um exemplo de continuidade e de consequência, de esforços e de sacrifícios, assim como da capacidade para mobilizar as forças necessárias no tempo e no espaço necessários”.

Mário Pinto de Andrade não escondia a admiração incontida por Cabral: “O tempo há-de nos revelar todas as facetas e implicações operatórias da estratégia revolucionária da sua obra. Nenhuma dúvida nos resta que a obra de Cabral está já criando raízes no património de todos os militantes, para o verdadeiro regresso à história do Terceiro Mundo”.
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 23 de Abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9789: Notas de leitura (354): "Um Demorado Olhar Sobre Cabo Verde", por Jorge Querido (2) (Mário Beja Santos)

2 comentários:

antonio graça de abreu disse...

Esquerdismo completamente demodé, tudo datado, fora de moda, fora do mundo real onde vivemos.

Diz o Mário de Andrade:

"Cabral não viveu inutilmente. Ele lutou duramente para criar as condições que permitissem aos homens viverem livres nas nossas terras”.

A vida de homens livres, filhos da terra verde e amarela, das bolanhas, das florestas e dos rios,
Guiné Bissau do nosso sofrimento e
de umas tantas extremadas alegrias.

Amílcar Cabral não criou, infelizmente, as condições para os homens viverem livres na Guiné Bissau, ou em África.
A História é bem mais complexa, e estas ultrapassadas análises marxistas, com Lenine e tudo, são dos anos sessenta e setenta do século passado. Até a URSS, uma feroz ditadura da direita comunista, era um modelo de virtudes...
Estamos em 2012. Os governantes da Guiné Bissau, até há vinte dias atrás, estão, após mais um golpe de Estado, exilados na Costa do Marfim. Homens livres ?...
Amílcar Cabral, onde está? Encaixilhado no museu da memória.

Abraço,

António Graça de Abreu

Anónimo disse...

E nao e que a emancipacao do homem guineense e a independencia do territorio sao indiscutivelmente parte das condiccoes criadas...por Cabral.

Quem mobiliza para uma mesma frente,etnias e povos distintos,lancando as sementes da construcao da nacao guineense, contrariando os argumentos da colonizacao,muito mais nao se lhe pode exigir!

... quanto ao resto, meras magoas!

Nelson Herbert