Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
terça-feira, 9 de outubro de 2012
Guiné 63/74 - P10504: Do Ninho D'Águia até África (16): As notícias (Tony Borié)
1. Continuação da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.
Do Ninho D'Águia até África (16)
As Notícias
Quarta-feira, é dia de correio. Vem a avioneta, que por vezes nem aterra, passa rasteiro e larga os sacos, no que os militares chamam o campo de aviação, que é a tal área plana que existe ao norte da dita aldeia com casas cobertas de colmo.
O piloto costuma ser o “Pardal”, foi assim que o baptizaram, pois costuma fazer umas habilidades antes de largar os sacos do correio, como por exemplo, dá uma volta rasteira ao aquartelamento, de lado, a rasar a enorme árvore, a que chamam a “Mangueira do Setubal”, que existe dentro do aquartelamento, fazendo os macacos e piriquitos fazerem um barulho fora do normal.
O “Pardal”, sabia isso.
Uma secção de combate vai buscar os sacos, que traz para o aquartelamento, onde já todo o pessoal espera pela distribuição. Alguns, com uma dúzia de madrinhas de guerra, recebem um monte de cartas, com fotografias e tudo. Outros, nem uma carta, mas não ficam tristes, vão direitos à cantina e abafam a amargura numas garrafas de cerveja ou numas canecas do café, cheias de vinho.
O Cifra recebeu quatro cartas e três aerogramas, chamaram o seu nome sete vezes. Alguns colegas assobiaram, e como o Cifra se ria, alguns fizeram-lhe um gesto erótico com o dedo da mão direita. Mas adiante, pois de outras vezes, e em situação oposta, o Cifra fazia o mesmo.
Uma dessas cartas, era dos seus pais.
A mãe Joana começava por dizer que tinha pedido à menina Teresa, que era uma vizinha, costureira e solteira, de quase sessenta anos que por saber ler e escrever, entre outras coisas era a conselheira da família, e o Cifra até se lembra de uma vez, a menina Teresa aparecer muito aflita em casa de seus pais pela manhã, dizendo com a voz embargada pela angústia:
- Joana, hoje é um dia de luto, arranja alguma roupa de cor preta e veste, pois morreu o Marechal Óscar Carmona e a mãe Pátria está de luto, estamos todos de luto, anda vai mudar de roupa, mulher de Deus!.
[Foto à esquerda, o marechal Óscar Carmona, 11º presidente da República Portuguesa, entre 1926 e 1951, imagem do domínio público, cortesia da Wikipédia].
Ao que a mãe Joana, muito admirada, nesse momento limpando as mãos ao avental, já muito sujo e roto, pois tinha acabado de regressar do curral dos porcos, onde tinha deitado na pia, um balde com alguns restos de comida, que tinham sobrado do dia anterior, lhe responde:
- Oh meu Deus, deve ser alguém conhecido dos primos de Lisboa, pois não me recordo de ninguém na família com esse nome!
E o Cifra, que nessa altura se chamava Tó d’Agar, ficou radiante, pois a menina Teresa, mais à frente dizia que nesse dia não havia escola, por o País estar de luto, para chorar a morte do presidente.
Mas adiante, vamos continuar com a história. A mãe Joana contava na carta que tem andado um pouco sem cabeça para notar a carta, mas hoje estava melhor, e dizia, que o irmão mais velho, quer casar com uma rapariga para os lados do rio Vouga, e não pára em casa, anda sempre fugido. O irmão do meio, que sempre foi um aventureiro, quando o Cifra era criança, lembra-se que esse irmão andava sempre vestido com alguns farrapos, que colocava no corpo, parecendo tal e qual o “Robin dos Bosques”, e com uma habilidade espantosa no manejo de um arco, feito por ele, acertava com uma flecha, feita de pau, nas galinhas, no cão, nas ovelhas, nas cabras e nos porcos.
O Cifra recorda-se do irmão, tal e qual ele via nos desenhos dos livros de quadradinhos que o Carlos, filho do Santos dos correios, que tinha vindo dos lados de Leiria, que sempre lhe trazia, com um lápis de cor vermelha ou azul, que o pai geralmente usava nos correios, e não só, pois também fazia a revisão e censura do jornal da vila, que o senhor Macieira, compunha letra por letra na travessa da venda da Tia Zinia, tudo isto a troco de uma simples conta de multiplicar, em que o Cifra, naquela altura, To d’Agar, lhe resolvia, em dois minutos na lousa de pedra, com um riscador também de pedra. Mas não tirando o fio à meada, esse irmão, está com a mania de ir para Lisboa, ter com os primos.
Dizia também, que o pai estava muito resmungão, mas era a sua companhia. A quinta estava muito mal tratada, já tem algumas silvas nas terras altas. Explica ainda que na semana que passou, foram à vila buscar o dinheiro. (Dinheiro este que recebem do governo, que diziam, metade era pago pelo governo, que o mandou para aquela província, e outra metade era pago por uma multinacional de nome parecido com “Marconi”, o Cifra, nunca soube, mas o dinheiro que os pais do Cifra iam receber, é parte do salário militar do Cifra, por se encontrar em cumprimento de serviço numa província do ultramar).
