segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10811: Notas de leitura (440): "Prece de um Combatente Nos Trilhos e Trincheiras da Guerra Colonial", por Manuel Luís Rodrigues Sousa (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Setembro de 2012:

Queridos amigos,
O livro do soldado Manuel Luís Rodrigues Sousa “Prece de um Combatente”, é credor da nossa atenção. São memórias, reconstituições por vezes muito afetuosas, é uma escrita muito singela, é o seu modesto contributo para a história da guerra colonial (palavras suas).
Tudo começa no orgulho pelas suas raízes, a candura e a ingenuidade com que enfrentou os contratempos e os infortúnios tocam obrigatoriamente o leitor.
Pediu ajudas para ilustrar o seu relato. É uma sinceridade que nos prende do princípio ao fim. Ele fala em nomes das praças, fala e toca-nos no coração.

Um abraço do
Mário


"Prece de um Combatente": memórias de um soldado em Jumbembém

Beja Santos

Sabe bem juntar as memórias do soldado Manuel Luís Rodrigues Sousa perto dos diários dos soldados Calvário e Góis. É sabido que a literatura assente em memórias tem sido campo da eleição predominantemente de oficiais e de alguns sargentos, ora o estudo das mentalidades carece de apreciações pessoais das praças, saber como viveram a guerra, de onde vieram, em que se transformaram. O soldado Sousa satisfaz todos estes requisitos. Antes de partir para a Guiné, fala-nos da sua linhagem, provém de pais naturais de Carrazeda de Ansiães e de Vila Flor, Manuel Sousa veio à luz em Folgares, nasceu em 1951. Até ir para a tropa, viveu nesta ruralidade, visitar familiares entre os Folgares e Carrazeda de Ansiães eram cerca de dez quilómetros percorridos a pé ou de burrico, estrada não havia na época. Fala-nos desses vínculos: “Periodicamente a família encontrava-se em visitas mútuas, ora nos Folgares, onde viviam os meus pais, eu e todos os meus irmãos, ora na Carrapatosa, onde vivia a minha avó, o tio Armindo e esposa, a tia Aninhas, além dos meus primos, filhos deste casal que vivia com a minha avó, a Natália, o Alexandre, o Fernando e o Ricardo. Fazia ainda parte deste núcleo de familiares o meu primo Chico”. Conta-nos histórias familiares, e depois temo-lo a assentar praça, em finais de Julho de 1972. A saída de casa não foi fácil, estavam ali todos os seus tesouros: “Ali cresci e trabalhei no trabalho duro do campo, de sol a sol, melhor dizendo, de noite a noite, sem conhecer férias, fins de semana ou coisas parecidas”. Os pais, desgostosos, viram partir o “seu Manuel”.

Recruta em Vila Real, adaptou-se bem, como tinha pouco dinheiro, ali passou praticamente todos os fins de semana. Seguiu para Abrantes, a sua especialidade era de atirador. E é aqui que recebe convite para ingressar na polícia, decidiu recusar. Em finais de Novembro parte para Tomar, vai formar batalhão destinado à Guiné, o BCAÇ 4512. A despedida é emocionante, é recordação inesquecível, esta partida com destino a Tomar: “Desta vez não foi via Carrazeda de Ansiães, nem tive o apoio da velha mula no transporte da mala. Porque que guia de transporte só me permitia utilizar o comboio e como o dinheiro não abundava para pagar a camionete desde Carrazeda de Ansiães até ao Tua, desta vez tinha de descer ao vale do Tua, com destino à estação de Codeçais, através de um caminho íngreme e tortuoso, num percurso de cerca de oito quilómetros, passando pelas aldeias de Pereiros e Codeçais. Transportava eu a mala e um meu irmão mais novo, o Zé, que me acompanhou até a estação, transportava um saco que continha o fardamento camuflado que tinha trazido para a minha mãe ajustar no tamanho. O meu pai fez questão de me acompanhar até à saída da aldeia, até ao Barreiro, já com a aldeia de Pereiros à vista. Chegada a hora da separação, irrompeu destroçado em alto choro, envolvendo-me num longo e apertado abraço. As emoções e as lágrimas misturaram-se por alguns instantes, após o que nos desenlaçámos e, de lágrima no canto do olho, juntamente com o meu irmão, lá segui rumo à estação”.

