terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10817: Conto de Natal (2): Papagaio Verde Versus Estrela do Norte (2) (Armor Pires Mota)

1. Segundo capítulo de "Papagiao Verde Versus Estrela do Norte", um original do nosso camarada Armor Pires Mota (ex-Alf Mil Cav da CCAV 488/BCAV 490, Guiné, 1963/65):


CONTO DE NATAL

PAPAGAIO VERDE 
Versus ESTRELA DO NORTE 

A dois combatentes lucidamente
apaixonados pela Guiné-Bissau,
Drs. Mário Beja Santos e Carlos Silva

A velha aldeia de Lala…

Consegui saber naquele momento pouco menos do que nada. Que acompanhara o João na clandestinidade, na fuga ao inevitável cutelo ameaçador, mas já não chegara com ele a Algures, adiantou uma mulher alta em seus ombros estreitos, deitando algumas lágrimas que escondeu com as mãos. Foi como que um segredo que fez crescer o alforge das angústias e das perplexidades. Ficámos por ali. Mas prometi-lhes que ainda havíamos de falar noutra altura. O grupo fechara-se nesse aspecto, adensando a nebulosa de um mistério. Talvez as lágrimas fossem o caminho para desvendar mais alguma coisa, pensei, mas a sós. Noutra ocasião. Queria, no fundo, sacudir alguns fantasmas, que estavam a surgir, mas alguns pingos apressados de chuva rasgaram as nuvens e mataram naquele ponto a conversa. Fomos uns para cada lado.

2.º Episódio

Vamos a uma coisa de cada vez.

A gente de Algures, enquanto a chuva tamborilava nas chapas de zinco, essa deixou escoar-se de vivas emoções, cercando-me e tocando-me as mãos, os ombros, os sentimentos, a pele da alma, como se eu fosse estranho irã, mas amado de algum modo.

O chefe Gibril serviu-me, de mãos trémulas, um belo chá e as mulheres bolos de farinha de arroz, fatias de manga, enquanto eu e os homens íamos relembrando nomes e histórias. Além do prato de bolos de arroz, em forma arredondada, iguaria muito usada nos casamentos, metáfora da fecundidade da terra e da mulher, havia ainda um prato de nozes de cola. Não toquei neste fruto, um elixir afrodisíaco. Aliás, nunca me fora à boca. Não era necessário, embora servisse de prova de amizade. Também me ofereceu vinho de caju. Eu escusei-me, dizendo, delicadamente, que, àquela hora, não ia mesmo nada, andava sofrendo do estômago por causa de uma hérnia. Juro-lhe que não mentia.

Na casa de adobe, além de uma mesa de mogno mal aparelhada, e de esteiras de bambu, havia um balouço de rede para corpo cansado e tambores de diversos tamanhos. Julgo ter contado cinco. E também um rádio portátil, o tom um pouco alto, que Gibril fez questão de desligar. Todavia, por minha sugestão, que só o desligasse quando Cesária Évora, a rainha das mornas, com brutos calos nos pés, que a impedem de saltar nos palcos, acabasse de cantar, como só ela sabe, mornas de Cabo Verde. Uma reporta-se, com grande nostalgia e acesa dor, à emigração para S. Tomé, para o duro trabalho das roças e do suor mal pago e, tantas vezes, vergastado. Julgo que se intitula Sôdade. Corrija-me, se estiver errado, quando nos encontrarmos aí pelo Porto, no Café Ancoradouro ou no Café Progresso. Pode ser neste último, que é mais para a nossa idade. Está a ver. Fica próximo da Praça dos Leões.

– Há trinta chuvas… nosso alfero! – Começou por dizer o chefe. – Então, era um rapaz.
– Chuvas que muito sangue e lágrimas, ódio e preconceitos lavaram… Não acredita? – Repliquei. – Ao contrário, puseram-nos cabelos brancos na cabeça e alguma ferrugem nos ossos.
– Eu acredita.

