sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10839: Conto de Natal (9): O meu Natal de 1965 em Bissorã (Manuel Joaquim)

1. Mensagem de Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67), com data de 17 de Dezembro de 2012:

Meus caros camaradas Luís, Carlos e Eduardo:
Aqui vai para publicação no blogue, se o entenderem, um texto sobre o meu Natal de 1965.

Para os três grandes, um grande abraço do
Manuel Joaquim



O meu Natal de 1965

O Natal surgiu dois meses depois da minha chegada a Bissorã, terra que eu sentia muito acolhedora mas … não esquecia que muitos dos seus habitantes poderiam estar ligados por laços familiares e/ou afectivos ao IN e alguns deles seriam mesmo guerrilheiros.

A propósito, usei um aerograma especial para enviar as Boas-Festas à minha namorada:


“Minha querida, a minha muita vontade de te fazer companhia nesta quadra de promessas e esperanças não é, infelizmente, suficiente para transportar o meu corpo até junto de ti. (…) desejo afirmar-te que a esperança (…) me não abandona. 1966 ultrapassá-lo-ei (…) . Não tenho tido muito tempo para te escrever. As nossas actividades redobram nesta altura para evitar que haja qualquer coisa que nos perturbe mais profundamente (…)”.

Não tenho grande memória deste Natal, melhor dizendo, dele só retenho duas imagens. Uma é a de ver um pequeno grupo de crianças com uma pequena caixa de uns 25cm de altura, tendo dentro dela um rudimentar presépio com a figurinha do menino iluminada pela fraca luz de uma pequena vela ou, talvez, de um qualquer pavio embebido em óleo. As crianças, vi-as ao princípio da noite, “assediavam” o pessoal militar que encontravam nas ruas da vila e recitavam pequenas frases a propósito do Menino Jesus, entrecortadas por “parte um peso, parte um peso!” enquanto elevavam a caixa para se ver melhor o seu conteúdo. Pertenceriam, creio, à pequena minoria cristã da vila da qual não me tinha dado conta até então.

A outra imagem é muito diferente, refere-se à “socialite” local, digamos assim para facilitar.

Na noite de Natal o decano dos comerciantes libaneses sr. Michel, acho que era este o seu nome, preparou uma recepção na sua casa, para a qual convidou os comandantes das companhias alocadas em Bissorã, CArt 643 e CCaç1419, seus oficiais e 1.ºs sargentos e sendo o restante pessoal militar representado por um furriel e por um praça de cada uma das companhias. Posso estar enganado mas é a ideia que tenho.

Da CCaç 1419 fui eu o furriel escolhido. Não sei se “de motu próprio” ou cumprindo decisão superior, o 1º sarg. da Companhia fez-me o convite que eu aceitei, algo contrariado, após alguma insistência.

Para a ocasião vesti o meu fato “de ir à missa” comprado na então famosa casa de moda da baixa lisboeta, a Casa Africana, uns dias antes de embarcar. “Ótimo para usar em África”, disse-me o vendedor em resposta à minha inicial informação de que estava prestes a embarcar para a Guiné e precisava de um fato para levar.

Fig. 1: Exemplos de publicidade da Casa Africana, empresa extinta nos finais do século passado. ( Imgs retiradas da Internet)

E lá fui de fatinho azul-ténue, muito leve, com risquinhas verticais pretas e muito finas. A confraternização correu bem. Houve “comes e bebes” e muita conversa, geral e particular, entre os convidados e o dono da casa. Recordo bem a qualidade do uísque, uma maravilha, do resto tenho noção vaga duma conversa do anfitrião discorrendo sobre as suas relações com personagens conhecidas na política e na sociedade empresarial, tanto na Guiné como em Portugal (no Continente, como então se dizia). Não sei que idade teria o sr. Michel mas para mim era um homem já idoso, um senhor culto, bem viajado, bom conversador e de óptimo trato. Penso que teria sido, antes da guerra, um grande comerciante. Em 1965 a sua actividade comercial já estava muito reduzida.

