1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Dezembro de 2012:
Queridos amigos,
Estamos perante uma empreitada séria que mobilizou os três ramos das Forças Armadas, é uma transversalidade e amplitude impossível de sintetizar.
Quem faz recensão compete-lhe destacar o mais significativo, aquilo que contribui para clarificar a compreensão da guerra que travámos. Comoveu-me, nesta primeira jornada, a qualidade e o modo como o coronel Martins Ares recorda o que lhe competiu fazer na operação Tridente e é muito bonito reler no seu todo o que o furriel Gomes Brízido escreveu de um comandante de companhia ferido e sobre a valentia de um oficial de segunda linha que morreu no campo da honra, perto de Madina do Boé.
Vale a pena, asseguro-vos, adquirir este livro que custa 15 €.
Um abraço do
Mário
Olhares sobre Guiné e Cabo Verde (1)
Beja Santos
“Olhares sobre Guiné e Cabo Verde”, com organização de Manuel Barão da Cunha e José Castanho Paes, DG Edições e Caminhos Romanos, 2012, é uma miscelânea onde intervêm 30 colaboradores e que abraça um conjunto de apreciações genéricas (estudo do meio da Guiné, como se constituiu a ação psicológica e social durante a guerra, um sumário abarcando Amílcar Cabral, o PAIGC e a guerra da Guiné, memórias de Cabo Verde e da Guiné através dos panos e museologia militar); um conjunto de apreciações sobre as atividades terrestres na Guiné, caso da operação Tridente, as atividades dos Comandos guineenses e do Batalhão de Caçadores Paraquedistas nº 12; segue-se um conjunto temático com uma organização muito sólida sobre o desempenho da Marinha na Guiné e Cabo Verde; dando continuidade, apresenta-se de forma abreviada uma apreciação sobre o desempenho na Força Aérea na Guiné a que se segue uma série de olhares, caso do depoimento do repórter Fernando Farinha sobre a queda de um helicóptero no rio Mansoa, em Julho de 1970; temos depois um conjunto de olhares sobre Cabo Verde e por último o levantamento de questões sobre a literatura da guerra da Guiné, da minha responsabilidade e uma bibliografia geral.
Procede-se a vários registos de algumas matérias consideradas nas diferentes intervenções, sugerindo desde já o leitor que é desejável considerar a generalidade dos depoimentos da maior utilidade e reconhecer que o trabalho organizado sobre o desempenho da Marinha é incontornável para o esclarecimento do não iniciado.
O coronel João Martins Ares disserta sobre a operação Tridente, presume-se que no comando da CCAÇ 557. Temos ali o desembarque, no dia 23 de Janeiro de 1964, esta unidade, o DFE 7, desembarcam de duas lanchas. Logo uma inesperada contrariedade: “Por imprevisão do horário das marés, ou inconsideração das reais condições do terreno local, negligenciara-se o facto de apenas a preia-mar facultar um desembarque isento de dificuldades. Ora, na altura, a maré vazava já… Dois ou três fuzileiros ousaram a primeira tentativa de desembarque… Gorada, pois que se atascaram até à cintura no lodaçal. Achegadas quanto possível as duas lanchas à margem, desta foram ceifadas braçadas de mangue, deitadas sobre o matope (…) Sem oposição inimiga, iniciou-se a progressão ilha adentro, a coluna, encabeçada pelo destacamento de fuzileiros, em dispositivo compacto determinado pelas condições do terreno, um estreito caminho acima do lodaçal circundante. Neste se cerrava o tarrafe, pés de mangue com o seu típico aspeto aracnídeo, a copa verde alçada sobre raízes escoras enterradas na lama negra e fétida”. Assim se penetra numa pequena mata adiante e se caminha para o coração do Como. Água não havia, houve que criar abrigos no terço da mata virado à mata maior cerca de 100 metros a sul, Cachil. “Para que se guarde noção da geografia da Ilha do Como, retenha-se que a mata de Cachil se prolonga por poucas centenas de metros, abrindo-se a sul para novo espaço desprovido de arborização, com a mata de Cassaca a cerrar-se cento e tal metros além”. Em 1 de Abril, tinha a operação Tridente sido concluída há uma semana, a CCAÇ 577 foi presenteada com um ataque inimigo, o PAIGC regressava após o grosso do contingente português ter partido do Como. O coronel Martins Ares narra alguns episódios vividos no rescaldo da operação, fora-lhe dada a missão de preparar as bases do aquartelamento de Cachil, caminhava-se para a época das chuvas. “E isso foi conseguido mediante esforço a todos os títulos dignos de nota, como utilização quase exclusiva de materiais localmente disponíveis”.