A conversa abriu caminho. Eu estava pronto a ouvi-lo, mais do que a falar. Todavia, confesso que me havia prometido não levar para o verde capim as lembranças da velha que andara por S. Tomé e fumava longo cachimbo de cana e se perdia por um bom café. Às vezes, também enrolava folha de tabaco, cortada em diagonal, para depois fazer o seu charuto. Era quando mais falava palavras mansas, talvez desconexas, mas era assim que desentaramelava a língua, a alma, embrulhando ao mesmo tempo os restos do sol e do sonho, quando se aproximavam os irãs que andavam pela floresta, sua natural morada, e vinham falar com as pessoas, apoderando-se do seu coração. Os poilões eram as árvores preferidas para se guardarem dos vivos.

Passado algum tempo, talvez uma hora, não mais, o chefe carregou e ofereceu-me um cachimbo, de madeira, com boquilha, trabalhado, bem bonito. Fez o mesmo ritual relativamente a um mais pequeno e ambos fumámos melancolias, lembranças, alguma breve cumplicidade de outros tempos, mas, como é óbvio, também longa serenidade e bem-estar. Era a paz. Mulheres e homens já não partem e chegam das bolanhas e das lalas, tristes, metidos entre dois fogos, mas, à guisa do salmista, chegam das colheitas com alegria e a paz pintadas no rosto (“os que semeiam em lágrimas recolhem com alegria… À volta, vêm a cantar, trazendo os molhos de espigas”).

O mesmo sucede com os que vão à caça ou à pesca e com os pastores que regressam de crias aos ombros, cantando, ao cair da tarde em fogo, na sua língua nativa, seguros em seus passos e seu destino curto.

Em vez do progresso, uma grande calmaria passa por aqui. Calma pobreza que, no entanto, não lhes ceifa o sorriso. De quando em vez, inquietante. Algures, efectivamente, mudou-se, mas não mudou. A pobreza contra que se batera Amílcar Cabral continua a ser um estigma. Aliás, fora uma das justificações para a luta que, cumprida, depressa deu lugar ao ócio e à fome, ao medo e às vinganças. Os comandantes e os dirigentes aburguesaram-se. Têm automóveis e concubinas. Alguns enriqueceram, não se sabem, claramente, os motivos. O povo, que passa fome, não sabe como, mas desconfia. Fala-se em rotas de drogas…

O chefe da tabanca de Algures ia-me revelando muitas coisas que se haviam passado, após a independência, que ele festejara com algumas reservas. Só evitava, a todo o transe, trazer para a conversa o João, que fora do meu pelotão. Por mim, entendi não insistir. Talvez no outro dia. Foi neste momento que o avô Abdul me fez um inesperado pedido: que fizesse para os netos, o Cherno e companhia, e também para as outras crianças, um papagaio como o Papagaio Verde. Disse-lhe, escusando-me, que ainda não era Natal. Não importava, respondeu, de pronto e com um sorriso miúdo de pássaro. Alá e o seu Profeta não deixam de rir sempre lá em cima, nas brisas, por cima das nuvens. Frisou mesmo que tinha, à minha espera, há trinta anos ou mais, já nem sabia bem, algumas folhas de jornais, cana, cola e cordão e folhas de papel, da cor da sua bandeira nacional… Sempre pensara, disse com um brilho muito especial nos olhos, que, um dia, eu havia de voltar, como tantos, confessou… E insistia:
– Ensina-os a fazer o papagaio, nosso alfero Casanova?
– Ensino, Abdul! Por que não havia eu de ensiná-los? Mas, olha, já não vai ter a cor do Papagaio Verde, mas as cores de um país novo…Acabaram-se os aerogramas, há muito, onde nós escrevíamos, às vezes com lágrimas, a nossa guerra e falávamos, com admiração e temor, dos riscos que vocês corriam por nossa causa.
– Não importa. Pode chamar-se ”Estrela do Norte” e cada ponta representará um desejo: a paz, o pão, a fraternidade…
– Está assente. Vejo que tens belas ideias e lindos sonhos. Não te posso negar, por mais esta razão.
– Vai fazer mesmo?
– Sim, por que não? Vamos, então, à obra! – Fiz uma pausa. – Chama lá os netos… – levem tudo para o bentabá.

As nuvens corriam mais calmas no céu. Os garotos correram do terreiro. Daí a pouco, eram já mais de dez. Upa, upa!

Nesse instante, aproximaram-se com seus guinchos e gritos estridentes e impertinências, bem nossas conhecidas, alguns macacos fulas, que desarticularam o sossego natural. Se calhar, também sonhavam com estrelas, disse, em tom de brincadeira, às crianças a quem os pais andam ensinando ritmos e bandeiras de um país novo, que tarda a chegar, a cada passo.