Havia música mas não havia “garotas”! A animação não foi muita mas deve ter havido alguma já que o evento durou umas boas horas. O certo é que não me lembro dela. Talvez por causa do meu estado de espírito naquela altura como se pode adivinhar pela breve referência que fiz ao assunto num aerograma enviado à namorada:


“Há por aqui umas famílias de emigrantes libaneses que nos proporcionaram umas festazinhas agradáveis na quadra que passou há pouco. Mas o sofrimento cá anda roendo a alma. E para muitos de nós a bebedeira foi a fuga. O whisky aqui é barato. Assim a bebedeira fica barata também.”

Uma nota final:
Interessante o lembrar-me ainda hoje da qualidade do uísque do sr. Michel e não me lembrar de muitas outras coisas mais importantes. Pensando bem, compreendo. Pois para quem andava afogando mágoas, eu por exemplo, curtindo alegrias e lavando o estômago com VAT69, J. Walker red label e outros deste género, encontrar e saborear o uísque do velho libanês foi um momento inolvidável. Aquilo não era uísque, aquilo é que era whisky!

Para todo o pessoal deste grande blogue, muito Boas-Festas!
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10838: Conto de Natal (8): Oportunidade para mudar de vida (Joaquim Mexia Alves)

12 comentários:

Tony Borie disse...

Olá Manuel Joaquim.
Gostei da maneira simples e comunicativa como descreves o teu Natal de 1965, ao ler este texto, até parece que te acompanhei e fui a casa desse Senhor, que por acaso era Libanês, mas não era o pai das libanesas, das minhas histórias!.
Na mesma altura, era teu vizinho, pois estava em Mansoa.
Obrigado pelos votos de Boas Festas, o mesmo te desejo, e a todos os nossos amigos combatentes.
Um abraço, Tony Borie.

Henrique Cerqueira disse...

Camarada Manuel Joaquim.
Tal como tu tambem estive em Bissorã entre Dezembro de 1972 até julho de 1974.Tal como tu tambem fui furriel e estava na CCAÇ13 do Bat.4610/72.
Conheci perfeitamente o Sr.Michel assim como o Alfredo ambos Libaneses.Na realidade havia o costume de se "socializarem"com a "elite"no entanto e quando passei a ter a minha mulher e filho junto de mim,lá fomos entrando um pouco na vida social com essses civis.Não foi nada mau essa "socialização"até porque a mim interessava que a minha mulher tivesse um pouco de vida social naquele meio sempre ajudou um pouco a diverseficar no conhecimento com outras culturas.Tivemos ainda a possibilidade de criar laços de amizade com o casal administrador de Bissorã que eram naturais de Cabo Verde.
Tambem comiamos no Labinas que era o único restaurante de Bissorã,que fez um acordo com a tropa e servia de messe para Sargentos e oficiais,pois que se te lembras a messe era mesmo minuscula.
Foi um lembrar as gentes de Bissorã.
Um abraço e Bom Natal
Henrique Cerqueira

Bispo1419 disse...

Meu caro Henrique Cerqueira:
Só para dizer que o "Labinas" era o Manuel Lavinas Soares,já falecido. Conheci-o muito bem pois foi soldado da minha CCaç.1419, tendo sido condecorado com a Cruz de Guerra. Acabada a comissão, voltou para Bissorã onde se estabeleceu.
No meu tempo, a messe de sargentos era a "messe" da D. Maria e sr. Maximiano, um rudimentar "restaurantezinho" que nos fornecia a paparoca em troca do subsídio de refeição dos comensais. A comida não terá sido abundante para alguns mas era muito apetitosa. Os oficiais e as praças comiam em "casa", no aquartelamento. Estivemos, a CCaç.1419, um ano completo em Bissorã (outubro/65- out./66).

Retribuo os votos de feliz Natal, para ti e todos os teus entes queridos.
Um abraço do
Manuel Joaquim

armando pires disse...