Estruturas defensivas e alojamentos construídos acima do solo, alçou-se uma paliçada construída com troncos de palmeira plantados a prumo, em fila dupla. A CCAÇ 577 fez quartel e ali se aquartelou, provou 8 ataques entre Abril e Novembro de 1964. Relata a falta de água, a péssima alimentação, a falta de higiene, e enumera exemplares de fauna bem incómodos: formiga-correição, ou marabunta e, claro está, os incontornáveis mosquitos. E vem a seguir um tocante elogio ao Dr. Leitão, o oficial médico da Companhia: “Era uma pessoa excecional. De elevada competência profissional, possuindo a especialidade de cardiologia, acenaram-lhe a certa altura com a hipótese de exercer essa especialidade no Hospital Militar de Bissau. Recusou. Calmo, ponderado, constituía um utilíssimo esteio do comando da subunidade. Recordo determinado episódio que testemunha bem a sua serenidade. Estava em curso um ataque à companhia, na altura instalada ainda nos abrigos situados na frente sul da mata em que o aquartelamento foi erigido. Concluiu-se mais tarde que o ataque fora mínimo. Só me atrevi a sair do abrigo depois de o tiroteio ter amainado. Com a situação mais calma, abandonei o abrigo, preparando-me para percorrer o perímetro da posição da companhia. De passagem abeirei-me do abrigo do Dr. Leitão, que encontrei impassível, deitado de costas, uma das pernas cruzada sobre a outra e as mãos displicentemente unidas sobre o estômago. E de capacete bem enfiado na cabeça. Abordei-o, aludindo com ironia à cautela do capacete. Com o seu tom invariavelmente sereno, respondeu-me o Dr.: “Ná, ná, que o Diabo tece-as”. A guerra, é ocioso relevar, proporciona situações de intenso paroxismo, generosidade e raiva, brutalidade e candura. O coronel Martins Ares conta a história de um militar que recolhera uma ave, um tecelão, alimentava-a e recatava-a numa gaiola improvisada com pequenas canas. “Aproximava-se o momento da rendição da subunidade, pelo que esse militar se decidiu a libertar o tecelão de que cuidara até aí com esmero e carinho. Tirou-o da gaiola que o albergava e incentivou-o a juntar-se à passarada que, em revelada, evolucionava bem sobre o quartel. Observado atentamente o voo dessas aves o pequeno tecelão hesitou por algum tempo… Subitamente, abriu as asas e partiu, juntando-se ao bando. O militar que o criara manteve-se a contemplar nostalgicamente a passarada. Inesperadamente, a pequena ave destacou-se do bando, voando na direção daquele que até à pouco dela cuidara e poisando-lhe no ombro. A decisão do militar estava no entanto tomada, pelo que de novo incentivou o passarito a juntar-se aos demais. Após curtos voos hesitantes, afastando-se e voltando, o tecelão partiu por fim, reunindo-se à restante passarada, definitivamente”.
O coronel Vargas Cardoso refere o apoio que a sua unidade deu aos trabalhos agrícolas e a chegada de uma charrua que provocou assombro no Olossato. O furriel José Gomes Brízido tem aqui um seu testemunho, escrito em Madina de Boé, em Outubro de 1965. Em 20 de Junho anterior saíra de Madina uma força apeada que ia patrulhar as tabancas de Limbimangatamba. Já bem perto, montou-se um dispositivo de ataque, um grupo ficou emboscado, o outro avançou em direção da tabanca. O inimigo respondeu com fogo. Os nossos dois comandantes caíram por terra, houve que organizar uma posição defensiva, após duas longas horas de fogo, o inimigo retirou. O destaca o furriel Brízida no seu testemunho? Pois “A bravura de um oficial de segunda linha que mostrando total desprezo pela vida, à frente dos seus homens e debaixo de fogo, investiu contra os bandoleiros, acabando por tombar no campo da honra. A abnegação e domínio de nervos do comandante da CCAV 702, o qual, sendo ferido quase no mesmo momento em que foi morto o oficial de segunda linha, aguentou todo o tempo que se esteve debaixo de fogo, dando sempre as suas ordens, e, ao regressarmos, caminhou durante 14 quilómetros, até chegarmos às viaturas sem qualquer queixume e rejeitando a ajuda dos seus subordinados”.
Iniciaremos o próximo texto com um importante testemunho do coronel Raul Folques que refere o testemunho do comando guineense Gabriel José Haik.
(Continua)
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Nota do editor:
Vd. último poste da série de 8 DE FEVEREIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11076: Notas de leitura (456): "Guiné", por Mussá Turé (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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