terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11119: Inquérito online: "As praxes aos piras, no meu tempo, só lhes fizeram bem"... (5): "É pela dor que te fazes homem e... bravo guerreiro"... O Ritual da Tucandeira... na Amazónia (Luís Graça)


Página da congressista norte-americana Judy Chou em que se faz campanha por uma política de tolerância zero às praxes militares... Um seu sobrinho, Harry Lew,  de 21 anos, militar da Marinha recém chegado ao Afeganistão,  suicidou-se em Abril de 2011, depois de submetido a praxes violentas...


1. Grosso modo, a praxe pode ser definida como  a prática de rituais e outras atividades de iniciação, ou ritos de passagem,  envolvendo, quase sempre,  formas diversas de violência, física ou psicológica,  tais como intimidação, assédio,  humilhação, tortura....

O objetivo é iniciar e integrar um indivíduo  num grupo particular.  É comum a diferentes grupos etários e sociais:  escolas, colégios, universidade, grupos de combate, navios, forças armadas, locais de trabalho, gangues,  equipas desportivas,  irmandades, sociedades secretas....

Termos equivalentes noutros sítios e  línguas de praxe ou iniciação:  hazing (inglês), novatada [de novato, recém chegado] (espanhol), baptême [batismo]  ou bizutage (francês), trote (português do Brasil)... A recepção aos caloiros, recrutas, mancebos, novatos, aprendizes, irmãos, novos membros, recém chegados (por ex., na guerra colonial na África portugesa, os periquitos, na Guiné, os maçaricos, em Angola, os checas, em Moçambique,  etc.), é feita pelos mais velhos (veteranos, velhinhos, seniores...). As sessões de de inicição e receção dos mais novos tendem a envolver algum tipo de violência (por ex.,  humilhações sexuais, sevícias,  etc.).

Nalguns casos (internatos,escolas militares, forças armadas...) acabam por se confundir com "bullying", "mobbing", ou sejam, com comportamentos reiterados, continuados no tempo, de discriminação, perseguição e intimação dos membros mais fracos  dos novatos... São práticas proibidas pela lei e pelos regulamentos, mas no fundo toleradas pela cultura institucional (académica, militar, etc.).

Por detrás de todas as praxes, há subjacente o princípio - comum a muitas culturas humanas, das sociedades mais simples às complexas - de que é "pela dor que te tornas homem... e bravo guerreiro"... Veja-se, por exemplo, o ritual de iniciação dos maués, grupo indígena da Amazónia brasileira... Há alguma parecença com as nossas praxes militares (nomeadamente na fase de instrução) ?...

O "hazing" militar nos EUA continua  a dar que falar... Encontrei no Google mais de mil referências "military hazing stories"...(LG)

2. Com a devida vénia, reproduz-se aqui excertos de uma reportagem do portal noticioso brasileiro Estadão.com.br [Observações nossas, entre parênteses retos. Todos os links são nossos. Mantém-se a ortografgia original].

Domingo, 25 de novembro de 2007 > Amazônia > Grandes reportagens > Iniciação dolorosa > Os adolescentes sofrem em rituais violentos

por Carlos Marchi

SÃO GABRIEL DA CACHOEIRA (AM) - Os líderes indígenas não têm dúvida sobre a razão de estranhos e seguidos suicídios de adolescentes tucanos em São Gabriel da Cachoeira, onde, só em 2006, dez jovens se mataram em pouco mais de três meses. Para eles, é o choque cultural – e não cabem mais explicações. A socióloga Marilene Corrêa, reitora da Universidade Estadual do Amazonas (UEA), tem uma versão bem diversa e polêmica: sempre houve suicídios de jovens entre os tucanos e outras etnias que submetem seus meninos e meninas a rituais de iniciação brutais.

Como é o caso dos sateré-maués [, ou simplemente maués], que vivem perto de Parintins e têm um ritual de iniciação que para os brancos é torturante, mas para eles funciona como o milagre que transforma meninos em homens fortes de corpo e espírito, bons guerreiros, caçadores e pescadores.

Na época, meninos que têm entre 9 e 14 anos são convocados para a prova: devem enfiar a mão numa espécie de luva tramada em palha, que cumpre o papel simbólico da vagina e tem centenas de watyamas (formigas tucandeiras) [, ver aqui imagens do Google,]  habilmente encravadas nos espaços da trama de palha, de forma que os ferrões delas fiquem voltados para dentro.

Tão logo a mão é enfiada, as formigas – irritadas pela imobilização entre as tramas da palha – começam a ferroar. Não é de bom alvitre que os meninos gritem muito e não se espera que chorem. Alguns minutos depois, eles são convidados a trocar de mão. Esse ritual assustador começa nos fins de tarde e se prolonga até o meio da madrugada. É repetido em dias subseqüentes, de forma que cada menino deve enfiar a mão na luva de formigas pelo menos 20 vezes, até ser aprovado pelos pajés [curandeiros]

Neste ano, na aldeia Mocongotuba, no Rio Andirá, o ritual juntou 32 meninos. Enquanto os jovens enfiam as mãos na luva de formigas, os adultos entoam o mypynukuri (que quer dizer tatu-açu), um cântico para homenagear a dor que eles sentem, e tomam çapó (guaraná em bastão ralado na água). Na progressão do ritual, os meninos precisam ser auxiliados em tudo, porque as mãos ficam inchadas e inabilitadas para fazer qualquer coisa, até para comer. Enquanto sofrem, não podem ser consolados pelos pais; terão de suportar sozinhos a dor extrema de milhares de picadas com o veneno potente da watyama.