Invejoso!
Invejoso, é o que tu és.
Tinhas que ter um "conto" de Natal para me afrontar.
Tratamos disso amanhã ao almoço.
Sim, conheci o Sr. Michel de quem, e com quem, tenho de resto uma história daquelas que se contam em privado.
Como a vida tens voltas que nós não dominados, em meados dos anos oitenta trabalhou comigo na RDP, um técnico de som (óptimo profissional) chamado Farid Magid. Era guinenese e, vê lá tu, sobrinho do velho Michel.
Quanto à messe de sargentos. Só se as coisas se alteram posteriormente ao meu regresso e, até ao regresso dos homens do BCAÇ 2927. É que connosco e com eles, a messe de sargentos continuou a ser na D. Maria. Talvez que no tempo do Cerqueira tenha passado para o Lavinas.
Um Abraço, Manuel Joaquim. Os teus aerogramas são de uma enorme beleza.
Amanhã, ao almoço, falamos do natal.
armando pires

Henrique Cerqueira disse...

Bom dia malta
Eu não disse que a messe passou a ser no Labinas ,O que disse foi que como a messe era pequena o Labinas era uma extenção da mesma e como opção do proprio furriel neste caso.De qualquer maneira são as nossas recordações.
Mais um abraço a todos.
Henrique Cerqueira

Bispo1419 disse...

Ai este meu linguajar!
Na apresentação deste "post" escrevi, dirigindo-me aos editores: Aqui vai para publicação no blogue, SE o INTENDEREM ...

"Intenderem" é uma palavra que faz parte do vocabulário referente ao seu trabalho neste blogue (intender = fazer administração, dirigir) mas o que eu queria dizer era "ENTENDEREM", pois claro. É que, quanto ao "intenderem" não há "se" nem meio "se", ELES INTENDEM muito bem. Quanto ao "entenderem" só tenho a dizer que, da minha parte, não tenho nenhuma razão de queixa.

Muito Boas Festas para "todo o mundo tabancal"!

Manuel Joaquim

Carlos Vinhal disse...

Faz parte (ou devia fazer) das funções do editor detectar e suprimir as gralhas que sempre passam a quem escreve. Desta vez (e nas outras?) escapou-me esta, pelo que apresento ao Manuel Joaquim as minhas desculpas. Fica a certeza de que este deslize não deslustra a qualidade do autor, acima de qualquer suspeita no que respeita ao seu excelente português, mas arrasa a competência deste vosso escriba, o editor de serviço, que há muito devia ser desmascarado.
Continuo no entanto a oferecer os meus poucos préstimos aos meus caros camaradas e amigos... até que queiram.
Viva o bom humor.
Abraço.
Carlos

Torcato Mendonca disse...

Bom Natal e um Ano Novo Feliz

Saúde e Paz

Abraço T.

Ps: então foste directo para Bispo??? a ultima vez que nos vimos nem padre eras...

Bispo1419 disse...

Oh Torcato, meu amigo e camarada, ias quase acertando na "mouche"!:

Não fui eu que fui directo para bispo mas rezam as crónicas da minha aldeia que um meu antepassado, depois de deixar uma(s) sementinha(s) na terra onde começou a sua carreira eclesiástica, chegou a bispo em grande velocidade. Não sei se isto foi assim, pelas minhas investigações o homem só teria chegado a cónego ou coisa parecida. Creio que foi por isso que a minha família do lado paterno é ainda hoje reconhecida como a família Bispo.

Como estamos em época de Natal vou-te falar dum menino que teve o seu natal em 1941, de nome Manuel Joaquim.
Aqui vai uma explicação que tantas vezes já dei sobre o meu micro-nome:
Se, ao registarem o meu nascimento, tivessem seguido o normal costume, esta "avantesma" nomear-se-ia Manuel Marques Bispo. Aconteceu que José JOAQUIM Bispo, meu pai, quis homenagear o padre JOAQUIM, pároco da terra e de quem era amigo e dedicado colaborador nas actividades da paróquia.
"Sr. prior, a partir de agora não haverá mais bispos para mandar nos padres cá da terra!" terá dito ao seu amigo padre. É que, reza a crónica, as más línguas lá da paróquia apreciavam usar o trocadilho "padre/bispo", do género "oh bispo, vê lá se mandas no padre!" e/ou "o sr. prior é especial, até manda no bispo!", etc. etc.
E assim se acabaram os bispos lá na paróquia. E até o Marques materno desapareceu no meu caso, já que os meus irmãos mais novos ficaram com o "Marques Joaquim".
E pronto, assim fiquei carimbado! Nem Marques nem Bispo!

