terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11120: Do Ninho D'Águia até África (52): A máquina fotográfica (Tony Borié)

1. Quinquagésimo segundo episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177, chegado até nós em mensagem do dia 2 de Fevereiro de 2013:


DO NINHO D'ÁGUIA ATÉ ÁFRICA - 52



A Kodak, que era a primeira máquina fotográfica que o Cifra tinha, desapareceu por altura de um desastre de avioneta, no norte, perto da fronteira. Numa das suas fugidas, no carro dos doentes, à capital da província, o Cifra comprou outra, agora uma Konica, já com mais botões, e complicada, tirava fotografias quase como nas revistas.

Nas suas viagens pelas diferentes zonas de guerra, na entrega do tal material classificado, o Cifra fazia dezenas de fotografias, umas do ar, outras em terra, algumas chocantes, outras de paisagens deslumbrantes da selva, de animais, de pássaros exóticos, de cenários de guerra, de colegas, enfim, de tudo o que entendesse que era útil fotografar. Os rolos para a máquina, a preto e branco, vinham da capital, dos serviços cartográficos do exército, onde também eram processadas as fotografias, pois o amigo Braga, ali em serviço, que tinha andado no grupo folclórico da sua terra natal, e já conhecia o Cifra das andanças folclóricas, antes do serviço militar em Portugal, encarregava-se de todo esse processo.

Conseguia, ninguém sabia como, os rolos de películas e papel de fotografia, reproduzia centenas de fotos iguais, daquelas com motivos mais importantes, que depois dispensava aos militares mais novos que iam chegando a Mansoa, e que tinham curiosidade em ver como era a Guiné, ou simplesmente oferecia aos amigos, tudo isto acontecia na normalidade, até que algumas fotografias, das mais ousadas, começaram a correr de mão em mão no aquartelamento. Como o Cifra era popular e conhecido, pois já estava estacionado há bastante tempo neste aquartelamento, chegou ao conhecimento do comandante, porque o sargento da messe, gravura em cima, que era amigo do Cifra, e a quem lhe dava algumas fotografias daquelas mais ousadas, que se regalava a apreciar, enquanto o Cifra lhe fazia as contas, porque ele se via aflito para as referidas contas acabarem em zero, e sem saber se cometia alguma asneira, um dia disse, na sala onde comiam os oficiais:
- Quem tem essas fotografias é o Cifra.

Um certo dia, ao entregar uma mensagem, já decifrada no comando, o comandante, chama-o, lá de dentro, e pergunta-lhe:
- Ouve lá, que história é essa das fotografias? Andas sempre metido em disparates, ninguém tem mão em ti, só endireitas com uma valente “porrada”!

O Cifra ia para dizer algumas palavras, mas o comandante, com voz de comandante, logo lhe diz:
- Cala-te, traz-me cá essas fotografias para eu ver.

O Cifra ficou um pouco apreensivo e pensou:
- Agora, que falta tão pouco tempo para regressar, vou apanhar algum castigo e não saio mais daqui.

Francamente, ao Cifra não lhe importava nada um castigo em papel, pois não gostava do serviço militar e dos seus regulamentos, pois só falavam de guerra, de disciplina, de prisão, de punições. Um dia até ouviu dizer que a pessoa que fez os regulamentos militares se tinha suicidado depois de os fazer, por se ver impossibilitado de cumprir com o que tinha escrito, e o Cifra entendia que já não podia ser mais punido, pois tinha nascido na Europa, embarcaram-no e trouxeram-no para África, já estava privado da sua liberdade, e preso dentro de uma espécie de campo de concentração, rodeado de arame farpado, há quase dois anos. Andava desesperado com o ambiente de guerra que via em seu redor, e pelas notícias de mortes, nas mensagens que todos os dias decifrava, tudo isto acontecia sem nunca ter feito mal a ninguém, e para mais, andava sempre cheio de medo, neste cenário de guerra. Do que ele tinha mais receio é que prolongassem a sua estadia neste mesmo cenário.

De volta ao centro cripto, pensou melhor:
- Isto são fotografias que eu tirei, que mal há nisto, pois se há alguns colegas, mesmo até furriéis e oficiais que fazem o mesmo?