Os miúdos giravam à minha volta, movendo muito os olhos e as cabecitas de uma infinita alegria, que ia voando à medida que a estrela ia ficando em condições de conquistar o céu. Os maiores eram quem ia trabalhando, às minhas ordens. Era a história da cana de pesca de Mao, revolucionário, de que alguns haviam ouvido falar. Alguns homens abanaram, afirmativamente, a cabeça. Para almofadar o estrado, utilizámos algumas edições de Nô Pintcham, que também serviram na perfeição para armar o papagaio. Bem como amarelecida propaganda de outros tempos do PAIGC. Onde procurei ler, em vão, alguma coisa de interesse. O que mais vi foram rostos de Che Guevara, Fidel, Marx, Mao, Nino e Amílcar Cabral, sobraçando frases, pensamentos, desenhando futuros.

A última coisa que as crianças fizeram foi pegar num marcador verde e escrever aquelas três palavras mágicas – ou melhor, pedi que três deles as escrevessem: paz, pão, fraternidade. Aos mais velhitos indiquei-lhes que, ao centro, deveriam desenhar a palavra Guiné, o que fizeram, radiantes. Como se fossem voar também. Depois, um deles, fixando-me os olhos, um nadinha papudos, cercou as palavras com um coração vermelho e abriu um sorriso do tamanho de uma flor de caju. Ou foi da largura do terreiro e da tarde? Talvez da altura do poilão, que, sagrado, também dava sombra ao bentabá. Enorme, secular, gigantesco, raízes fundas furando séculos. Como na antiga aldeia de Algures, onde era necessária mais de meia dúzia de soldados para dar-lhe um simples abraço. Fizemos esse jogo, pouco tempo depois de arribarmos àquele buraco, um dos muitos de um inferno extenso, com línguas de fogo, turbilhões de medos e calvários de dor e morte por toda parte.

“Estrela do Norte” voando sobre a aldeia de Algures foi o delírio da miudagem, naquele fim de tarde, tal como há trinta e mais anos. Isso fez também voar um sorriso nostálgico dos lábios dos que, um dia, brincaram com o Papagaio Verde.

Quanto a esta terra, de gente simpática e boa, começa a ser tempo de lhe dizer que, um dia, havia de mudar de nome, mais ou menos após o acantonamento da minha companhia de cavalaria (a pé) e do primeiro Natal, aqui passado. Pelo menos, na gíria militar, mas também entre a população, sobretudo a miudagem, que achava graça ao caso. Por uma coisa tão simples como um papagaio, imagine, um Papagaio Verde…
– Então, como vai Papagaio Verde? – Perguntava, meio a brincar, meio a sério, o comandante do batalhão, que bem conhece. Estava acantonado em Farim. Às vezes, em tom de gozo, mesmo zombeteiro de quem vivia no ar condicionado. Exagero meu. Para dizer a verdade, sempre em tom de chacota. Sabe como era.
– Ainda tem as asas muito presas ao chão – respondia, à letra, o capitão Varela, soltando um sorriso sardónico…
– Como assim?
– É a guerra…
– Vamos, então, ao que importa – cortava o comandante do batalhão. Mas, meu tenente-coronel, a verdade é que havia uma razão para a troca de nome. É espantoso como um gesto, às vezes insignificante, pode mudar a vida das pessoas e das coisas.

Espere, eu conto.

Era uma vez uma rapariga, de perfil quase perfeito e de uma notória beleza sensual, pontuada por seios redondos e generosos, direitos e inocentemente provocatórios do olhar… logo guloso, logo faminto, dos soldados. Redondos como os da Usita, nos dezoito anos, altivos. Faço comparações, ainda com a foto da Usita nas mãos, que desfolham lembranças, rumores da floresta vitoriosa, liturgias, quase em tom de conversa, de mil pássaros. E era também, uma vez, um garoto, de olhos rasgados e líquidos de sonho manso, e um burrico, que se nomeia por também ser filho de Alá, nosso Senhor.