Mais tarde, já homenzinho, quis acertar tudo mas não tinha cheta para a "fortuna" que era preciso gastar e também não quis mortificar os meus pais. Aí pelos 20 anos, decidi pelo facto consumado: "deixa-te destas merdas, não precisas de outro nome para seres o que quiseres, vais ser definitivamente Manuel Joaquim!"

E pronto, Torcato, aqui está a razão da minha autoconsagração episcopal. A acoplagem de 1419 deve-se ao significado que este nº tem na minha vida (sempre a guerra colonial!)

Festas Felizes!

Rogerio Cardoso disse...

Camarada Manuel Joaquim
Este conto fez-me recordar bons momentos que passei com o Sr. Michel Ajouz. Grande anfitrião, bom no ensino do bridge, embora muito exigente, que quando actuava como parceiro, desancava-o se fosse preciso, mas no fim pedia desculpa, claro que com aquela idade e nós uns putos, aceitáva-mos tudo. Também era amigo do Alfredo Kalil, bom homem também. O Administrador era o Sr.Aguinaldo Spencer Salomão, que jogava volei todos os dias com a nossa malta, faleceu em Portimão à cerca de 2/3 anos. A messa era na D.Maria, uma joia de senhora, grande trabalhadora, junto com o Maximiano que nada fazia. E quem se lembra das filhas, que por serem material raro, punham a malta de olhos em bico. Havia também um comerciante de nome Gardete, dono da unica casa de 1º andar (r-chão comercial) este português, não tinha boa relação comigo, porque um dia apanhei-o a enfiar um barrete a um indigena, com a venda de arroz, quando eu entrei para comprar uma cerveja. O negócio que ele estava a efectuar, era de tal ordem que me revoltou, chamando eu à sua atenção, o que ele me respondeu, que não tinha nada com isso e não tinha de me dar satisfações. Claro disse que em tempo de guerra quem mandava era a tropa, e que ele era um dos que estava a fomentar a revolta entre os habitantes, e que desde já ia comigo debaixo de prisão para o quartel, o que ele recusou mas acabou por acatar , arranjei um problema do arco da velha para o Cap.Silveira da minha Cart.643 resolver com o Administrador, o homem nunca mais me olhou de frente, mas o caso fez-lhe bem. Nós estivemos em Bissorã de Junho de 64 a Dezembro ou Janeiro de 65--66, não estou certo porque fui evacuado a 27 de Outubro de 65.
Um grande abraço e votos de um SANTO NATAL para toda a familia.
Rogerio Cardoso

Bispo1419 disse...

Obrigado, Rogério, por me fazeres recordar alguns destes nomes. Pois é, o sr. Michel era M. Ajouz, tinha um som parecido na memória.

A tua CArt.643 saíu de Bissorã em 12/01/1966. É o que diz uma carta minha do dia seguinte:
"Ontem saíu daqui a Companhia 643. Foi para Bissau. Deve regressar à Metrópole lá para o fim do mês. Já cá está outra, esta veio comigo para a Guiné(1420). Se tiveres oportunidade de assistir ao desembarque do batalhão 645 (a que pertence a Comp. 643)poderás certificar-te do bom aspecto que levam, principalmente a malta da 643, aquela que eu conheço. Já se safaram.(...)"
Acho que já te disse que também participei na operação em que foste ferido. A minha companhia tinha chegado a Bissorã no dia 23 e, três dias depois, saímos com a tua 643 para essa operação em que foste gravemente ferido. Vi o que te aconteceu e presenciei a tua evacuação para Bissau. Por isso nós dois, ao mesmo tempo, só estivemos três dias em Bissorã.

Um Bom Natal e um 2013 cheio de saúde e alegria que sirvam para aguentar as chatices que por aí vêm.
Um abraço
Manuel Joaquim

Anónimo disse...

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