Ao participarem do ritual, embora tentem mostrar coragem, produzem esgares faciais que sugerem tensão e pavor. Muitos desistem no meio do caminho. E estarão automaticamente convocados a repetir o ritual no ano seguinte, sob pena de ficarem desmoralizados na aldeia. “Nunca aconteceu de um não terminar a prova”, gaba-se Jecinaldo Sateré, o coordenador da Coordenação das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (Coiab), que participou do ritual quando era menino e agora vai incentivar o filho a fazer o mesmo – como sua mulher é ticuna, as duas filhas vão participar do ritual de iniciação ticuna.

Conta Marilene que antigamente o ritual era muito mais doloroso: os meninos eram obrigados a introduzir o pênis no formigueiro. O órgão ficava inchado como uma bexiga de ar, diz ela. As missões católicas proibiram esse formato e os sateré-maués inventaram a luva.

A ciência empírica dos tucanos, um dos povos indígenas mais populosos da Amazônia, lhes permite perceber a aproximação da primeira menstruação das meninas, época em que elas são submetidas a um impressionante ritual de iniciação. Durante dias, têm o cabelo arrancado em tufos. Depois, são induzidas a beber um chá que as esteriliza por um período de dois meses; são, por fim, entregues a uma franca e irrefreada iniciação sexual com os meninos da aldeia. Depois desse “treinamento”, a menina poderá escolher um marido – e, a partir daí, só terá olhos para ele.

Marilene lembra Lévy-Strauss [, Claude Lévi-Strauss, famoso  antropógio francês, 1908-2009], para explicar outro mito do meio indígena – por que eles bebem tanto. Segundo ela, na maioria das nações há um hábito imemorial de tomar drogas alucinógenas e servi-las aos jovens, principalmente durante os rituais de iniciação. “Das drogas para o álcool é um pulo”, afirma a socióloga. A médica e antropóloga Luíza Garnello, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e da Fiocruz, discorda: “Não há correlação entre o uso de substâncias psicoativas e o hábito de beber, até porque aquelas substâncias sempre foram de uso restrito dos xamãs (pajés).”

Luíza prefere acreditar que os suicídios podem ser causados pela mudança violenta de hábitos trazida pela invasão dos brancos.  (...)
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Nota do editor:

Último poste da série > 16 de fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P11101: Sondagem: "As praxes aos piras, no meu tempo, só lhes fizeram bem"... (4):  Fui praxado, em Bissum Naga, e não vi nada de mal nisso... (Manuel Maia, o nosso bardo do Cantanhez)

4 comentários:

Luís Graça disse...

... "Dura Praxis, Sed Praxis" ? A praxe é dura, mas é a praxe, parafraseando o aforismo latino "Dura Lex, Sed Lex", a lei é dura mas é lei...

E não se consegue acabar com ela ?... Não me parece, nomeadamente nas Forças Armadas, nos colégios internos, nas "total institutions"... E até na Universidade, que devia ser um espaço de liberdade e criatividade...

A violência faz parte do nosso ADN ?

Henrique Cerqueira disse...

Caro camarada Luís Graça.
Em minha opinião qualquer tipo de praxe tem tendências a descambar em abuso.E basta que uma só pessoa saia magoada dessa situação ,para que seja considerada por mim uma inusitada situação a praxe.
Ainda em minha opinião e na nossa sociedade a "Iniciação" de qualquer criança para o seu percurso de vida deve sêr sempre através do amor ,carinho,boa moral ,bons exemplos familiares,boa educação.Enfim muito amor e carinho.Vi na Guiné na altura do Fanado crianças com graves infecções no pénis porque após a circuncisão tiveram que sarar o corte com o penis metido em terra e completamente sós num retiro forçado.Só para provarem que já eram adultos???eu sei lá o quê.Daí quanto a iniciações nada prova que seja benéfico no carater da pessoa.
Em outras situações acontece que grande parte dos praxados fica com "maselas"ainda que momentâneas.
Assim sendo e mais uma vês eu sou contra qualquer tipo de praxe e até contra o que é chamado de "iniciação"
Esta é a minha opinião e não é por qualquer trauma por têr sido violentamente praxado em Tavira.Quanto a mim e em especial em todos os organismos do Estado sejam eles militares ou civis deveriam sêr banidas as praxes e severamente castigadas por quem as praticasse.Um jovem ou uma criança quando entra nessas instituições normalmente está tão desamparada e assustada que é um "alvo"apetecível para os potenciais abusadores das praxes.
Termino e reafirmo que é a minha opinião aqui expressa.
Um abraço
Henrique Cerqueira

Anónimo disse...

Nunca percebi o porquê das praxes (talvez falta de inteligência minha). Se há algum momento em que a ajuda que alguém nos podem dar é importante, é certamente, quando estamos num síto em que tudo para nós é desconhecido, por mais pequena que seja essa ajuda para quem a recebe tem um valor enorme que dificilmente será esquecida. Nunca fui praxado, mas assisti a algumas situações dessas, em que para além de me sentir revoltado, apoderava-se mim uma tristeza enorme, de ver como algumas pessoas desprovidas de bom senso, usavam de meios a todos os titulos lamentavéis para quem estava a passar por momentos dificeis, em que uma simples palavra de apoio seria importante, mais ainda quando em situações de guerra. Parece ser esta uma opinião minoritaria: mas é a minha...

António Eduardo Ferreira

Henrique Cerqueira disse...

Nem de propósito:(infelizmente)
Hoje mesmo no Jornal de Noticias do Porto e na ultima página.
"Alunas em coma levam á suspensão de praxe académica"....alunas hospitalizadas em coma alcoólico,depois de terem participado no "rali das tascas"...
Mas agora pergunto eu ??? Só depois de hospitalização ou quem sabe talvês mortes é que se suspendem as praxes ???
Desculpem lá os defensores das praxes mas esta foi só mais uma achega ao polémico assunto.
Um abraço
Henrique Cerqueira