Adiantando um pouco, quando a rapariga arreou do burro para a tropa deitar a maca no dorso, felizmente vazia, e aliviá-lo ainda do peso ingrato e bruto do Beja, que se havia acavalitado, rindo um dente malandro, ela exibiu um corpo flexível que só visto, uma boca modulada em música breve, naturalmente açucarada de caju maduro, talvez mais manga, e a sofisticação da raça fula. Por sua vez, o garoto, medroso como pássaro, de tenra idade - todos disseram que teria três chuvas e pico e a rapariga, mama firme, que para aí quinze, dezasseis… - tinha os olhos líquidos de sonho manso. Como a rapariga, só mesmo a menina que tinha olhos de pássaro azul.

Encontrei-os no mato sem fim, de mil perigos e feitiços, no mês de Dezembro, ia no segundo ano de comissão, que estava prestes a acabar, e já não era sem tempo. A alma já cheirava a sangue ou bolor, o corpo a cicatrizes, que doíam por terra alheia. Era uma mata de aromas carnosos que saltavam das árvores em desalinho por entre a redonda e infindável seara de capim que acoitava bicharia sem conta. E, como também sabe, muita gente disposta a correr com a tropa. E também por vezes, gente a fazer jogo duplo, os gajos dos informadores.

Era um verdadeiro quadro saído das mãos de um qualquer Goya africano aquela rapariga, escarranchada no dorso magro do burrico e o garoto ao seu colo. O animal parece que trotava sem destino e sem pressa. Tinham-se perdido, fugindo aos guerrilheiros? Não cheguei a saber claramente nessa ocasião. Nunca se sabia de que lado estava aquela gente. Açoitada pelos ventos do nada, nos carreiros da miséria.

A toda e qualquer pergunta, a resposta era inevitável, como bem sabe o meu tenente-coronel: mim cá sibi, mim cá sibi!

Com a rapariga em cima, mais o garoto, aquele quadro lembrou-me, ainda que impropriamente, a fuga de Nossa Senhora com S. José e o Menino para o Egipto, temendo as espadas de Herodes. E nós ali também não temíamos as armas de Nino e outros comandantes como Osvaldo Máximo Vieira, que comandava nas fechadas matas do Oio, impenetrável “império dos Oincas”? [As matas hoje estão a ser devastadas para a extracção de madeiras exóticas]. Como se me tivesse de convencer que vinha aí a noite de Natal. O calendário litúrgico pelo menos assim rezava. Só faltava S. José. Mas esse papel poderia fazê-lo, se necessário, o Meia Lavada da Silva, que tinha barbas, por acaso, mal aparadas num queixo pensativo. Por sinal, até era carpinteiro de profissão. Deus me perdoe, mas creia, meu tenente-coronel, que foi isso que parvamente me ocorreu. Maliciosamente, direi, porque, sempre que podia, deitava o olhar cobiçoso nas mangas especiais, que eram os seios redondos da rapariga. Gaita! Era toda boa. Vá lá, não se ria. Era realmente uma ideia tosca, abocanhada de saliva lasciva, quase pecaminosa, mas confesso que foi aquela que me surgiu com mais força. E quem confessa a verdade… Olhe, lembro-me bem que também me inundou uma onda de azul ternura pela rapariga e pelo menino, por todos os meninos da tabanca do mundo, que passavam fome ou já pegavam em armas.

Quanto ao burro… Quando, nessa manhã, verde e esbraseante de Dezembro, lhe roubei a rapariga e o garoto, sacudiu as orelhas num arremesso de raiva e desferiu dois relinchos, agudos e doridos, que espantaram, como violento coice, alguns bicos-de-lacre e tarambolas, que saltaram, de repente, do capim, que estava a ser penteado por uma brisa agradável. Quase me cuspiu em jeito de quem odeia. Mas ele, garanto, não era como nós, brancos e negros em armas. Não odiava.

