sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10836: Conto de Natal (7): Um Natal ainda mais triste (Domingos Gonçalves)

1. Mensagem de Natal do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68), com data de 13 de Dezembro de 2012:

Em primeiro lugar, ao aproximar-se mais uma quadra festiva, para todos nós muito importante, venho por este meio desejar, ao camarada Luís Graça, um Feliz Natal, e um ano de 2013 repleto, só, de coisas boas, que aprecie, em especial muita saúde. E, claro, que a crise de que tanto se fala e escreve, o não atormente.
Este meu sincero desejo é extensivo a todos os camaradas que, à sombra da árvore enorme, que se ergue no centro da Tabanca Grande, vão contando as suas velhas histórias.

Aproveito para disponibilizar um apontamento respeitante ao Natal de 1967, que, se interessar, pode ser publicado.

Quanto ao vaticínio sobre a morte do Blog, não acredito na voz dos profetas. Nos tempos que correm, as profecias não fazem sentido. Tudo quanto é humano, terá um fim. Mas também é certo que os humanos criam muitas coisas que, mesmo quando vivem para além da barreira dos cem anos, deixam ficar do lado de cá. O Blog, pode muito bem ser uma dessas coisas.

Domingos Gonçalves


Natal

Às quatro horas e meia da manhã acordei ao som de rebentamentos de granadas.
Levantei-me imediatamente, pensando que se tratava de um ataque a Guidage. Felizmente era fora do nosso sector.

Às sete horas levantei-me novamente. O pessoal da companhia acabava de sair para picar a estrada de Sansancototo e do Caur, para facilitar a passagem de um grupo de tropas que vinha de Farim.
Às 9 horas, dois grupos de combate saíram para Udasse, onde foram montar uma emboscada.
Na realidade não foram para o sítio que constava da ordem de operações, mas para outro bastante mais próximo, após acordo prévio com o capitão.

Antes do almoço atravessei o Cacheu, num bote de borracha, com alguns homens, e fui armadilhar os terrenos da margem Sul do rio. De tarde fui montar armadilhas em todos os locais que o inimigo pudesse utilizar para se aproximar de Binta. Deixei tudo minado. Durante a ceia de Natal não podíamos correr o risco de sermos atacados pelos gajos.

A ceia de Natal correu sem qualquer espécie de entusiasmo. Materialmente falando até não faltou nada de importante, mas neste ambiente, o Natal tinha sempre de ser frio e triste. Era o último que passávamos na Guiné.
No fim da ceia, o capitão meteu-se nos copos e tomou uma valente bebedeira.

Dia 25 
Levantei-me cedo. Durante a noite consegui ter um sono repousante, sem pesadelos ou sobressaltos. Mesmo não sonhando com presépios, e música de anjos, tive uma noite tranquila. Mas, sem que me tivesse apercebido, durante a noite passou-se algo de anormal.

Pela manhã verifiquei, com surpresa, que o capitão estava cheio escoriações, e caminhava com dificuldade, com o auxílio de uma bengala. Alguns furriéis apresentavam, também, ferimentos, aparentemente ligeiros, e tinham aparência misteriosa. Comecei a pensar: Será que o meu sono foi tão profundo, que nem me deixou ouvir um ataque dos turras, concretizado durante a noite de Natal?

Fiquei na dúvida. Eu que tenho um sono leve, que acordo sempre ao menor ruído, como é que não escutei nada? Será que, durante a noite, as granadas choveram sobre Binta, sem que de nada me tenha apercebido? Na vida tudo pode acontecer, mas essa possibilidade não se me afigurava plausível.

Mas, não. Afinal, os turras não tinham atacado Binta, durante a noite. A história daqueles ferimentos, daquelas escoriações, e de todo aquele mistério, tinha outros contornos.

Já de madrugada, depois de ter andado na companhia do deus Baco, que de santo não tem nada, e é mesmo alheio à ideia de Natal, durante algumas horas, o capitão lembrou-se de que lhe assistia o dever sagrado de passar uma ronda para verificar se as sentinelas estavam vigilantes, e nos seus lugares. Como as sentinelas estavam na periferia da tabanca, a distância a percorrer era considerável, pelo que a ronda só podia ter lugar, se fosse feita de Jeep. Vai daí, a cair de bêbado, o nosso homem subiu para a viatura, desencaminhou um grupo de furriéis para lhe fazer companhia e deu início ao trabalho, a que se propusera.

Mais uma vez ficou provado que o vinho traz as pessoas para o seu verdadeiro lugar. Ele que, por norma, não se preocupava com este tipo de tarefas, sob o efeito do vinho acordou para o cumprimento do dever, a que nenhum chefe deve fugir. Mas, o vinho que lhe lembrou as obrigações, foi o mesmo que lhe tirou o tino, e a visão. O homem, altas horas da noite, enfiou o Jeep num grande buraco, com todos os passageiros que transportava. E só a muita sorte impediu que a noite de Natal se transformasse em mais um grande pesadelo, para todos nós.

A irresponsabilidade não teve limites. Um anjo do Natal – o anjo da guarda -, pairava nos céus de Binta, durante aquelas horas que não foram de grande azar.

Ainda bem que tudo assim aconteceu, e o desastre apenas provocou ligeiros danos pessoais.
Certo é, porém, que se o inimigo nos tivesse atacado durante a noite, as coisas poderiam ser bastante piores.

Felizmente que a irresponsabilidade nem sempre traz com ela consequências trágicas. É que, se tivesse havido um ataque, 50% dos homens da companhia, devido à bebedeira, não estavam em condições de utilizar as armas.

E tudo isto tornou o Natal ainda mais triste.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 20 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10832: Conto de Natal (6): Natal na Guiné, As Capelinhas e os Quincons (António Estácio)

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