Em 6 de Dezembro, o BCAÇ 4512 ruma para a Rocha do Conde de Óbidos, o Uíge vai levá-los para Bissau. Desembarcam e vão para o Cumeré, instalam-se em tendas no campo de futebol, fazem o IAO, é na limpeza das casernas do Cumeré, a varrer o chão, que ele apanha uma pequena medalha de ouro com inscrição “Deus de guarde”. Chegara a hora de abarcar para Jumbembém via Farim. Segue-se a descrição do local: “Situava-se numa ligeira elevação do terreno, pouco significativa na planura característica da Guiné, junto a uma linha de água designada por Rio de Jumbembém. No lado sul, salteada por algumas instalações de utilização militar, uma delas era uma antiga serração, com telhas em chapa a esvoaçarem ao vento, a que se chamava quartel. Na parte norte estava concentrada a tabanca, formada por casas quadradas, construídas em alinhamento, em várias filas, de blocos de terra, cobertas a chapas de zinco”. Detém-se sobre as comunicações, os costumes das populações, a relação com as crianças e as primeiras operações a Bricama, em meados de Janeiro, ainda com a CART 3359. Descobrem uma casa de mato, há para ali fogo intenso e ele escreve: “Vi um ancião negro no meio do terreiro, entre as palhotas, de pé, trémulo, com um dos braços cortados por uma rajada ou estilhaço, sensivelmente pelo cotovelo, apenas ligado por uma pele que ele sustentava com a outra mão”. Na segunda ida a Bricama, um guerrilheiro do PAIGC foi varado com uma rajada, um camarada teve ferimentos e foi evacuado.

Manuel Sousa esteve atento aos pormenores: ao que se disse sobre o assassinato de Amílcar Cabral, às estratégias de aliciamento das populações, a uma noite de cinema em Jumbembém em que foi exibido o filme “Os Três Mosqueteiros”, à chegada dos mísseis Strella. E em Maio de 1973, ele vai participar no inferno de Guidage. Primeiro, em 10 de Maio, parte para Guidage o 2º pelotão da sua companhia, o livro de Manuel Sousa inclui o relato do furriel Fernando Costa Gomes de Araújo sobre esta deslocação a Guidage. Em 23 de Maio, chegou a vez do pelotão de Manuel Sousa, ele vai descrever com muita singeleza e contenção a morte do seu camarada Domingues Martins da Silva Lopes. Manuel Sousa vai a picar, vão de Binta para Guidage. Vai trocando algumas palavras com Domingos Lopes e, imprevistamente, o drama aconteceu, já Manuel Sousa tinha picado cerca de 50 metros de uma árvore de grande porte, ocorreu atrás um enorme explosão, quando ele chegou à referida árvore viu o Domingos Lopes morto, enquanto um furriel dos Comandos, com o rosto esfacelado gritava “ai minha mãezinha”. E confidencia que a morte deste seu camarada o marcou, estivera com ele até ao último instante, depois do regresso de Guidage ajudou a reunir todos os seus parcos haveres para os devolver à família. E escreve: “A mala e um pequeno espólio de objetos que incluía um gravador de bobines que, dias antes, à cabeceira da sua cama e da minha, ao lado uma da outra, reproduzia frequentemente em alto volume o folclore minhoto, região da sua naturalidade que, a partir dali, se calou para sempre. Tenho bem presente aquela imagem da mala apertada com um cordel em volta e a sensação que me assaltou ao pensar no drama da chegada daquela encomenda aos seus destinatários”. Fez mais amizades, recorda Orlando Augusto Pires, que estava em Binta, criou-se uma forte amizade, em 1975 reencontraram-se, estavam ambos incorporados na Guarda Nacional Republicana. Com os desencontros da vida, passaram-se muitos anos e depois veio a saber que o Pires falecera, acometido de doença súbita no dia do casamento da filha mais nova. E exalta a simplicidade, a generosidade, a nobreza de carácter daquele seu amigo.

Sempre bom observador, colige notas sobre os macacos, as minas, os trabalhos do pelotão de serviço (ir buscar lenha, dar apoio aos cozinheiros, descascar batatas, confessa que desviava algumas, o jantar era sempre de fome, cozia aquelas batatas com algumas couves, supria as suas necessidades). É nisto que ocorre a morte do alferes Nuno Gonçalves da Costa.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 DE DEZEMBRO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10798: Notas de leitura (439): "Dona Berta de Bissau", de José Ceitil (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Anónimo disse...

Simplesmente comovente.
Parabéns Manuel L R Sousa.

Luís Graça disse...

A>crescenet-se:

O Manuel Sousa, ex-Soldado da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Jumbembem, 1972/74, é atualmente Sargento-Ajudante da GNR na situação de Reforma. Tem cerca de 16 referências no nosso blogue, com diversos postes de poesia e de narrativa. Ingressou no nossa Tabanca Grande em março de 2011. Dou-lhe os parabéns pelo seu livro.


31 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P8020: Tabanca Grande (273): Manuel Luís Rodrigues Sousa, ex-Soldado da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4512 (Jumbembem, 1973/74)

http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2011/03/guine-6374-p8020-tabanca-grande-273.html