Enchendo-se de coragem, e tomando uma atitude tal como se fosse o Curvas, alto e refilão, levou uma caixa de sapatos com centenas de fotografias ao comandante.

Uns dias depois, que para o Cifra pareciam meses, ao entregar uma mensagem, o comandante diz-lhe:
- Logo, antes do anoitecer, vem ver-me aos meus aposentos.

O Cifra lá apareceu, com uma camisa da farda amarela do Setúbal, vestida e limpa, pois toda a sua roupa da farda amarela já estava coçada e rota, e a da farda camuflada, quem a usava era o Setúbal, o Curvas, alto e refilão, o Marafado ou o Mister Hóstia, e só não a usava o Trinta e Seis, porque não lhe servia. Pediu licença e entrou.

O comandante, com uma garrafa de Vat 69 na mão e dois copos, que era o whisky que se bebia nas forças armadas, manda-o sentar. Começa com um interrogatório simples, mas interessado, com alguns elogios e alguma admiração, pois algumas dessas fotografias, talvez por acaso, eram únicas e autênticas obras de arte.

Ao mesmo tempo também era repreensivo e, em alguns momentos, usava a cara de comandante. Quando a garrafa estava quase vazia, e mais de uma hora de blá, blá, blá, já com um sorriso na cara e as palavras já saíam aos soluços, completa:
- Tens algum talento, mas esta foto aqui não tem luz, foi tirada do ângulo errado, eu tenho diapositivos de fotografias que tirei há mais de trinta anos e continuo a estudá-los. Vou pedir para a capital uma máquina como deve de ser, com flash e tudo, vou dar-te umas explicações com ela e por certo vais melhorar. Ouve lá, em troca, quero a promessa de ti..., que as melhores fotografias..., são para o meu arquivo. E pára com essa coisa de andares a vender, ou lá o que é, fotografias... na guerra! Entendidos?

Esta última palavra, foi dita com cara de comandante..., sobre influência, tal como o Cifra, já estava na altura.

Afinal, o comandante também tinha a cultura da fotografia, e não só....

Tanto essa máquina, que na altura destes acontecimentos, era uma das melhores máquinas fotográficas que havia no mercado, como as centenas de fotos, quando o Cifra emigrou, para outro país, ficaram em Portugal em casa de seus pais, e muitos anos mais tarde, quando foi por elas, tinham desaparecido, algumas estavam em casa de familiares, já em muito fraco estado. Se fossem encontradas em bom estado, eram bons documentos de guerra.
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 9 DE FEVEREIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11080: Do Ninho D'Águia até África (51): Vinte e quatro longos... longos meses! (Tony Borié)

3 comentários:

Anónimo disse...

É curioso porque também o Senhor Capitão e meu amigo da também minha CCAÇ 1422, era um homem dedicado à fotografia. Aliás penso, mas não tenho a certeza, que ele era mesmo de fotografia e cinema do Exército.Tinha um belo conjunto que entretanto também deve ter desaparecido. Eu, como recebia "A Bola", já com atraso claro, negociava as fotos (5) com um "Cifra amigo"(que as revelava lá no K3). Quer dizer, trocava, por cada jornal, que depois ainda era vendido mesmo ao fim dum mês.
Abraços Tony
Veríssimo Ferreira.

admor disse...

Ah, grande Cifra,
Começar com o medo da porrada da ordem, passando a um colóquio sobre fotografia, botando abaixo uma VAT 69 com o Comandante lá do sítio a prometer-te uma super máquina para melhorar ainda mais a tua técnica fotográfica, por essa não esperavas tu.
Um grande abraço Tony.

Adriano Moreira

Hélder Valério disse...

Caro "Cifra"

Ou andavas 'distraído' ou, felizmente para ti, não tinhas experiência de 'encontros imediatos'....

Então, sendo tu um "cifra", com responsabilidades acrescidas em termos de segurança, andavas a fazer fotos de tudo e ainda por cima a distribuí-las?

Não te apercebeste que estavas em 'zona de guerra' e que tudo podia ser utilizado 'contra'?

Bem, pode-se dizer que tiveste sorte em teres tido o desfecho que tiveste. Olha que podiam ter ocorrido sérias complicações....

Abraço
Hélder S.