Dizia também que no local onde foi receber o dinheiro, lhe deram café com leite e pão com manteiga, e que um senhor que parecia militar, lhe explicou que o seu filho já não era seu filho, mas sim filho da Pátria, ou coisa parecida, e que estava pronto a morrer para salvar essa Pátria, que era a sua verdadeira mãe, ao que ela começou logo a chorar, e sempre chorava quando lhe vinha isto à lembrança, pois tinha sido ela que o trouxe na barriga por nove meses e dois dias, e foi a sua mãe, avó do Cifra, que naquela altura se chamava Tó d’Agar, que a ajudou a trazê-lo ao mundo, que lhe deu de mamar, que o criou, e agora vem o maldito do militar dizer que não é seu filho, que o “diabo o arrenegue para o meio do inferno”, e que pedia a todos os Santos, mais à Nossa Senhora de Fátima, para que ao receber esta carta, ainda estivesse vivo, aliás, a partir desse momento, todas as cartas que recebia da mãe, começavam sempre com a frase, “Oxalá que ainda estejas vivo”.
E continuava dizendo na carta que esse dinheiro lhe tem dado algum jeito, a ela e ao seu pai. Cada um tem um par de tamancos novos, e o pai tem umas botas de borracha, a que chamam “galochas”, agora anda sempre com os pés secos. Comprou cobertores novos, o seu pai e ela andam mais bem calçados. Os vizinhos perguntam por ele e mandam recomendações. Na vila tinha visto algumas pessoas do grupo folclórico, que lhe perguntaram se ele estava vivo, pois tinham visto na televisão umas notícias da Guiné, onde morreram muitos militares, que a guerra aí era feia, mandavam saudações e que esperavam por ele. Pronto, ia acabar, que recebesse a sua benção, e finalizava com a frase, “que Deus te proteja”.
As outras cartas eram dos primos de Lisboa e das madrinhas de guerra, pois neste momento, escreve-se com uma brasileira, duas espanholas e duas portuguesas, uma das quais viria a ser a sua companheira para o resto da vida.
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Notas de CV:
Foto de Manuel Traquina, editada por CV
Vd. último poste da série de 6 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10488: Do Ninho D'Águia até África (15): O "Caneta" (Tony Borié)
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3 comentários:
Tony
Estava a ler-te e a imaginar a nossa
Águeda há cinquenta anos.A tua mãe vinha à vila,hoje a vila,cidade,já chegou ao Ninho d'Águia.O local onde os nossos pais iam receber o patacão,a velha ECS(escola central de sargentos)existe,já não como escola militar,mas como ESTGA(escola superior tecnologia gestão de águeda).Outros tempos...
Abraço
Tony, tens memórias bem vivas da tua infância, mesmo vivendo longe da Pátria, a tal que também foi tua mãe, a segunda...
Aliás, seria mais correto dizer Mátria, não sei por que foi grafado o termo Pátria em vez de Mátria...
Então ainda te lembras do Marechal Carmona, que morreu em 1951 ?! Eu era puto, mais novo do que tu, tinha 4 anos quando ele morreu... Só me lembro do Craveiro Lopes e do Américo Tomás...
Dele disse Salazar, nas suas "confissões" a Franco Nogueira (Um Político Confessa-se, p. 179):
"Um príncipe. Uma figura muito aliciante, atraente e insinuante [...] Nunca tive a certeza durante o muito tempo que trabalhámos juntos, que ele estivesse comigo. Estou mesmo convencido de que não estava comigo a maior parte desse tempo." (*)
Em suma, Carmona, ao que parece, não era um "salazarista"...
Um abração para ti e demais camaradas que vivem na terra do Tio Sam. Luis Graça
______________
(*) Vd.
http://jorgesampaio.arquivo.presidencia.pt/pt/palacio/presidentes/antonio_carmona.html
Olá Paulo e Luís, os vossos simpáticos comentários, são cumprimentos para mim, obrigado. A minha mãe, vestia a roupa domingueira para vir à vila, e comprar algumas "guloseimas", que era como ela chamava ao arroz, massa, às vezes pão de trigo, sal, e outros tempêros, pois a nossa comida era à base carne de porco, e legumes cultivados na pequenina quinta, assim como milho, que era sêco, depois moído nos moinhos do Gravanço, onde se fazia a brôa, que era a "tranca da barriga"!.
Na escola primária, via a fotografia do marechal Carmona, entre o mapa de Portugal, que estava pendurado na parede e o quadro, preto, grande, frio e "com cara de mau", onde estava sempre a fraze escrita. "A bem da Nação", e por baixo um sem número de contas de somar, multiplicar e dividir, que tinham sido o motivo, para por vezes um de nós os alunos termos levado com a cana nas orelhas, ou umas "reugadas" nas mãos, por não saber-mos resolver esses mesmos problemas!. Eu até gostava da fotografia do Marechal Carmona, pois quando levava com a cana nas orelhas, ele olhava para mim, e eu via nos seus olhos alguma lástima, como se tivesse alguma pena de mim!. Um abraço, Tony Borie.
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