Palmilhadas as aldeias de Sare Tenem e Bricama, onde nos levara uma noite de lua duvidosa, aquele Platero ronceiro era o primeiro da fila, seguindo a rapariga, Fatumata de nome. Aqui está um belo ícone de África. Vim a saber que assim se chamava, depois de meia hora de caminho. O garoto dava pelo nome de Abdul. Pelo menos, foi isso que entendi. E foi assim que sempre o tratei, errado ou certo. Certo, disse-me um mês depois. O animal ia agora armado de cartucheiras e cantis batendo-lhe na barriga. Imprevidências de soldados em fim de comissão! E, espiando-o por debaixo do capacete, via que ele me olhava de viés, descontente, talvez assustado da minha cor, mas continuava a vencer o caminho, estreito e enovelado, como serpente. Perigoso quanto bastava. Por vezes, soldado havia, que, abusando, nele se escarranchava, à vez, para cá da ponte. Onde, um dia, o meu pelotão foi emboscado. Foi uma refrega dos diabos com feridos e um morto, o transmontano Rui Montalvão, do morteiro, que me apertou a mão e me olhou, espantado na despedida. Morreu nos meus braços. Com o enfermeiro, tentando estancar-lhe o rio de sangue. Em vão. O rio era demasiado profundo e definitivo. Adiante, que ainda dói.

Uns adoçavam-lhe a dentuça com mãos-cheias de erva. Outros, brincando à toa, zangavam-no com mordiscadelas nas orelhas ou no rabo. Até se esqueciam que estavam em guerra.

Parecia que íamos todos a caminho de romaria das Almas ou de Belém. Mais de Belém, sim, que, na noite desse dia, seria Natal. E, em minhas cogitações clandestinas, prometi ao garoto um papagaio para ele atirar às estrelas, ao céu, como uma ânsia de asa aberta. Seria a minha boa acção de escuteiro, que já havia sido em Chão de Mouros.
Jubi, vou fazer-te um papagaio. Amanhã, Abdul, é dia de Natal – disse assim, embora sabendo que não entendia nada, mesmo nada, e muito menos sabia o que era isso de Natal. Noite de Natal... Não vinha no Alcorão. – Mim cá sibi – Isto é, descodificando, o garoto não entendia nada do que eu ia para ali a tagarelar. Se o idioma nos separava, muito mais o chão, o sangue.

À rapariga, de tez fortemente acobreada, que iria ser, sem dúvida, o encanto, a flor maior, a mais cobiçada de muitos dias no quartel de Algures, onde os soldados, uma vez ou outra, batucavam com as bajudas, coração a galope, não lhe prometi nada, mas talvez o soldado João, o negro e bom João, igualmente de raça fula, que, à viva força, queria vir connosco para Lisboa, se pudesse enamorar dos seus seios redondos, macieza de pêssego, do seu corpo flexível e grácil, da sua coxa bem torneada. Do rosto, nem se fala. Era plasmado de beleza exultante e simpática. Como a Usita. Não sabendo bem a relação entre ela e o garoto, se filho, irmão ou familiar, ou até entre ela e o negro João, se irmão ou namorado, perguntei-lhe sorrateiramente:
Jubi, bó tem catota? – Não entendeu, ou fez que não entendeu, o mais provável, e perguntei de outra forma: – Bó tem cabaço? – Não descerrou os lábios. Já conhecia certamente a mania do branco querer ser sempre o primeiro a provar aquilo, entre mil promessas. Resumindo, e descodificando também aqui, o que eu queria saber era se ainda era virgem ou não. Aquelas tontarias que os soldados procuravam saber, quase sempre junto das negras mais jovens. Sabe como era. E, afinal, que me interessava isso, se a tropa havia combinado não tocar em ventre de mulher? Já no apalpar…

A rapariga deixava, de quando em vez, desprender-se um sorriso breve, talvez receoso. Sorria, e eu também. Era nessa língua universal e doce que nos entendíamos naquela manhã. Diferente. Mas também senti que, ao canto do seu sorriso, cor da manhã de fogo, espreitavam enigmáticas palavras. Talvez incómodas e violentas, se as deitasse fora da boca. O mais certo era de revolta. Jogava pelo seguro. No silêncio. Talvez com a presença de João se abrisse… Não andaria em sua busca?

(Continua)
____________

Nota de CV:

Vd. primeiro poste da série de 17 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10812: Conto de Natal (1): Papagaio Verde Versus Estrela do Norte (1) (Armor Pires Mota)

1 comentário:

Anónimo disse...

Simplesmente sublime

Qual Saramago qual carapuça..ou mesmo A.Lobo Antunes..isto sim é..é

Prémio NOBEL JÁ..JÁ.
Um grande alfa bravo

BRAVO..BRAVO camarada Pires Mota

C.Martins